- O Estado de S. Paulo
Aspereza de 2019 nos levará a preocupações mais concretas que as do período transitório
Este é o meu último artigo do período de transição. No ano que vem a coisa começa. É hora de a onça beber água, a cobra fumar, o tatu sair da toca. Termina uma longa experiência em que predominaram ideias de esquerda, começa uma experiência liberal conservadora, de certa forma inédita, pois sempre se definiu assim, sem subterfúgios.
Um dos truísmos mais presentes na política é afirmar que nem sempre as coisas acontecem como planejado por seus atores. Em alguns casos podem até se transformar no oposto do desejado.
O projeto político iniciado em princípio de 2003, com a vitória de Lula, pretendia levar o Brasil a um novo patamar de liberdade e justiça social. Terminou em crise econômica, milhões de desempregados e alguns atores, o principal incluído, atrás das grades.
Durante muitos anos estudei o marxismo e constatei, na prática, a inadequação de suas teses. Talvez por temperamento, desde a juventude sempre tive um pé atrás com a ideia de que a História é regida por leis inflexíveis e obedece a um script inevitável.
Quando ouvia as pessoas repetirem o slogan cubano “até a vitória sempre”, costumava responder: sempre que possível.
Era uma abertura para o inesperado, no fundo uma rebeldia contra um mundo pré-desenhado, um cemitério da criatividade humana. Minhas críticas e revisões das ideias de esquerda me valeram algumas antipatias. Nada de grave. Foi possível continuar pensando e escrevendo num clima quase razoável.
Possivelmente, em alguns momentos, vou desagradar aos liberais conservadores. Mas o que fazer? A alternativa seria concordar com uma euforia que a longa experiência não autoriza.
De modo geral, faço perguntas, não acusações. Uma das perguntas-chave que faço aos conservadores que chegam ao poder com a esperança de propagar sua fé cristã é: não estão chegando tarde demais a um mundo secularizado, onde a tradição e a cultura não podem ser apoiadas numa fé transcendental compartilhada?
Uma das referências que tenho é a passagem de Margaret Thatcher pelo governo inglês. Além de sua firme decisão de enfrentar corporativismos, ela manifestou muita simpatia pela moral vitoriana, tempos mais íntegros e felizes, segundo ela. Ao deixar o poder, Thatcher deixou também uma Inglaterra bem mais permissiva do que encontrou.
Aos conservadores brasileiros, para quem o bolo dos costumes desandou, deverá ficar claro que é difícil cozinhá-lo de novo, restando apenas cuidar do que existe, olhando para o futuro. Dito assim, parece complicado. Mas, na prática, é o que está acontecendo. A ministra de Direitos Humanos, Damares Alves, parece ter adotado esse caminho ao afirmar que a união civil gay é um direito adquirido e não vai questioná-la.