- O Estado de S.Paulo
Mais uma vez pode-se registrar a distância sideral que sempre existiu entre o PT e Gramsci
Era o ano de 2001. Uma plêiade de intelectuais de esquerda reuniu-se no histórico edifício da Faculdade de Filosofia da USP, na Rua Maria Antônia, para celebrar os 25 anos do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea (Cedec) e “Pensar o Brasil”. Lua Nova n.º 54, publicação da entidade, registrou as exposições e os debates. Naquela época ainda se podia reunir intelectuais para esse tipo de discussão. Ao contrário do que ocorre hoje, o debate intelectual importava para a construção de referências visando a elaborar algum pensamento de fôlego sobre o País e o mundo.
“Articular transformação com conservação” foi o tema que norteou a exposição de Marco Aurélio Garcia. Resgatar aquela exposição não é importante apenas em razão do conteúdo, mas também pela importância que o expositor assumiu nos governos do PT durante os 15 anos seguintes.
Questionando a tese de que nossa formação histórica fosse resultado de uma “transição por cima”, demarcando nossa “pronunciada especificidade”, Garcia afirmava que aquilo que “foi contabilizado de maneira geral como revolução passiva”, além de se voltar para o passado, seria tributário “de uma certa visão linear da história”. É significativo que um dos próceres do PT manifestasse uma visão francamente contrária à noção gramsciana de revolução passiva, desqualificando-a de maneira integral. Surpreende porque o conceito de revolução passiva, em Gramsci, não guarda absolutamente nada daquela visão obtusa da história. Surpreende, também, porque desde 1997 tínhamos à disposição A revolução passiva – iberismo e americanismo no Brasil, seminal estudo de Luiz Werneck Vianna sobre o tema e seus rebatimentos no Brasil.
O oximoro da revolução passiva, formulado por Gramsci nos Cadernos do Cárcere, juntamente com uma específica noção de hegemonia, já era reconhecido, por inúmeros estudiosos, como o par essencial de uma nova teoria sobre a política. Impossível expor, com profundidade, o que dá sustentação a essa nova conceituação. Aqui farei apenas uma breve súmula.
Revolução passiva é uma categoria analítica voltada para a compreensão de uma época de transformação histórica na qual o “impulso renovador” não advém do desenvolvimento econômico local, e sim de ideias derivadas do desenvolvimento internacional. Por incapacidade de autoconstituição da sociedade nacional, o Estado assume um papel preponderante na condução das mudanças, autonomizando sua classe dirigente. Nestes processos de construção do moderno, a conservação pesa, mas não é uma condenação. É distinto de uma contrarrevolução. Não há reação integral à mudança e o que se sobrepõe nas relações sociais é um conjunto de transformações moleculares. A história muda, mas não por meio de revoluções explosivas.
Como contemporâneo da revolução bolchevique, do fascismo e do americanismo, Gramsci sugere que se poderia entender como revolução passiva processos reformistas de transformação da estrutura econômica rumo a uma economia planificada, superando os momentos mais liberais e individualistas do capitalismo do século 19. Para Gramsci, o mundo caminhava rumo ao que ele chamava de uma “economia de programação”, dirigida quer pela política, quer pelo Estado em sua trama privada (o americanismo). A categoria da revolução passiva possibilitaria, então, a compreensão não apenas das modalidades de trânsito ao moderno, mas também as modalidades de reprodução da dominação sob o moderno.