domingo, 7 de abril de 2019

Opinião do dia: Jürgen Habermas*

A “paz perpétua”, que já fora invocada pelo abade St.Pierre, é para Kant um ideal que deve dar a ideia de estado cosmopolita atração e força intuitiva. Com isso Kant introduz uma terceira dimensão na teoria do direito do Estado e do direito das gentes, aparece o direito cosmopolita (Das Recht der Weltburger), e essa é uma inovação rica em consequências. A ordem republicana de um Estado constitucional democrático fundamentado nos direitos humanos não exige somente um enquadramento brando, em termos de direito internacional, das relações internacionais dominadas pela guerra. Mais do que isso, o Estado jurídico no interior de um Estado deve culminar em um Estado jurídico mundial que congregue os povos e elimine a guerra.

*Jürgen Habermas, “A inclusão do outro’, p. 281. Editora Unesp, 2018.

*Luiz Werneck Vianna: Viva o povo brasileiro

- O Estado de S.Paulo

Nossos heróis empreendedores não vieram do mercado, salvo honrosas exceções

(Em memória de João Ubaldo Ribeiro)

Sob cerrada pancadaria o governo Bolsonaro se lança com as velas pandas em alto-mar em busca do Santo Graal, antes perseguido sem êxito por alguns, sempre na crença de que deslocar o leito da nossa História do seu curso de 500 anos é matéria afeta apenas a uma acendrada vontade política que não recue diante de circunstâncias adversas. Trata-se, sob o governo de Bolsonaro, de um plano de guerra sem quartel com a intenção de remover obstáculos à sua imposição, sejam políticos, econômicos ou culturais. Tais obstáculos estariam dispostos em camadas, acumulados ao longo de gerações, e se antes funcionais como a ação indutora da economia pela política, estariam agora travando o desenvolvimento do capitalismo, cujas forças de mercado estariam a exigir plena liberdade de movimentação. A declaração do ministro da Economia, sr. Paulo Guedes, nesse encontro de Washington, ao identificar no condestável do regime, Olavo de Carvalho, o chefe de uma revolução que estaria em curso não poderia ser mais esclarecedora.

Para o condestável do governo Bolsonaro, as bêtes noires a serem removidas para o sucesso da revolução em marcha seriam as vetustas corporações que conformaram o corpo e a alma da História do País, a saber, os militares, os juízes, o corpo diplomático do Itamaraty e a instituição da Igreja Católica; cada qual teria repassado em boa medida seus valores a um fundo que teria como que constituído o cerne da nacionalidade, em comum a todos eles, embora com pesos variados, a distância dos valores capitalistas. O diagnóstico não é original, pois vem rondando a tópica do pensamento social brasileiro, ao menos, talvez, de Tavares Bastos, um americanista e feroz anti-ibérico de notável talento, que defendia, entre outros temas, a erradicação do catolicismo em favor da doutrinação protestante, segundo ele, mais propícia a uma cultura de liberdades e de um regime de livre-iniciativa. Notar que Tavares Bastos, cultor da obra de Tocqueville, era como ele um cultor da liberdade e jamais, em sua curta e prolífica vida, se associou a projetos autoritários em defesa de suas posições doutrinárias.

Como se sabe, o seu grande antagonista na publicística brasileira foi Oliveira Vianna, um cultor da obra do visconde de Uruguai, discípulo do estadista Guizot, especialista em Direito Administrativo e ministro de Estado sob o regime da Restauração na França, das primeiras décadas do século 19. Nas pegadas de Guizot e do visconde de Uruguai, Oliveira Vianna mobilizou sua crítica ao regime da Primeira República em torno de dois grandes eixos: a crítica da descentralização – tema maior de Tavares Bastos, que lhe dedicou seu importante ensaio A Província – e do idealismo constitucional na forma em que foi arquitetada a primeira Constituição republicana, em 1891, sob a inspiração de Ruy Barbosa.

*Fernando Henrique Cardoso: 1964 – lembranças e tormentos

- O Estado de S.Paulo / O Globo

Rancor? Para quê? Olhar para a frente e manter a democracia é o que conta

Cinquenta e cinco anos passam depressa. A memória se vai, mas ficam recordações. No dia 13 de março de 1964 eu estava no Rio de Janeiro, na casa do meu pai. À noite fui à Central do Brasil pegar o trem de volta para São Paulo. Meu pai, general reformado e ex-deputado federal, residia no Arpoador, no mesmo prédio em que moravam minha avó e um tio. Lá também morava Carlos Drummond de Andrade. Por Copacabana inteira, passando por Botafogo e pelo Flamengo, havia velas acesas nas sacadas de muitos edifícios: a classe média, especialmente a mais alta, protestava contra Jango Goulart, presidente da República que convocara seus apoiadores a se reunirem naquela noite em comício perto da Central do Brasil, em frente à Praça da República.

Tomei o trem, indiferente ao que acontecia. Por acaso, estavam no trem vários amigos: o José Gregori, que viria a ser ministro da Justiça em meu governo; Plínio de Arruda Sampaio, que fora meu colega de curso primário no colégio Perdizes, em São Paulo, e se tornaria deputado federal constituinte; e o engenheiro Marco Antônio Mastrobuono, futuro marido da filha de Jânio Quadros. No jantar, conversas e discussões. O “golpe” estava no ar: de quem seria? Não chegamos a concluir se dos militares e da “direita”, ou das “forças populares”, com Jango à frente, em favor de vagas reformas. Só sabíamos de uma coisa: viesse do lado que viesse, sofreríamos as consequências...

Na época eu era jovem professor-assistente da Faculdade de Filosofia, tinha 33 anos e assento no Conselho Universitário da USP como representante dos livres-docentes. Pouquíssimos sabiam de minhas relações de família com a vida política. Meu pai se elegera deputado federal pelo PTB em 1954. No governo de Getúlio, um primo de meu pai havia sido governador do Rio e outro, ministro da Guerra, o mesmo cargo ocupado por um tio-avô no início dos anos 1930. No governo de Juscelino um tio havia presidido o Banco do Brasil.

Míriam Leitão: Das bizarrices e das mentiras

- O Globo

O governo nos fez perder muito tempo até agora, mas o risco real é o país não ver a diferença entre uma bizarrice e uma mentira

O que é espantoso neste governo é como ele é capaz de perder o próprio tempo e o nosso. Bizarrices, debates ociosos ocupam as horas e consomem energias que deveriam estar dedicadas ao esforço de enfrentar os inúmeros problemas que o país tem. Perder tempo quando se tem tanto o que fazer é ruim. Mas são as mentiras que mais ameaçam. Se a ditadura foi ditadura, se o Hitler era de direita ou esquerda, se é melhor ir aos bancos para saber o número de desempregados em vez de consultar o IBGE, se o diálogo do presidente com os partidos é velha ou nova política. Esses são exemplos de temas pautados por este governo. Parecem só inutilidades, mas são, muitas vezes, mentiras perigosas.

O presidente dizer que não se arrepende de ter feito xixi na cama com cinco anos é bizarro. Quando ele compara esse ato infantil involuntário com a defesa que fez na vida adulta de fechamento do Congresso passa a ser ameaça. Ele nunca soube dar peso às próprias palavras, mas exibir, como presidente, essa desordem no sistema de valores é assustador.

É preciso saber separar. De tudo o que fez, falou e provocou na última semana, a mais perigosa é a revisão do passado. Quem diz que não houve golpe nem ditadura no Brasil não está provocando polêmica, está mentindo. Algumas questões da História comportam interpretações, outras, não. Esta é uma república que já viveu dois graves e longos ciclos autoritários.

Um regime que fechou várias vezes o Congresso, interferiu no Judiciário, suspendeu garantias constitucionais, impôs uma constituição autoritária, cassou, prendeu, torturou, matou e ocultou cadáveres de opositores, proibiu estudante de estudar, suspendeu eleições, censurou a imprensa é uma ditadura. Não cabe relativizar. É fato absoluto. Relativa é a tendência política de cada um. O presidente Bolsonaro gostou do período, acha que foi um bom momento, e que os atos do regime não foram crimes. Cada um é livre para ter a própria opinião. Pode gostar ou não. No caso de um presidente da República, essa preferência tem que pôr em alerta as instituições.

Bernardo Mello Franco: Cem dias sem glórias

- O Globo

Bolsonaro vai fazer cem dias no Planalto. Ainda é cedo para julgar o governo, mas já ficou claro que ele não estava preparado para governar

Na sexta-feira, Jair Bolsonaro refletiu em voz alta sobre os primeiros meses no poder. “Desculpem as caneladas. Não nasci para ser presidente, nasci para ser militar”, disse. Diante de uma plateia de servidores, ele emendou outra inconfidência: “Eu às vezes pergunto, olho para Deus e falo: ‘Meu Deus, o que é que eu fiz para merecer isso?’ É só problema!”.

Se Ele for mesmo brasileiro, já deve ter se cansado de ouvir essa pergunta nos últimos tempos.

Bolsonaro está prestes a completar cem dias no Planalto. Ainda é cedo para julgar o governo, mas já ficou claro que o presidente não estava preparado para o cargo.

O presidente passou os últimos 28 anos no Congresso, quase o dobro dos 15 que viveu nos quartéis. Dedicou sete mandatos à fabricação de polêmicas e à busca incessante pelo confronto. A vocação para a guerra o ajudou a se eleger, mas tem se revelado um obstáculo para governar.

Até aqui, o capitão já abriu fogo contra adversários reais e imaginários. Bradou contra o socialismo, atacou países vizinhos, ofendeu parceiros comerciais e brigou com políticos que se dispunham a apoiá-lo.

Ascânio Seleme: Velha e boa política

- O Globo

Curiosamente, a política só passou a ser 'criminalizada' quando casos de corrupção começaram a ser desvendados

Houve um tempo no Brasil em que as pessoas podiam discordar, fazer campanha e votar contra determinado candidato, mas o país orgulhava-se de seus políticos, dos líderes de partidos, das figuras que se destacavam no cenário nacional, mesmo que fossem adversários. Naqueles dias, como hoje, alguns desses homens desrespeitavam a confiança depositada neles pelos cidadãos e roubavam dos cofres públicos. Nenhuma novidade nisso. A diferença é que no passado os criminosos ficavam impunes. Hoje, vão para a cadeia.

Naquela época , os políticos governavam com alianças de partidos, a maioria feita antes das eleições. Governar supunha dividir o poder, compartilhar responsabilidades, somar forças para aprovar a plataforma pela qual o candidato majoritário tinha sido eleito. Também aqui, nenhum mistério, nenhuma novidade. Os cargos de primeiro e segundo escalões eram distribuídos entre as forças políticas que venceram a eleição e passaram a governar o país.

Não era crime fazer política naquele tempo. Curiosamente, a política só passou a ser “criminalizada” quando os casos de corrupção começaram a ser desvendados, e os ladrões presos. O fato é que ninguém governa sozinho. Distribuir cargos entre aliados não é errado. Se alguém roubar, tem que ser punido. Ponto. Imaginem se o PT conseguiria governar sozinho. Ou o PSDB. Você acha que se será possível a Bolsonaro cumprir suas promessas de campanha se tiver ao seu lado apenas o PSL? Duvido.

Não existe velha ou nova política. Ela é uma só. É a ciência de governar, organizar, dirigir e administrar uma comunidade, um estado, uma nação. E esse tipo de atividade não se faz solitariamente em um gabinete. Se a velha política fosse diferente e não prestasse, o que diríamos de vultos históricos como Juscelino Kubitschek, Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Leonel Brizola, Franco Montoro, Itamar Franco?

Merval Pereira: Lula e Bolsonaro em Shakespeare

- O Globo

Temer pode ser comparado, segundo Gustavo Franco, a Bolingbroke, o usurpador em ‘Ricardo II’, de Shakespeare

O economista Gustavo Franco, especialista em Shakespeare, considera que os personagens que compõem o universo da dramaturgia do chamando “bardo de Avon” refletem a natureza humana com incrível atualidade. Gosta, por isso, de fazer paralelos entre nossos políticos e esses personagens, e, em parceria com o advogado Jose Roberto Castro Neves, outro “bardólatro” fervoroso, fez uma apresentação para os candidatos do Partido Novo, do qual é um dos fundadores, inserindo os personagens de Shakespeare na nossa época.

Falstaff, personagem de várias peças de Shakespeare, que considera um dos mais populares e interessantes personagens do teatro elisabetano, foi descrito como “Simpático cachaceiro, oportunista pândego e covarde espirituoso, Falstaff é o tipo mais macunaímico de toda a galeria shakespeariana; nenhum personagem foi mais carismático, cometeu gafes e pronunciou tantos ditos espirituosos próprios de um humor de taverna, que se tornou sua marca”.

Franco destaca como “clássicas” suas observações sobre a desnecessidade de lutar em nome da honra, e sob qualquer pretexto, bem como as justificativas à meia-boca para crimes flagrantes, assaltos à mão armada inclusive. Falstaff tornou-se um personagem gigantesco, destaca Gustavo Franco, contrariamente a todos os prognósticos.

“Sempre retratado como gordo e barbudo, de um humor bonachão e etílico, não é preciso especular um segundo sobre onde Falstaff reencarnou no Brasil contemporâneo”, ironiza Franco. A própria Elisabeth I mandou o bardo misturar Falstaff com as comadres de Windsor, para idiotizá-lo através de uma paixão.

Dorrit Harazim: Saudade da tirania em ursos e humanos

- O Globo

Este é um momento oportuno para ler a obra do repórter polonês Witold Szablowski sobre povos e pessoas nostálgicas de regimes tirânicos

É difícil associar Donald Trump a Miguel de Cervantes, e mais difícil ainda associar qualquer expressão verbal do presidente americano ao estilo de “Dom Quixote”. Ainda assim, esta semana, o ocupante da Casa Branca falou de moinhos de vento com um grau de desvio da realidade só comparável à do cavaleiro fictício assombrado pelas gigantescas pás rodantes encontradas no caminho.

Foi num discurso para o Partido Republicano que Trump nomeou as turbinas de energia eólica — os moinhos de vento dos dias de hoje — como o mais novo inimigo da propriedade privada, da saúde humana e da vida animal. Numa sucessão de enunciados fáceis de serem repetidos e tomados como verdades por ouvidos crédulos, ele afirmou: “Se você mora perto de um moinho destes, a sua casa passa a perder 75% do valor”, “Os moinhos geram verdadeiros cemitérios de aves”, “Alguém também me disse que o ruído dos moinhos provoca câncer”.

Havia um emaranhado de interesses por trás dessa nova trincheira, sustentada na determinação de nada ceder a políticas ambientais de energia não fóssil. Havia também rancor pessoal: quatro anos atrás Trump fora condenado a aceitar a instalação de várias dessas odiadas turbinas eólicas nas proximidades do seu campo de golfe de Aberdeen, na costa da Escócia.

Mas o que inquieta, no caso, é a sedutora simplificação verbal de questões complexas como a dos muitos impactos de geradores eólicos, alvos de estudos e levantamentos permanentes mundo afora. Condenar o seu uso, assim como o de vacinas, é treva. Simplificações e reducionismos têm alto potencial multiplicador em tempos de medo.

*Elio Gaspari: As empresas estão indo embora

- O Globo / Folha de S. Paulo

Terra dos Papagaios se tornou desinteressante para quem está aqui

À primeira vista, o braço brasileiro da empresa americana RR Donnelley decidiu falir, prejudicando o cronograma da impressão das provas do Enem. Se esse fosse o problema, seria pontual. É mais que isso.

Essa multinacional fatura US$ 6,8 bilhões e opera em 28 países. O silêncio de seus executivos, a intimidade que ela tinha com os educatecas do MEC y otras cositas más deixam no ar perguntas para que se saiba como funcionava essa operação, mas o fato é que ela quer ir embora.

A primeira vítima da falência será o chão da fábrica, onde estão os direitos trabalhistas de seus mil empregados. A falência teve o beneplácito da matriz americana, que certamente terá algo a dizer sobre o assunto. Nos Estados Unidos, ela não se comportaria como se comportou no Brasil.

Antes da Donnelley, a Ford fechou sua fábrica de São Bernardo, a CVS (maior rede de farmácias dos Estados Unidos) fez as malas, a rede francesa de livrarias Fnac pagou para sair do Brasil, o Citibank vendeu-se ao Itaú e o HSBC vendeu-se ao Bradesco. Isso tudo não aconteceu de uma hora para outra, mas o movimento começou em 2015.

Em muitos casos as empresas foram embora porque vieram com falsas expectativas e em outros porque suas operações foram mal administradas. Em dois deles, o da RR Donnelley e da CVS, porque também se enroscaram em litígios judiciais. Em quase todos, não conseguiram operar pelas regras e costumes do capitalismo mambembe brasileiro.

Numa época em que as economias no mundo se integram, a Terra dos Papagaios não só perdeu atrativos para quem investe na produção como tornou-se desinteressante para quem está aqui. Para a turma do papelório eletrônico, continua a ser um paraíso.

Desde que os franceses vieram pegar pau brasil e papagaios na costa da Terra de Santa Cruz o ufanismo nacional cultiva a ideia segundo a qual os estrangeiros querem vir para cá. Às vezes querem, mas há épocas em que preferem sair.

Faz tempo, quando se falava em abrir o mercado nacional, importadoras de carros abriram filiais brasileiras. A Aston Martin (o carro de James Bond) veio e houve um ano em que vendeu apenas duas peças. Azar o delas, mas algumas tentaram construir fábricas e desistiram.

Enquanto a discussão ficava em torno do vem-não-vem, ela era uma. Quando quem veio
se vai, ela deve ser outra.

OS SURDOS BATEM BOCA COM OS MUDOS
A ida do ministro Paulo Guedes foi catastrófica sob qualquer aspecto, mas não é justo que se passe batido pelo fato de ele ter extraído um dos espinhos que envenenavam seu projeto.

Numa frase curta, o ministro disse que a mudança no pagamento do Benefício de Prestação Continuada aos miseráveis “pode ser opcional”.

Traduzindo: hoje as pessoas que têm mais de 65 anos e vivem na miséria ganham um salário mínimo (R$ 998). Pelo projeto inicial essa mesma pessoa receberia R$ 400 a partir dos 60 anos, mas só ganharia o salário mínimo quando completasse 70 anos.

Ao falar em “opcional” Guedes pode ter resolvido o problema. Quando o sujeito completar 60 anos pode pegar logo seus R$ 400 mensais e nesse caso só receberá os R$ 998 quando completar 70 anos. Se preferir, esperará cinco anos e pegará o salário mínimo cheio.

A palavra “opcional” está envenenando também a discussão de um eventual regime de capitalização. Pelo projeto do governo, quem entrar no mercado de trabalho poderá escolher entre esse novo regime ou o atual. Como Asmodeu mora nos detalhes, falta o governo explicar direito como será essa mudança, pois ele diz que o assunto ficará para uma lei complementar.

Admitindo-se que o “opcional” é para valer, os adversários da reforma devem pensar duas vezes para não repetir a mobilização política do século passado contra o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, que também era opcional (os patrões pressionavam para que seus empregados optassem
pelo novo sistema.)

Antes dele, para mandar embora um trabalhador do mercado formal, o patrão deveria indenizá-lo com um mês de salário para cada ano trabalhado. Depois de dez anos de serviço, o empregado não podia ser demitido. Quem chegasse lá ficava estável, mas quando deixasse o emprego saía sem levar um tostão.

O FGTS foi visto como uma tunga. O tempo passou e hoje dificilmente um trabalhador trocaria seu fundo, que é sacado na aposentadoria e permite o uso do pecúlio para a compra de casa própria,
pelo regime anterior.

Quem se mete em briga com o opcional é Jair Bolsonaro, encrencando com a turma LGBT.

Janio de Freitas: Manifesto pelo crescimento econômico

- Folha de S. Paulo

Este país precisa desesperadamente voltar a crescer para dissolução das demais necessidades

As necessidades deste país são em quantidade descomunal. Uma, acima de todas. Parece bem conhecida, e tanto não é, que não figura entre as prioridades emergenciais. Este país precisa desesperadamente de crescimento econômico. É disso que a dissolução das demais necessidades depende. É do crescimento econômico retomado com urgência que tudo depende neste país, no presente, agora mesmo, e para todo o futuro.

Evitar que este país seja engolfado pela violência que já mudou nossas vidas para muito pior. Salvar a democracia, não de ditaduras militares, que isso se resolve, mas da degradação que corre rumo ao fundo sem volta, onde democracia é impossível. Dar sentido, enquanto há tempo, à riqueza natural e aos potenciais humanos que não faltam aqui, no entanto utilizados em escala mínima e só para negócio proveitoso de uma "elite" que vive de costas para o país.

Salvar os que vivem na miséria, os que vive na pobreza, os da classe média já em decadência geral, salvar tudo e todos do que está acontecendo e se finge não ver. Salvar a vida deste país. Isto, só a partir do crescimento econômico é possível.

Vinicius Torres Freire: Brasil vai se cansar de ‘reformas’?

- Folha de S. Paulo

Frustrações de 2019 podem levar país à fadiga de um ajuste econômico que nem houve

“Fadiga de ajuste” é o nome elegante que se dá ao fim da paciência com o corte de gastos públicos de governos com dívidas excessivas. O Brasil está no quinto ano de um ajuste que não houve e no sexto ano do que se pode chamar de depressão, na falta de termo melhor.

Caso houvesse algum crescimento econômico, igual ou maior que 2,5% ao ano, o custo do ajuste talvez fosse em parte compensado por renda e emprego.

No entanto, o estoque de estrago socioeconômico é muito grande, o ajuste no Brasil ainda está para começar, o crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) deste ano tende a 1,5% e começa a se discutir se 2,5% é uma estimativa realista para 2020.

Talvez tenha havido paciência e esperança no fim de 2018 por causa da eleição, como de costume, e porque muita gente acha que, “acabando a corrupção”, haveria dinheiro. Não haverá.

Há é nova frustração: baixa da confiança econômica, desprestígio crescente de Jair Bolsonaro e uma piora das condições financeiras que vai começar a incomodar, em breve, “se persistirem os sintomas”.

Na “fadiga de ajuste”, a irritação social, econômica e, enfim, política provoca a suspensão ou o retrocesso do programa de ajuste fiscal (o plano de levar o governo a gastar menos do que arrecada, o bastante para fazer com que, em algum momento, a dívida pública comece a cair). Mas não houve ajuste ainda.

*Samuel Pessôa: A caminho do semipresidencialismo

- Folha de S. Paulo

Sociedade passará a cobrar os congressistas também pelo desempenho da economia

No presidencialismo brasileiro, o Executivo nacional é a instância responsabilizada pelo eleitor se a economia tem desempenho ruim.

Os deputados respondem aos interesses de seus eleitores: suas bases eleitorais locais ou as corporações e os grupos econômicos que representam.

É por esse motivo que o Legislativo é gastador e o Executivo é poupador (ao menos tenta ser).

Se algo der errado com a economia, quem será punido será o presidente e seu partido.

A dificuldade é que, para implantar política econômica responsável e que atenda ao interesse agregado, o Executivo precisa aprovar medidas no Congresso que prejudicam os interesses das bases dos deputados. Ao menos no curto prazo.

Quase sempre a agregação dos interesses particulares, seja das bases eleitorais locais ou das corporações e grupos econômicos, produz resultado agregado disfuncional. O resultado microeconômico é a enorme complexidade regulatória e tributária, e o macroeconômico é o descontrole fiscal que termina com aceleração inflacionária.

Bruno Boghossian: O PT e o lulismo sem Lula

- Folha de S. Paulo

Partido faz aposta arriscada para preservar bases e recuperar eleitor mais pobre

Do alto do carro de som, horas antes de ser levado para Curitiba, Lulajogou um último laço em direção a seus apoiadores fiéis. Dizendo mais uma vez que era alvo da elite, o ex-presidente alegou ser perseguido por ter dado oportunidades à população mais pobre. “Se esse é o crime que eu cometi, vou continuar sendo criminoso neste país, porque vou fazer muito mais”, ironizou.

Um ano depois que a porta da carceragem da Polícia Federal se fechou, o PT ainda tenta reviver um lulismo sem Lula. Sem a figura do ex-presidente na frente de batalha, o partido briga para reter e recuperar eleitores nos grupos de baixa renda.

A última pesquisa do Datafolha mostra que, na faixa mais pobre da população, a simpatia pelo PT chega a 18% do eleitorado. Na reta final da última eleição, quando a propaganda ainda realçava as cores partidárias, esse índice era de 27%.

Luiz Carlos Azedo: Agora vai: acabou o horário de verão

Nas entrelinhas / Correio Braziliense

“Um balanço dos primeiros 100 dias do governo no período explica por que a popularidade de Bolsonaro caiu 16 pontos entre janeiro e março passado“

Nos 100 dias de seu governo, o presidente Jair Bolsonaro não fez uma revolução na vida nacional, apesar das turbulências que o presidente da República, seus filhos Flávio (senador), Eduardo (deputado federal) e, principalmente, Carlos (vereador carioca) protagonizaram nas redes sociais, sem falar nos disparates do ministro da Educação, o atabalhoado Ricardo Vélez Rodriguez, e nas desbocadas tuitadas do ideólogo do bolsonarismo Olavo de Carvalho. Um balanço da atuação do governo no período explica por que a popularidade de Bolsonaro caiu 16 pontos entre janeiro e março passado. Para melhorar a popularidade, Bolsonaro anunciou o fim do antipático horário de verão.

A mudança mais estratégica promovida por Bolsonaro nesses 100 dias foi a guinada à boreste na política externa brasileira. Na marcação relativa de suas prioridades geopolíticas (Estados Unidos, Chile, Israel), os resultados são duvidosos. Na relação com os Estados Unidos, frustrou o presidente Donald Trump em relação à participação brasileira numa eventual intervenção norte-americana na Venezuela (ainda bem); com o Chile, deixou o presidente Sebastián Piñera na maior saia justa, por causa de seus elogios à ditadura de Pinochet; finalmente, no “fan tour” em Israel, recuou da intenção de transferir a embaixada do Brasil para Jerusalém, anunciando a instalação de um escritório comercial. Agora, corre atrás dos prejuízos na imagem internacional e dos desgastes com árabes e chineses.

Depois de muita perda de tempo, caiu a ficha de que o governo precisa se empenhar na aprovação da reforma da Previdência. Bolsonaro busca uma aproximação com os partidos, depois de um cessar fogo no tiroteio com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), no qual queimou cartuchos desnecessariamente. Entretanto, a cada conversa política do presidente da República, o ministro da Economia, Paulo Guedes, perde alguns bilhões da economia de R$ 1 trilhão que pretendia fazer em 10 anos. Para Bolsonaro, o essencial é aumentar a idade mínima e o tempo de contribuição. Ou seja, vem aí uma reforma mitigada, para garantir um alívio fiscal nos quatro anos de mandato. A grande dúvida é se Guedes e a economia aguentam esse tranco.

Guedes é a principal âncora do governo; a outra, o ministro da Justiça, Sérgio Moro, com a Operação Lava-Jato, uma espécie de “big stick” na relação com os políticos. O mundo de Moro — a magistratura, o ministério público e as polícias federais e agentes ficais — é contra a redução dos próprios privilégios, forma um lobby que está sendo engrossado pelos magistrados, procuradores, policiais civis e militares dos estados. O sucesso do governo depende do desfecho dessa contradição. Se prevalecerem as corporações e o mercado, haverá um colapso nas políticas sociais, desemprego e baixo crescimento; se atender às corporações e à maioria da população, populismo e recessão; a melhor alternativa para o crescimento é acabar com os privilégios.

Estão na lista dos pontos fortes do governo o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, que vem dando um show de competência com seu programa de concessões, e os ministros da Agricultura, Teresa Cristina; da Cidadania, Osmar Terra; e da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. São políticos bem-vistos pelos colegas e não fazem marola. O ponto mais fraco, disparado, é o ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodriguez, cuja cabeça pode rolar amanhã. Outro ponto frasco é o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, enrolado no escândalo dos candidatos laranjas do PSL, o partido de Bolsonaro. Os militares, que ocupam cada vez mais espaços na área meio do governo, tentam salvar a pátria e tutelar Bolsonaro, sem êxito.

Vera Magalhães: 100 dias de barulho

- O Estado de S.Paulo

Bolsonaro gastou ímpeto inicial com polêmicas vazias e ideologia

E na quarta-feira o governo de Jair Bolsonaro completa 100 dias. Quem fizer o exercício de tentar listar os fatos mais marcantes corre o risco de encontrar mais “caneladas”, como gosta de dizer o presidente, que feitos concretos.

As iniciativas virtuosas vieram dos dois ministros sobre os quais havia mais expectativas e de um que estava fora do radar, mas se destacou nos três primeiros meses. Paulo Guedes enviou a reforma da Previdência ao Congresso ainda em fevereiro. Sérgio Morofez o mesmo com o pacote anticrime, no mesmo tempo. E o “ministro revelação” é Tarcísio Gomes de Freitas, da Infraestrutura, que já tem uma bela cartela de realizações para ajudar no balanço que Bolsonaro fará.

Os militares cumpriram o que se esperava deles: foram a voz da sensatez nas crises e nas controvérsias que tinham potencial de se tornar crises, mas sua ascendência sobre o presidente se mostrou menor do que se esperava: muitas vezes eles perderam a queda de braço para os filhos ou para a tal ala anti-establishment, capitaneada à distância e aos berros e palavrões por Olavo de Carvalho.

E de resto? Muita polêmica vazia, tendo as redes sociais como palco, overdose de ideologia se imiscuindo em áreas que deveriam ser técnicas e uma paralisia da qual só agora se ensaia sair na articulação política.

Eliane Cantanhêde: Um cara bacana

- O Estado de S.Paulo

Vélez só está no MEC por falta de determinação de uma única pessoa: Jair Bolsonaro

A inexplicável relutância em demitir Ricardo Vélez Rodríguez do importantíssimo Ministério da Educação diz muito da personalidade do cidadão Jair Bolsonaro e do desconforto do presidente Jair Bolsonaro no cargo. Aliás, foi ele mesmo quem disse que “não nasceu para ser presidente, nasceu para ser militar”. O que também é controverso, já que saiu cedo do Exército, como capitão, e não saiu nada bem.

Se Bolsonaro foi tão impetuoso e decidido ao demitir o amigo Gustavo Bebianno com requintes de crueldade e ao mandar o ministro Sérgio Moro desconvidar a respeitada Ilona Szabó para ser uma mera suplente de um mero conselho, por que mantém Vélez no cargo apesar de tudo e todos? Porque o ministro é “um cara bacana”, como disse a jornalistas?

É um mistério e esse mistério fica ainda pior porque Bolsonaro já tinha decidido a demissão antes da viagem a Israel, mas preferiu ficar fritando o ministro em público do que fazer o que tinha de fazer. Por fim, avisou na sexta que pretende defenestrá-lo amanhã. Avisar três dias antes, pela mídia, que pretende demitir alguém?!

Bolsonaro já falou mal da gestão do MEC na TV, admitiu que faltam ao ministro habilidades essenciais para a função (comando, autoridade, capacidade para escolher pessoas...) e chamou Vélez ao Planalto na véspera da viagem. Mas... continuou contando, impassível, as demissões no ministério: uma, cinco, dez, vinte...

Ricardo Noblat: Bolsonaro desperdiça seu capital político

- Blog do Noblat / Veja

Ou ele se reinventa ou pode cair

A primeira pesquisa Datafolha sobre como os brasileiros avaliam o governo do presidente Jair Bolsonaro deveria acender a luz vermelha no Palácio do Planalto e nos demais bunkers da República. Ela não trouxe uma só boa notícia para o capitão.

Natural que fosse assim. Como poderia ser diferente depois de três meses de trapalhadas de um presidente que admite não ter vocação para tal, de um governo improvisado às pressas e medíocre, enfim de uma nau sem bússola que ameaça fazer água?

Se tudo isso não bastasse, por seu comportamento belicoso, estridente e no mais das vezes imprevisível, Bolsonaro perdeu rapidamente a liderança sobre seu governo. O fato de sua caneta continuar cheia de tinta não significa que ele manda.

O desgaste na sua e na imagem do governo registrada pela pesquisa conferiu a Bolsonaro a condição de pior avaliado entre os presidentes da República de 1º mandato nos seus 90 dias iniciais. A crise parece viajar mais do que governar.

O capital político acumulado por Bolsonaro com sua eleição está indo para o ralo. Antes de ser empossado, 65% dos brasileiros esperavam que ele fizesse um governo ótimo ou bom. Agora, só 59%. Para 61% dos entrevistados, ele fez menos do que se esperava.

Seu comportamento é considerado como correto por apenas 27%. Outros 27% acham que Bolsonaro na maioria das vezes tem um comportamento correto, mas às vezes não. E 23% dizem que ele nunca se comporta como o cargo exige.

Bolsonaro foi o candidato a presidente mais votado entre os que ganham mais de 10 salários mínimos e os que têm curso superior. Pois bem: é entre eles onde seu governo enfrenta numericamente a maior rejeição – 37% e 35%, respectivamente.

É possível que Bolsonaro se recupere daqui para frente? Claro que é. Tempo para isso não lhe falta. Mas isso só acontecerá se ele for capaz de se reinventar. O candidato deve dar passagem ao presidente que prometera governar para todos e não somente para seus devotos.

Se não abandonar a demonização da política e se não compartilhar o poder com os partidos, seu governo será uma sucessão de crises, e correrá o risco de acabar abortado.

Lula nada aprendeu na prisão

Ou a lei é para todos ou não é
O artigo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva publicado, hoje, pelo jornal Folha de S. Paulo mostra que ele nada aprendeu depois de um ano de prisão em Curitiba.

Considera-se um preso político, depois de já ter sido condenado em dois processos e de responder a mais seis. Considera que foi golpe o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.

O desafio urgente da pobreza: Editorial / O Estado de S. Paulo

Puxada pelos preços da comida, a inflação dos mais pobres está mais alta que a dos brasileiros de outras classes de renda. Não se trata só de números, mas de drama vivido no dia a dia. Quem ganha pouco usa uma parcela maior de seus ganhos para comer e para alimentar a família. Pouco sobra, quando sobra, para outras despesas, como saúde, habitação, vestuário e transporte.

Quando se levam em conta esses dados, fica mais claro o desastre provocado pela crise econômica dos últimos anos. Segundo o Banco Mundial, entre 2014 e 2017 mais 7,3 milhões de brasileiros caíram na pobreza e passaram a viver com renda mensal de até US$ 5,50 por dia, algo equivalente, pelo câmbio atual, a cerca de R$ 635 por mês. Com a economia fraca e ainda travada por muitas incertezas, há pouca esperança de retorno em um ano ou dois ao nível de atividade, já baixo, de 2014.

Pelas contas do Banco Mundial, o grupo dos pobres cresceu de 17,9% para 21% da população brasileira nos anos de crise. Se a porcentagem se tiver mantido, corresponde hoje a uns 43,9 milhões de indivíduos. A experiência dessas pessoas teria sido mais penosa, nos últimos anos, se os preços da comida tivessem crescido mais rapidamente. Mas nem o conforto dos preços estáveis e do consumo acessível se mantém neste início de ano.

Más condições de tempo comprometeram a produção de vários itens, e o custo da alimentação deu um salto razoável.

Os efeitos são bem visíveis nos cálculos da inflação enfrentada pelas famílias de baixa renda. Os últimos dados são os do Índice de Preços ao Consumidor – Classe 1 (IPC-C1), elaborado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV). Esse indicador, baseado no orçamento das famílias com renda mensal de 1 a 2,5 salários mínimos, subiu 0,49% em fevereiro, 0,67% em março, 1,77% no ano e 5,42% em 12 meses.

Tropeço inicial: Editorial / Folha de S. Paulo

Datafolha mostra que Bolsonaro tem avaliação pior que a de antecessores

Prestes a completar cem dias no Palácio do Planalto, Jair Bolsonaro (PSL) é considerado ótimo ou bom por 32% dos brasileiros. Trata-se da pior avaliação já registrada para um presidente da República em período semelhante de mandato desde que o Datafolha começou a fazer tal medição, em 1990, com Fernando Collor de Mello.

São 33% os que julgam o atual governo regular, e 30% os que o classificam como ruim ou péssimo.

Em boa parte, as opiniões refletem as clivagens que marcaram o pleito. Dentre os que julgam Bolsonaro positivamente, apenas 7% afirmam ter votado em seu rival, o petista Fernando Haddad. Em sentido oposto, só 9% dos eleitores declarados do presidente reputam seu desempenho como negativo.

Além dos antagonismos políticos, parece razoável presumir que o resultado pouco auspicioso para o mandatário tenha relação com as frustrações de expectativas para a economia e com a dinâmica um tanto confusa da administração federal em seus primeiros meses.

É hora de agir para reconstruir a indústria: Editorial / O Globo

Não se devem repetir políticas protecionistas, mas expor o setor e toda a economia à competição

O Brasil precisa reverter, rapidamente, seu regresso à posição de economia de produtos básicos, commodities. O país acaba de completar um quadriênio de declínio constante nas vendas externas de produtos industriais com maior valor agregado.

Constatou-se nova queda na participação de manufaturados nas exportações em 2018. Vendas desses produtos contribuíram com 36% do valor exportado, equivalentes a US$ 86,5 bilhões.

A dimensão da decadência da indústria fica nítida quando se recua na linha do tempo: na virada do milênio, em 2000, os produtos manufaturados somavam 59% da receita total das exportações brasileiras.

É desproporcional o tamanho da economia brasileira em comparação com a fatia que o país detém no comércio global, apenas 1,2%. O comércio representa menos de um quarto do Produto Interno Bruto.

A indústria de transformação brasileira é a nona maior do mundo, com 1,8% do PIB industrial global. Porém, se coloca na 30ª posição entre as maiores exportadoras de manufaturados, segundo a Organização Mundial do Comércio. Tem participação marginal (0,6% do total) e declinante no comércio internacional.

‘Bolsonaro tem carisma, mas tem projeto de liderança regional?’, pergunta especialista espanhol

Marina Gonçalves / O Globo

RIO — Mais que uma guinada à direita, os resultados do mais recente ciclo eleitoral na América Latina são fruto da atual conjuntura econômica, da rejeição do eleitor à corrupção e de uma insatisfação crescente com as democracias, acredita o analista Carlos Malamud, professor da Universidade Nacional de Educação à Distância e analista para América Latina do Real Instituto Elcano, da Espanha . Para o historiador, que esteve na semana passada no Rio para uma palestra na Fundação Getúlio Vargas, ainda há uma coexistência entre governos de esquerda e direita, e inclusive de extrema direita na região. Embora avalie que o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, tem carisma, ele não o vê como líder regional. Em relação à Venezuela , Malamud afirma que a retirada da imunidade parlamentar do líder opositor Juan Guaidó, na semana passada, evidencia a debilidade do governo de Nicolás Maduro.

O senhor acredita que ele poderá ser preso?

Prender Guaidó não é um cenário improvável. Evidentemente estão mobilizando todos os recursos institucionais para limitar a margem de manobra de Guaidó. Primeiro, o inabilitaram; depois retiraram sua imunidade parlamentar. Por isso, um cenário em que ele termine preso não é descartado. Mas em condições normais, ou seja, se isso tivesse acontecido em 2017, ele já estaria preso. E o que isso mostra não é a força, mas a debilidade do regime. Com nenhum outro personagem, nem com Henrique Capriles, nem Leopoldo López, nem com Antonio Ledezma, tiveram tanto trabalho ou demoraram tanto para resolver uma situação como essa. Nos últimos três meses a conjuntura venezuelana evoluiu de uma maneira impensável, por isso eu não descartaria que ele termine na prisão. De fato, a captura e a prisão de seu chefe de gabinete vai na mesma direção. Ou seja, aos poucos vão tirando sua margem de manobra e limitando suas opções.

O governo Maduro está enfraquecido?

Cada dia que Guaidó está na rua, livre, significa que o regime tem um problema que não sabe bem como resolver. Há setores duros, que querem eliminá-lo fisicamente, e outros que veem que isso agudizaria a pressão com parte da comunidade internacional, sobretudo dos Estados Unidos. Também começa a pesar o fato de alguns personagens ligados ao regime estarem começando a sentir na própria pele as sanções, com fundos congelados, com seus parentes no estrangeiro sem poder receber dinheiro.

A crise na Venezuela pode se tornar uma crise global?

Até o momento é uma crise regional. É verdade que estão presentes múltiplos atores extrarregionais: de um lado Estados Unidos e União Europeia; de outro, Rússia, China e também Cuba, Irã, Turquia. Mas não acredito que degenere em um conflito mundial. Primeiro porque a China não está interessada em fazer disto um problema internacional em que tenha que enfrentar os Estados Unidos, porque tem problemas mais sérios e decisivos com o governo americano que a Venezuela ou a América Latina. Para Rússia, é preciso destacar que a Venezuela não é a Síria. Na Síria, a Rússia tem uma base naval no Mediterrâneo que lhe permite aprofundar sua estratégia regional, e na Venezuela não, ainda que estejam negociando uma base naval. Em segundo lugar, porque para a Rússia não é o mesmo manter um esforço logístico no meio do conflito sírio do que fazer isso na Venezuela, que está muito mais distante. Só o custo de manter uma ponte aérea entre Moscou e Caracas é muito superior que entre Moscou e Damasco.

'Crime e Castigo' evidencia banalidade do mal nos dias de hoje

Livro clássico de Fiodor Dostoievski poderia ser intitulado 'Crimes sem Castigo' se fosse escrito em 2019

Flávio Ricardo Vassoler*, Especial para o Estado

Com tradução do escritor Rubens Figueiredo, a editora Todavia acaba de lançar uma nova edição de Crime e Castigo, obra-prima do escritor russo Fiodor Dostoievski (1821-1881). Publicado originalmente em 1866, o romance é não apenas a porta de entrada mais recorrente para a obra de Dostoievski, como tende a ser a primeira leitura da maioria daqueles que chegam à literatura russa propriamente dita, como já divulgou a International Dostoevsky Society, instituição que reúne os mais renomados pesquisadores dostoievskianos ao redor do mundo.

Crime e castigo nos apresenta a primeira grande investigação de Dostoiévski sobre um dilema, que, para o autor, sintetiza os (des)caminhos da modernidade: se Deus não existe, tudo é permitido?
Filho de uma época que, após 1800 anos de judaico-cristianismo, ousou chamar de mitológico o Livro de Gênesis para desvelar, a partir das investigações do cientista inglês Charles Darwin (1809-1882), a verdadeira origem das espécies, o jovem Ródion Raskólnikov, aguçado por seu niilismo, compreende que, se Deus está morto, é preciso matar o Não matarás. Grandes legisladores da humanidade, como Júlio César e Napoleão, não se constrangiam em submeter seus soldados às agruras mais lancinantes. Para os homens extraordinários – raciocina Raskólnikov –, os fins justificam o choro e o ranger de dentes de quaisquer meios. Apenas a massa ordinária, a manada que se ajoelha diante da lei e dos profetas, não percebe que, se Deus não existe, tudo é permitido – conclui a personagem dostoievskiana.

Assim, Crime e Castigo nos apresenta, em sua primeira parte, as ponderações niilistas de Raskólnikov que, ao fim, desembocarão no assassinato da usurária Alióna Ivánovna, a idosa para quem o jovem empenhara as derradeiras quinquilharias de sua pobreza, que o fizera abandonar o curso de Direito. Afinal – reflete Raskólnikov –, por que um piolho usurpador merece continuar vivo? César e Napoleão sequer hesitariam em esmagar tal usurária como quem enxota uma mosca. Assim, munido de um machado, Raskólnikov racha a têmpora de Alióna Ivánovna. Ocorre que, inusitadamente, a irmã da vítima aparece na hora e no local errados, e o jovem niilista, num instante, se torna um duplo homicida, já que precisa realizar a queima de arquivo.

A mensagem subliminar de Dostoiévski é vigorosa: violada a fronteira do Não matarás, vale a máxima do Livro de Salmos, segundo a qual “um abismo chama outro abismo”. Se Raskólnikov verteu sangue uma vez, por que o jovem não o faria pela segunda vez? (Levado às últimas consequências, tal raciocínio niilista reverbera uma máxima do ditador soviético Josef Stalin (1878-1953), responsável pelo aprisionamento, fuzilamento e expurgo de milhões de pessoas: “A morte de uma pessoa é uma tragédia; a morte de milhões, material estatístico”.)

Após o duplo homicídio cometido por Raskólnikov, o romance passa do crime ao castigo, isto é, o jovem se vê acossado pelo fardo de ter ceifado vidas humanas e, à revelia de sua vaidade niilista, descobre que seu sentimento de culpa não o eleva à condição extraordinária de César e Napoleão.

Johann W. Goethe (28/8/1749-22/3/1832): Aos leitores amigos

Poetas não podem calar-se,
Querem às turbas mostrar-se.
Há de haver louvores, censuras!
Quem vai confessar-se em prosa?
Mas abrimo-nos sob rosa
No calmo bosque das musas.

Quanto errei, quanto vivi,
Quanto aspirei e sofri,
Só flores num ramo - aí estão;
E a velhice e a juventude,
E o erro e a virtude
Ficam bem numa canção.

Ana Costa: Traço de União