sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Leandro Konder, intelectual comunista

Luiz Sérgio Henriques
Fonte: Gramsci e o Brasil

As memórias de Leandro Konder — intelectual comunista — soam como a reivindicação contida e orgulhosa do mineiro Murilo Mendes, ao se dizer não um sobrevivente, mas um contemporâneo de si mesmo. É a primeira imagem que me ocorre ao terminar de ler as 262 páginas escritas ao sabor de reminiscências pessoais e políticas, mas principalmente das mais de duas dezenas de títulos publicados pelo autor.

Uma bibliografia de respeito, digna de um intelectual presente na cena pública pelo menos desde 1965, a data de lançamento de Marxismo e alienação. E que, acredito, seja injusto limitar às fronteiras da esquerda. Leandro, desde a juventude, foi amigo e interlocutor de José Guilherme Merquior, Ivan Junqueira e Sérgio Paulo Rouanet, entre muitos outros nomes da grande cultura. O que comprova estarmos diante de um marxista rigoroso, mas flexível, sempre atento às armadilhas do dogmatismo, refratário ao pensamento único, inclusive de esquerda, e aberto ao diálogo com quem não pensa exatamente como ele.

O estilo de Leandro é sinuoso e envolvente. Cada leitor há de ter a sua passagem preferida, como que o “mote” a pedir a própria “glosa”. E logo no início pensei ter achado a “provocação” mais fecunda, a que exige de mim particular cuidado e reflexão. Leandro se pergunta: “O que é ser comunista hoje?”.

E responde: não é acreditar na ressurreição da URSS nem hibernar como urso à espera de uma revolução apocalíptica. Não é repetir no século XXI palavras de Marx ditas em outro contexto, como se ele tivesse elaborado respostas para questões que nem mesmo eram as do seu tempo. Nada disso.

Segundo Leandro, desde Babeuf os comunistas tiveram vários programas. E os reformularam seguidamente, pois programas políticos reapresentados por duas ou três décadas, sem mudanças significativas, tornam-se “uma monstruosidade”.

Este o mote, esta a provocação que recolho. E parto daqui para dizer que o programa comunista não se diferencia só ao longo do tempo, não se articula só diacronicamente, mas também sincronicamente. Comunistas (marxistas) podem ser tragicamente autoritários e até despóticos — e a cultura bolchevique no seu todo tinha muito pouco de democrática, ainda que, contraditoriamente, tenha contribuído para civilizar o capitalismo durante “o breve século XX”.

Mas comunistas podem também ser democráticos, como o testemunha, com seus inevitáveis claro-escuros, a experiência dos italianos (Gramsci, Togliatti, Berlinguer e o eurocomunismo); e, mais perto de nós, a experiência do Chile de Allende banhado em sangue.

Assim, a minha glosa de Leandro, inspirada em tantos dos seus livros, só pode ter este sentido essencial: os comunistas do século XXI estão “condenados”, teórica e politicamente, a elaborar para sempre suas relações com a democracia, o pluralismo, a diversidade; estão “condenados” a darem boas e inéditas respostas para este conjunto de problemas, que, na verdade, nunca os ocupou demasiadamente durante o século passado.

Quando os comunistas se fecham em si mesmos, dormem o sono da razão, que produz monstros. Quando acordam do sono dogmático e se democratizam, individual e coletivamente, são uma instância crítica insubstituível, portadores que então se tornam de exigências profundas de igualdade e decência.

Há décadas, Leandro nos ajuda a permanecer despertos.

Luiz Sérgio Henriques é editor de Gramsci e o Brasil.

Dor de barriga

Vinicius Mota
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


SÃO PAULO - Azia, má digestão, enjoos, cólicas... Atire a primeira pedra aquele que nunca penou com esse gênero atroz de males da finitude. Que o digam mais de 300 passageiros que se sentiram mal num navio, atracado na quarta para averiguações em Salvador e já liberado.

Um rotavírus altamente contagioso, uma salmonella, uma intoxicação alimentar. A Anvisa ainda investiga as causas do incidente coletivo. Deveria considerar, também, a hipótese de uma exposição generalizada dessas pessoas ao noticiário.

Não há de ser só o estômago do presidente Lula que se indispõe com a leitura de jornais e revistas e com o acompanhamento de notícias e opiniões pela TV, pelo rádio e pela internet. À revista "Piauí", Lula debochou da mídia. Não acompanha o noticiário por opção; porque tem "problema de azia", fez troça.

Não é de hoje que Lula demonstra, em gestos, biografia e palavras, desprezo solene pela leitura e outros hábitos de instrução e informação. A resposta a quem aponta essa falha, grave num presidente da República, é sempre a mesma: é acusado de elitista e preconceituoso.

"A imprensa brasileira tem um comportamento histórico em relação a mim", disse na entrevista. A indolência, de repente, toma a forma de prevenção contra ataques de um inimigo "histórico", a mídia.

Eis um clássico do escapismo esquerdista. Não me exponho ao diálogo na esfera pública, não cotejo minhas opiniões e minhas atitudes com a crítica porque os meios de comunicação não têm legitimidade; estão entregues à burguesia, ao império, aos bancos, aos tucanos.

E toda essa teoria sobre mídia e parcialismo, lançada por um presidente que deplora a instrução e vive cercado de intelectuais aduladores, terminou com uma atitude. Lula criou a TV Brasil para contar a versão popular da história.

O problema é que quase ninguém assiste à TV de Lula. Talvez a programação esteja enjoativa.

As prévias não mentem jamais

Villas-Bôas Corrêa
DEU NO JORNAL DO BRASIL


E m recado curto e direto, o governador tucano de Minas, Aécio Neves, comunica aos interessados e ao distinto público em geral que não apenas é, como todo mundo sabe, candidato à sucessão do presidente Lula, como iniciará a pré-campanha a partir de março, quando pretende viajar pelo país para discutir com as lideranças estaduais do PSDB os rumos e métodos do partido para superar as indecisões que paralisam a cúpula perdida, perdendo tempo.

O governador mostra as suas credenciais. A última pesquisa restrita ao estado carimba o recorde de 83% das intenções de voto no seu nome. No virtual desafio ao governador de São Paulo, José Serra, seu único opositor, com sólida base de apoio nas pesquisas, Aécio Neves propõe à direção do PSDB o debate para a definição de um projeto de governo a ser sustentado pelo partido e o candidato na campanha para o confronto com a proposta do candidato gover- nista, até aqui a ministra Dilma Rousseff, lançada e apoiada pelo presidente Lula.

Ora, para amaciar o consenso ­ aparando as arestas ­ sobra tempo, desde que a direção tucana defina a linha tática. E, para o xeque-mate, o governador indica as pesquisas idôneas, pois como ensina a veterana e sábia canção, os números não mentem jamais. Com os caciques tucanos desperdiçando o tempo em coisa nenhuma, soa como um grito de advertência o recado da seção mineira: não votarão em quem derrotar o governador-candidato no PSDB. Certamente que há tempo, muito tempo, para concertar os rombos no muro. Mas, quando a caranguejola começa a rolar na estrada esburacada, a experiência ensina que, quanto mais depressa, mais fácil colar os remendos.

A proposta cautelosa de transferir a decisão para as prévias, caso perdure o impasse, necessita ser articulada em complicada articulação. O governador Aécio antecipa-se: as prévias restritas ao partido ou abertas para as pesquisas nacionais devem ser consideradas pelo partido como opções democráticas.

Mas o prazo da decisão para o início de 2010, na reta final da campanha, pode ser um tiro pela culatra, aprofundando a cisão no ninho tucano. Num partido que se preza, aliados que se respeitam apostam o cacife no entendimento. E quanto mais depressa é articulada a fórmula consensual, mais fácil a sua aceitação pelo partido e seus eventuais aliados. A oposição tem que manter um olho mirando os poderosos adversários, que estão com a casa arrumada e a candidata Dilma escolhida de cima para baixo.

O presidente Lula assumiu a responsabilidade e o risco de indicar a ministra Dilma Rousseff como a candidata, com largo tempo para submeter-se ao teste das pesquisas. Atuam como parceiros do perde-ganha. Dilma ainda não avançou nas pesquisas iniciais, de simples sondagem.

Mas dedica-se em tempo integral à montagem da sua candidatura. A começar pelos cuidados com a imagem, derrubando excessos de peso com dieta severa, trocando os óculos pesados pela armação de aros finos e renovando o vestuário. E, quando não está em campanha, viajando com o presidente Lula para fiscalizar as obras do Projeto de Aceleração do Crescimento (PAC), toca a geringonça burocrática como assessora ou vice-presidente virtual.

Lula aprendeu todos os truques e manhas que sustentam a sua popularidade recordista acima dos 70%. E, enquanto mergulhava nas águas de Fernando de Noronha ou caminhava na praia da Base Naval de Salvador, marcou um gol de placa com a mágica da concessão de aposentadorias pelo INSS em meia hora. E que, sem mais nada, promete milhões de votos.

Paus para toda obra

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

As medidas provisórias se tornaram uma espécie de panaceia obsessiva do Congresso. Servem para simular independência em relação ao governo, para robustecer discursos eleitorais, são usadas como instrumento de pressão ou mesmo de afirmação individual e coletiva quando se faz necessário.

Legítimos paus para toda obra, prestam também um excelente serviço ao voluntário exercício de miopia galopante de senadores e deputados que fixam o foco de suas reclamações no excesso de MPs editadas pelo Palácio do Planalto e desviam o olhar da profundidade do buraco onde está no Poder Legislativo.

Fiéis à regra, os senadores Tião Viana e Garibaldi Alves, candidatos a presidir o Senado no biênio 2009/2010, fazem delas a principal peça de suas campanhas.

Viana voltou-se, em carta divulgada no início da semana, contra a “gana legiferante do Executivo” e Garibaldi convoca - também em carta, distribuída ontem - o Parlamento a dar uma resposta à altura da “exorbitância” do Planalto, que, segundo ele, “teima em confrontar a Constituição”.

Com todo o respeito que o Congresso Nacional não confere a si, a instituição não anda moralmente autorizada a falar em confrontos de natureza legal.

Quando pode, subverte preceitos constitucionais. Seja resistindo ao cumprimento de decisões judiciais referidas no texto da Carta (e não tiradas das cabeças dos magistrados como quer fazer crer a tola tese da “judicialização” da política), seja ignorando princípios como o da impessoalidade no serviço público ou da probidade para exercício de mandato eletivo.

Aniquila o que diz a Constituição principalmente quando insiste em ignorar - para ficar no tema da predileção do Parlamento - o trecho que dá aos congressistas a prerrogativa de devolver quaisquer medidas provisórias ilegais ou que não se enquadrem nas exigências de relevância e urgência.

A abordagem desse tema é recorrente. Mas justifica-se, porque recorrente também é a insistência do Congresso em fazer das medidas provisórias uma tradução exclusiva e equivocada de todos os seus problemas.

Ainda que fosse o único foco de infecção, a queixa permanente continuaria sendo injustificada. O Parlamento não é uma agremiação indefesa, presa à sanha do Executivo - nem do Judiciário. É um poder que, quando quer, faz valer os seus poderes.

Impõe à sociedade absolvições ao arrepio dos fatos, ameaça criar leis vingativas, inventa regras para derrubar correções de rumo, patrocina acertos os mais escandalosos possíveis, pinta, borda, usa e abusa do poder de legislar.

Fala em confronto da Constituição num assunto que o próprio Congresso resolveria não confrontasse ele mesmo a Constituição para atender ao Executivo em troca de senhas de acesso a cobiçados nichos da máquina pública.

Desvio

Durante os (muitos) anos em que se debateu a reforma do Judiciário, o ponto principal foi a necessidade da existência de uma instância de controle do Poder.

O chamado controle externo ficou a cargo do Conselho Nacional de Justiça, saudado quando da aprovação da reforma como um instrumento de fiscalização da sociedade. Não sobre as sentenças, mas sobre os procedimentos do Judiciário.

A realidade, contudo, mostrou que essa expectativa era ilusória. Prova está na recente decisão do CNJ de permitir aos servidores da Justiça acumular cargos públicos cuja soma de salários ultrapasse o teto de R$ 24, 5 mil.

Pode vir a ser um atalho para futuras reivindicações de isonomia nos outros Poderes.

Esmola muita

Por uma questão tática, o governo pode até dar a entender que apoia duas candidaturas simultâneas do PMDB às presidências da Câmara e do Senado, sustentando os nomes de Michel Temer e de José Sarney, este em função das dificuldades que o petista Tião Viana teria de se eleger.

Estrategicamente, porém, tal atitude fere a lógica. Ao patrocinar dois grupos antagônicos para o comando do Congresso Nacional, o governo estaria promovendo a entrega ao PMDB de um naco amazônico de poder, muito mais importante que os cinco ministérios ocupados pelo partido e mais os cargos administração federal afora.

Presidentes de casas legislativas não são - como ministros e presidentes de estatais - demissíveis.

A boa vontade do Planalto com o PMDB parece excessiva. Mais ainda porque desde o início o governo identificou a insistência do partido em presidir o Senado como fruto das disputas internas entre o grupo que ficou com Lula já na campanha eleitoral de 2002 e o outro que aderiu após a reeleição, em 2006.

Convém desconfiar de que o jogo pode não ser exatamente aquele exposto nas cartas já baixadas à mesa. Há um aroma de blefe no ar: ou no Senado a história de Sarney não é para valer, ou na Câmara o acerto com Temer pode subir no telhado.

Há dez anos, o último grande trauma

César Felício
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Em viagem do Rio de Janeiro para Petrópolis na quarta-feira, aproveitando a semana de pouco trabalho, o economista Gustavo Franco relembrava despreocupado um de seus piores momentos profissionais, epicentro de uma convulsão que marcou o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o Brasil para sempre: a troca do regime cambial administrado pelo de livre flutuação. O jargão econômico atenua a sucessão de acontecimentos que levou a duas demissões de presidentes do Banco Central, socorro a instituições financeiras que até hoje estão sob investigação e a uma perda de credibilidade popular do governo federal que o tempo revelaria como definitiva.

Franco anunciou publicamente a sua saída da presidência do Banco Central no dia 13 de janeiro de 1999, mas a sua demissão fora decidida alguns dias antes, no dia 8. Assumiu o cargo Francisco Lopes e o câmbio foi flexibilizado de R$ 1,21 o dólar para R$ 1,32. Uma semana depois, estava em R$ 1,71. No dia 29, quando Fernando Henrique chegou a temer uma corrida bancária, a cotação atingiu R$ 2,15. Nos três dias seguintes, saíram de cena Lopes e sua "banda diagonal endógena" e o comando monetário foi assumido por Armínio Fraga. Ao longo do ano, a cotação média do dólar ficaria em R$ 1,82. A inflação teve um repique, fatal no poder aquisitivo da população: o IPCA pulou de 1,7% para 8,9% e o IGP-DI de 1,7% para 20%.

"Na crise de agora, a variação cambial foi absorvida como um acontecimento dentro do livre jogo da flutuação do cambial. Em 1999, houve mudança inesperada de regras e um modo turbulento de conduzir esta mudança. A crise cambial se configurou em uma crise decisória. As crises podem ficar maiores ou menores, dependendo do que faz a autoridade máxima. E o governo de então experimentou coisas novas que não deram certo", diz Franco, que considera que as duas demissões seguidas no comando do Banco Central foram combustíveis para a crise. "Havia elementos fora da esfera estritamente econômica, uma disputa de poder. O erro foi consertado com a vinda do Armínio", comenta.

Se continuasse no cargo, Franco gostaria de reverter a tendência de queda na taxa básica de juros, adotada logo depois da eleição, para flexibilizar o câmbio a médio prazo. Até hoje o economista considera que a política cambial adotada em 1998 teve custos toleráveis. "O regime de flutuação acaba tendo mais intervenções que o do câmbio administrado. Eu levei as reservas a US$ 70 bilhões com compras de divisas em março de 1998. O BC comprou US$ 200 bilhões agora. E não estava errado", diz. Fernando Henrique não quis pagar o risco da aposta. E o Brasil teve três presidentes do Banco Central em menos de 30 dias, na última troca abrupta de comando da área econômica que o país teve desde então.

Aproximar as crises cambiais de janeiro de 1999 e a que se desencadeou a partir de setembro do ano passado é tentador, dado o grande contraste entre uma e outra. A desvalorização da moeda em ambos os casos foi brutal, mas diferiu no ritmo. A variação percentual entre a cotação do início da crise e do seu ápice em 2008 foi de 62%, em três meses. Há dez anos, atingiu 77%, em três semanas. Em todo o resto, contudo, o que está acontecendo agora é bem mais suave do que a crise de uma década atrás. A convulsão mundial traz aspectos que até colaboram para a manutenção da estabilidade interna. "O câmbio fez a inflação disparar há dez anos, e no mês passado o IGP-DI registrou deflação, graças à queda do preço internacional das commodities", exemplificou Franco.

Fernando Henrique Cardoso foi reeleito em uma conjuntura de crise. Lula navegava em alta popularidade, em pleno "espetáculo do crescimento" prometido desde sua posse.

Nos meses finais de 1998, após a moratória russa, o Banco Central elevou o teto da taxa de juros de 19% para 29% em 4 de setembro. Quatro dias depois, um pacote de ajuste promoveu um corte de R$ 28 bilhões no Orçamento, sem que se parasse a fuga de investidores. No momento em que Fernando Henrique apertava o torniquete econômico, a agência Moody"s rebaixava a classificação de risco do Brasil. Dois pacotes de ajuda sucessivas do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, que somavam US$ 42 bilhões, foram liberados.

A casa caiu na primeira semana de janeiro, quando o governador de Minas Gerais, Itamar Franco (PMDB), anunciou a moratória mineira, fazendo com que o risco político solapasse a credibilidade externa do governo. É a segunda grande diferença: o porte e o vigor da oposição que cada presidente enfrentava no momento em que a crise econômica os encontrou. Fernando Henrique reelegeu-se no primeiro turno, mas tinha contra si governadores, movimentos sociais, sindicatos e partidos com bancada e militância. "A oposição que se faz hoje a Lula é muito diferente, para dizer o mínimo, do que a que Fernando Henrique sofria no momento da desvalorização", comenta o deputado tucano Arnaldo Madeira, que era o líder do governo FHC na Câmara. O parlamentar lembra a dificuldade para medidas de ajuste transitarem dentro da própria base aliada. A cobrança previdenciária dos inativos foi alvo de quatro tentativas. Quando o governo não foi derrotado no Legislativo, perdeu no Judiciário.

A reserva de poder sobre orçamentos de R$ 150 bilhões, somados os recursos de Minas Gerais e São Paulo, é o dado que separa a oposição tucana da petista. Fernando Henrique teve a sua legitimidade questionada 12 dias depois da desvalorização, quando o então ex-prefeito de Porto Alegre, Tarso Genro, sugeriu a abreviação do mandato presidencial. Dez anos depois, com a crise no auge, Serra e Aécio estabelecem parcerias com o governo federal e os deputados tucanos esbravejam na página do partido na Internet contra os hábitos de leitura do presidente, ou a falta deles.

César Felício é repórter de Política.

Proximidades perigosas

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO

NOVA YORK. Mais uma vez a proximidade conceitual entre parcela ponderável do governo Lula com as atitudes do histriônico protoditador venezuelano Hugo Chávez deixam a política externa brasileira em situação absurda. A tentativa oficial do Itamaraty de se equilibrar entre a solidariedade ao povo palestino e o direito de Israel de existir sempre revela uma posição mais favorável à crítica à "reação desproporcional" do que à condenação aos ataques do Hamas. Se somarmos a essa posição no mínimo ambígua, mas amparada em uma posição humanitária consensual, as declarações do assessor especial Marco Aurélio Garcia e a nota do PT, teremos um quadro em que o governo brasileiro corre o risco de se comparar com a irresponsável política bolivariana.

Seria exagero atribuir à declaração de Garcia ao jornal "Valor" de que Israel pratica "terrorismo de Estado" na guerra contra o Hamas na Faixa de Gaza a expulsão pela Venezuela do embaixador israelense "em sinal de solidariedade com o povo palestino", mas há quem tenha visto nessa atitude um desejo de Chávez de não ficar atrás do que identificou ter sido uma posição oficial do governo brasileiro.

O mais provável é que das duas cabeças tenha saído a mesma radicalização por simples "proximidades conceituais", ainda mais que o PT soltou uma nota oficial subindo mais ainda o tom, comparando a atuação de Israel a atitudes nazistas.

A confusão entre as posições do PT e as do governo brasileiro sempre acontecem quando está envolvido no episódio o assessor especial Marco Aurélio Garcia. Assim foi no caso da crise do Equador com a Colômbia envolvendo as Farc, e volta a ser agora, com os compromissos políticos do partido que tem Lula como presidente de honra destoando de uma política de governo que teria que ser independente e cautelosa.

Mas a postura do PSDB, evitando tomar partido no conflito entre Israel e o Hamas, também não ajudou a dar equilíbrio político à visão brasileira, já que, ao contrário da radicalização petista, os tucanos optaram por ficar "em cima do muro", justificando a atitude pelo fato de o conflito "ser muito complexo".

Um partido que pretende assumir o governo, e que já lá esteve por oito anos, tem obrigação de ter posição formada num conflito tão fundamental para a paz mundial, e poderia ter recorrido aos ex-chanceleres que atuaram no governo de Fernando Henrique para se posicionar de maneira mais clara.

O governo Lula já vinha se posicionando de forma mais aberta na tentativa de exercer uma política externa agressiva, se aproximando dos países árabes sem causar danos nas relações com o chamado "mundo ocidental", especialmente Estados Unidos e Israel.

Em 2005, promoveu a primeira cúpula entre a América do Sul e os países árabes em Brasília, e teve um relativo sucesso, com alguns percalços, tendo sido a cúpula previsivelmente um palco aberto para ataques de todos os tipos, com temas delicados como terrorismo e democracia.

A proximidade com os países árabes tem fortes apoios econômicos, numa região com disponibilidade de capitais para investimento, e uma necessidade imensa de serviços, setor onde nós somos bons e temos tradição de construir estradas, hidrelétricas, usinas, obras urbanas.

A aproximação do Brasil com os países árabes não colocou em risco nossa relação com os Estados Unidos, nem com Israel, embora, na ocasião, o governo Bush tenha querido participar da Cúpula como "observador", o que lhe foi corretamente negado, e tentado pressionar alguns países árabes amigos para que esvaziassem a reunião.

O sucesso diplomático acabou sendo relativo, sem que o governo brasileiro tenha conseguido incluir a defesa da democracia no comunicado final. A análise geral é que, enquanto a América do Sul estiver dominada por governos como o de Chávez, que agora se junta em projetos militares com o Irã de Ahmadinejad, e outros que cultivam o antiamericanismo como política de governo, o Brasil continuará sendo um ponto de equilíbrio, mesmo que avance em posições independentes como agora faz em relação a Israel.

Mas deixar que um assessor especial que trata de política internacional suba de tom como fez Marco Aurélio Garcia pode atrapalhar todo um processo político que já não vem sendo conduzido com a necessária competência.

No Oriente Médio, não adianta tentar ter relações com o mundo árabe alienando inteiramente Israel. A solução palestina, com a criação de um Estado independente, deve ser o caminho para as negociações, e seria mais positivo que o governo brasileiro já se posicionasse nesse sentido, que deve ser o caminho a ser seguido pelo futuro governo de Barack Obama nos Estados Unidos.

No momento em que for resolvida a questão palestina, tudo indica que a relação do mundo árabe preferencial vai ser com Israel, que se transformará em uma imensa plataforma: de serviços financeiros, de infraestrutura, de intermediação comercial, em larga escala.

A "ambição de alto risco" da política externa brasileira, como a definiu o professor Clóvis Brigagão, da Universidade Candido Mendes, seria consequência de o governo Lula já ter tido três condutores da política externa: Marco Aurélio Garcia, o ex-ministro José Dirceu e o chanceler Celso Amorim, e se mantém hoje, mesmo com Dirceu fora do governo.

Há necessidade de a política do Itamaraty estar afinada com a sociedade brasileira, e nessa questão entre Israel e palestinos, a convivência pacífica que se registra no Brasil deveria ser norteadora das ações da política externa brasileira, que não pode confundir o governo com o Estado. As posições políticas e ideológicas do PT não podem se sobrepor às razões do Estado brasileiro.

Os olhos em Gaza

Fernando Gabeira
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

RIO DE JANEIRO - Na guerra das Malvinas, era o mar revolto, escuro e frio. A cada manhã temíamos pelas imagens que os jornais trariam. Agora, são corpos empilhados, crianças. Algumas imagens não são novas. A internet antecipa o horror da manhã seguinte.

Na guerra do Líbano, tínhamos muito o que fazer. Retirar os brasileiros, às vezes por caminhos mais longos, ditados pelo controle militar de Israel. Aprendemos algo que poderá ser útil na Bolívia ou no Paraguai, onde há tantos brasileiros na berlinda.

No momento do choque Israel-Hizbollah, fizemos o trabalho de sempre: manifestações no Saara, bairro comercial do Rio, com árabes e judeus irmanados. É nossa mensagem permanente. No Brasil, é possível a coexistência.

As coisas estão mais difíceis. Há mais palpites do que foguetes e bombas. O Brasil não pode se omitir. Nem superestimar suas chances de intervenção. Não há solução militar para o conflito. Entregues a si próprios, os adversários não encontrarão o caminho da paz.

Depois do Líbano, muitos países baniram a bomba cacho, a bomba de fragmentação. Ela, às vezes, não explode e parece um brinquedo: atração fatal para as crianças.

Apesar de nossos esforços, o Brasil se recusou a firmar o acordo. Insisto nessas pequenas lições de casa: retirada de brasileiros, banir a bomba cacho. É uma tática diante de tarefas gigantescas: começar pelo que está ao nosso alcance.

Mesmo Obama sentiu como é difícil. Em Ashkelon, reconheceu o direito de defesa diante dos ataques do Hamas. Agora está preocupado com o número de mortos. Não se trata se classificar a reação como desproporcional. Ela conduz ou não a algum resultado produtivo? Tantas dúvidas, tantas mortes.

Diante do Oriente Médio, só Beckett: não podemos continuar; continuamos.

Todos os olhos para a economia americana

Luiz Carlos Mendonça de Barros
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Só uma ação fiscal corajosa, inteligente e eficiente pode evitar uma deterioração ainda maior da economia americana

O ANO de 2008 será considerado como um dos períodos mais ricos de ensinamentos para o estudioso das economias de mercado neste novo século que vivemos. Prometo a meu leitor refletir neste espaço sobre os mais importantes deles. Mas nesta primeira coluna do ano não posso deixar de escrever sobre o estágio atual da crise que atinge a todos, inclusive agora, de maneira mais clara, nós, brasileiros.

Uma realidade que se impõe desde o início é reconhecer que, sem uma recuperação importante da economia americana, o mundo não sairá da crise atual. A força das economias emergentes foi suficiente para contrabalançar a fraqueza na maior economia do mundo até o colapso, em setembro, do Lehman Brothers. A partir daí, a crise econômica no mundo mudou de qualidade e intensidade, arrastando a todos no vácuo gerado pela interrupção do crédito, fenômeno que já chamei aqui de "BIG ONE".

Em 2009, os EUA serão novamente o protagonista, relegando à condição de figurantes as outras economias do planeta. Iniciamos o novo ano com boas e más notícias.

As boas -poucas- estão relacionadas com a retomada da normalidade em alguns segmentos do mercado financeiro internacional. Respondendo à atuação firme e decisiva de alguns bancos centrais, os "spreads" de juros dos mercados interbancários mais importantes voltaram para situação anterior à falência do Lehman. Um sinal de que o pavor que dominou as relações entre os bancos privados no mundo diminuiu muito.

Mas as operações com títulos não-bancários continuam a ser realizadas com muita dificuldade.Apenas no segmento "investment grade", que representa as emissões realizadas pelas empresas "AAA" (de verdade, nesse caso), há sinal de vida com novas emissões, mas o diferencial de taxa em relação aos títulos públicos continua muito alto.

Já os mercados de títulos privados de maior risco continuam parados, com taxas nominais elevadíssimas e um diferencial em relação aos juros dos títulos públicos no mesmo nível do período mais dramático da crise.

Em resumo, já podemos notar sinais de normalização dos mercados interbancários e alguma vida nas operações com títulos privados de alta qualidade. Nos últimos dias, ocorreram também algumas emissões exitosas de títulos soberanos de países emergentes, inclusive do Brasil.

Mas, no chamado lado real da economia, os dados revelam uma aprofundamento da recessão nos EUA. O desemprego sobe aos saltos, as vendas no comércio no final do ano são fraquíssimas e os analistas esperam um PIB muito negativo em 2009. É justamente esse quadro em deterioração que tem tornado a política monetária tradicional ineficaz e levado o Fed a explorar outros mecanismos de ação.

Mas é consenso que apenas uma ação fiscal corajosa, inteligente e eficiente pode evitar uma deterioração ainda maior e mais longa da economia americana. Por isso, todos os olhos voltam-se agora para o governo Obama.

Por fim, não posso deixar de comentar os dados divulgados ontem pela Anfavea sobre a produção de veículos no Brasil em dezembro.

Um verdadeiro desastre e que vai levar a uma queda de 10% na produção industrial nesse mesmo período, derrubando o PIB brasileiro do quarto trimestre de 2008 em no mínimo 2%. Para 2009, não se deve esperar algo melhor do que 1,5% de crescimento. Quem se lembra da imagem da marolinha....

LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS, 66, engenheiro e economista, é economista-chefe da Quest Investimentos. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo Fernando Henrique Cardoso).

Sem lugar para festas

André Lara Resende
DEU NO VALOR ECONÔMICO


Embora tenha ficado claro, em agosto de 2007, que algo de potencialmente muito grave estava por trás do súbito trancamento dos mercados interbancários, as bolsas de valores no mundo sacudiram a poeira do susto e seguiram imperturbáveis até o início de 2008. Compreende-se, diante da psicologia desenvolvida nas últimas décadas: a ação dos bancos centrais viria sempre resgatar a economia dos seus eventuais problemas. O fato de o Federal Reserve Bank (Fed) ter revertido de forma drástica a sua política de juros em setembro de 2007, com uma excepcional redução da taxa básica, foi interpretado, não como sinal dos problemas que estavam por vir, mas como confirmação do padrão de comportamento paternalista do Fed nas últimas décadas. As quedas de preços dos ativos eram vistas como correções, mais ou menos acentuadas, mas sempre correções, que não interromperiam a alta sistemática dos preços das ações e dos ativos em geral.

É justamente essa confiança exagerada, no desenvolvimento das políticas macroeconômicas e no bom funcionamento dos mercados, que explica tanto os excessos das últimas décadas, como a incapacidade de compreender os riscos incorridos. Creio que esse excesso de confiança explica também como foi possível que a situação tenha se agravado e se alastrado de forma que a economia mundial esteja ameaçada. Não pretendo retomar aqui a cronologia e os desdobramentos da crise, mas apenas observar que hoje, mais de um ano e meio depois do seu início, ainda estamos longe de vislumbrar o seu desfecho.

Essa crise foi surpreendente. Embora muitos analistas tivessem chamado a atenção para os perigosos desequilíbrios criados na economia mundial, a verdade é que só umas raras exceções - como Nouriel Roubini e George Soros - disseram com antecedência, e com todas as letras, que algo dessa magnitude estava por acontecer. Essa crise é diferente, ou, como disse com propriedade Paul Krugman , igual a todas as anteriores ao mesmo tempo. O fator detonador foi a exaustão do ciclo de alta dos imóveis nos Estados Unidos. Mas por que tomou proporções globais dramáticas? Por que não foi possível, se não antecipar e prevenir, ao menos evitar que a crise tomasse a proporção que tomou? Por que ainda parece haver certa perplexidade quanto à velocidade com que as coisas se deterioraram? Por que não há consenso sobre as medidas a serem tomadas para interromper o avanço da crise e reverter o quadro?

Diante da verdadeira avalanche de fatos e números com que somos bombardeados diariamente sobre sua evolução, parece-me conveniente fazer, em plena crise, um intervalo para uma recomposição analítica.

Síntese das últimas décadas

Nas três últimas décadas do século XX, chegou-se a um relativo consenso sobre os elementos constitutivos de uma boa gestão macro. São eles:

- Política monetária ativa, conduzida por um banco central independente, com base em metas de inflação.

- Livre movimento internacional de capitais.

- Câmbio flutuante, com mínima intervenção.

- Política fiscal que estabilize a relação dívida/PIB, num nível não muito superior a 50% do produto interno bruto.

A argamassa, da qual depende o bom funcionamento dos quatro pilares desta síntese macroeconômica, é a confiança dos investidores internacionais. Confiança, simultaneamente decorrência da adoção desses quatro pontos e também essencial para viabilizá-los. Um processo "reflexivo", como diria a vertente filosófica de George Soros. Os quatro pilares são, portanto, condição para a confiança, mas não são suficientes. As crises das últimas décadas foram todas provocadas por variantes das dificuldades de garantir a confiança, mesmo quando se adotam os quatro pilares da síntese macroeconômica. A confiança condicional faz com que haja uma instabilidade inerente à sua adoção.

A razão dessa instabilidade é que a teoria determina que, para se ter os dois primeiros elementos, isto é, para se poder ter simultaneamente uma política monetária ativa e o livre movimento de capitais, é necessário adotar também o terceiro, ou seja, o câmbio flutuante. Ocorre que, especialmente para as economias que não têm confiança irrestrita, o câmbio flutuante é fonte de instabilidade e perturbações. O ideal seria ter um câmbio administrado, para garantir baixa volatilidade, maior previsibilidade e menores perturbações, tanto sobre os preços e o controle da inflação, como sobre o bom andamento dos fluxos do comércio internacional. Adotar simultaneamente os três primeiros elementos é, entretanto, incompatível com a estabilidade da taxa real de câmbio. O câmbio flutuante é uma concessão necessária, quando todos gostariam de ter o câmbio estável.

Se o quarteto é potencialmente instável e sem ele não há confiança, o resultado são crises recorrentes. Pode-se explicar todas a crises das últimas décadas, desde a primeira crise do México, na década de 1970, e as demais crises das economias latino-americanas, até o final da década de 1990, passando pela crise das economias asiáticas e da Rússia, como exemplos da instabilidade inerente à tentativa de implementar os quatro pilares macroeconômicos em países periféricos.

A instabilidade em evolução

De maneira esquemática, o desenrolar das crises provocadas pela instabilidade do quarteto macro pode ser descrito da seguinte forma. Uma vez adotados os quatro pilares, a confiança é estabelecida e a economia passa a ir bem. Os investimentos aparecem, a economia cresce e o emprego aumenta. Num círculo virtuoso, o processo se auto-alimenta. O crescimento acelerado leva ao déficit externo e às pressões inflacionárias. Num primeiro momento, são interpretados como sinais de saúde: economias dinâmicas atraem poupança externa, que financia seus déficits em conta-corrente. Para evitar que a inflação saia de controle, a política monetária torna-se mais restritiva. Os juros altos atraem capitais de curto prazo. A moeda se valoriza, o que auxilia no controle da inflação, mas agrava o déficit externo. A partir de certo ponto, o déficit em conta-corrente passa a ser visto como insustentável e a valorização da moeda, excessiva. A confiança desaparece e o fluxo de capitais de curto prazo se reverte. A desvalorização da moeda, brusca e inevitável, encerra definitivamente o período de prosperidade.

Uma vez desencadeada a crise, a instabilidade do quarteto macro adquire um aspecto perverso, que agrava os elementos recessivos do fim do ciclo de expansão. A brusca desvalorização da moeda excede a necessária para a recomposição do equilíbrio externo e agrava as pressões inflacionárias. A síntese macroeconômica exige que as políticas monetária e fiscal sejam restritivas. O objetivo prioritário é conter as pressões inflacionárias e restabelecer a confiança quando a economia, desorganizada, enfrenta uma recessão, quase sempre de grandes proporções.

A instabilidade da síntese macroeconômica é agravada pelo fato de que os ciclos econômicos não são internacionalmente sincronizados. Países distintos enfrentam problemas distintos, num determinado momento, e gostariam de ter liberdade para por em prática as políticas que lhes fossem mais adequadas. Ocorre que uma política monetária restritiva para controlar pressões inflacionárias internas, num contexto de baixas taxas de juros internacionais, valoriza a moeda até que o desequilíbrio externo passa a ser percebido como insustentável. A política monetária expansionista, para evitar recessão doméstica, num ambiente internacional de altas taxas de juros, provoca perda de confiança e desvalorização da moeda.

O resultado é uma perturbadora pressão sobre a variação da taxa de câmbio, que termina por levar a uma brutal desvalorização. A necessidade de recuperar a confiança exige que as políticas monetária e fiscal sejam restritivas, no sentido inverso ao contra-cíclico, recomendado para atenuar os efeitos recessivos da crise. O caráter pró-cíclico do quarteto da síntese macro é especialmente perverso imediatamente após o eclodir das crises nos países periféricos.

Os limites da confiança

No caso dos países centrais, para os quais a confiança é garantida, a situação é diferente. Este é especialmente o caso dos países com moedas-reserva, como os Estados Unidos, o Japão e a Europa do Euro e, em menor medida, a Inglaterra e a Suíça. Com confiança irrestrita, a síntese macro perde seu caráter instável. O câmbio flutuante não é um fator perturbador. Não é uma concessão feita para viabilizar a política monetária ativa. É parte dos mecanismos estabilizadores endógenos de uma economia conduzida segundo os cânones da política macroeconômica moderna. A desvalorização da moeda deixa de ser um fator agravante de uma eventual crise, para se converter em parte da solução do problema.

Quando um país periférico tem déficit externo excessivo, tanto a perda de confiança, como a desvalorização da moeda são bruscas. O objetivo dominante da política econômica passa a ser o de recuperar a confiança perdida, o que determina a adoção de políticas fiscal e monetária restritivas, contrárias às requeridas para minorar os efeitos recessivos da crise. Um país central não tem esse problema. Os limites do financiamento externo são mais extensos. Dão espaço e tempo para que a política de juros doméstica exerça seu papel moderador sobre o excesso de demanda. A valorização da moeda - que, eventualmente, decorre do diferencial de juros positivo em favor da economia central - nunca se torna percebida como insustentável, a ponto de provocar uma ruptura. Pelo contrário, auxilia no controle das pressões da inflação, via redução dos preços dos bens comerciáveis. Uma vez afastadas as pressões inflacionárias, com a política monetária já mais expansionista, a confiança nunca ameaçada, a desvalorização não é brusca, mas gradual. Não tão perturbadora, mas parte da solução, ao estimular a redução do déficit externo.

O resultado prático é que os países centrais - especialmente se forem emissores de moeda-reserva - não têm restrição externa ao crescimento da demanda. A única restrição efetiva é o risco de inflação. Enquanto nos países periféricos a restrição efetiva é a externa, via balanço de pagamentos, nos países centrais a restrição efetiva é a interna, via Curva de Phillips.

As expectativas estão no âmago da questão inflacionária. A discussão teórica em torno dos limites do crescimento não inflacionário, centrada na chamada Curva de Phillips, evoluiu com o tratamento dado às expectativas. Na sua versão inicial, era uma fronteira fixa, sobre a qual seria possível escolher o nível de emprego, ou a taxa de crescimento desejado. O preço da opção por um desemprego menor era o de aceitar uma taxa de inflação mais alta. O primeiro golpe no otimismo, em relação a uma gestão macroeconômica ativa, veio com a chamada Curva de Phillips Expandida, que incorporava a formação das expectativas. Se as expectativas se adaptarem à inflação observada, como seria de supor, não é possível manter uma taxa de desemprego inferior à taxa natural, ou, o que é equivalente, manter um crescimento superior ao potencial da economia, sem admitir que a inflação seja não apenas mais alta, mas cada vez mais alta. A relação de troca não era entre crescimento e inflação, como sugeria a Curva de Phillips original, mas entre crescimento e aceleração da inflação.

A evolução da discussão teórica sobre o processo de formação das expectativas levou à chamada Hipótese das Expectativas Racionais. Extremamente atraente do ponto de vista da sua elegância formal, as expectativas racionais estreitaram ainda mais os limites do possível para o ativismo macroeconômico. Tudo que é possível pedir da política macroeconômica é a redução da volatilidade do crescimento e do emprego em torno de suas taxas naturais. O conceito de metas inflacionárias, pelas quais os bancos centrais deveriam pautar sua atuação, surge então como a política mais adequada para reduzir o impacto dos choques sobre a inflação, o produto e o emprego. O sucesso da política de metas inflacionárias foi extraordinário. Uma vez conquistada a confiança de que - mesmo que na presença de choques adversos a curto prazo - o Banco Central manteria a inflação sob controle, as expectativas inflacionárias de longo prazo foram ancoradas. O sucesso alcançado ao ancorar as expectativas com a política de metas teve como resultado afastar significativamente o limite ao crescimento, imposto pela ameaça da perda de controle sobre a inflação.

A inflação de preços de ativos

Embora o Fed nunca tenha adotado formalmente a política de metas inflacionárias, após o período de Paul Volcker, ficou claro que o Fed adotara uma política de metas, embora não explícitas, e que não permitiria que a inflação voltasse a sair de controle. Com as expectativas bem comportadas, com confiança externa irrestrita e com moeda-reserva, os Estados Unidos conseguiram suprimir os clássicos limites externos e internos ao crescimento da demanda. Nem crise cambial, nem inflação foram restrições efetivas para o crescimento da economia americana nas últimas três décadas.

O conceito de núcleo da inflação e a aceitação da tese de que a alta dos preços de ativos não constitui inflação - duas concepções adotadas pelo Fed de Greenspan - garantiram que os limites impostos pela ameaça da inflação ao crescimento da demanda ficassem ainda mais distantes. O único limite para a economia americana nas últimas décadas foi a capacidade de produzir mais. A taxa de desemprego ficou abaixo da taxa natural, por vários anos, sem sinais de inflação. O déficit em conta-corrente indicava que a economia crescia acima de suas possibilidades. Chegou a superar os 7% do PIB, mas, com a confiança externa garantida, nunca deu sinal de que pudesse vir a desencadear uma crise, com brusca desvalorização da moeda. Sem os clássicos limites internos e externos, a economia americana pôde se dar ao luxo de um período de três décadas de prosperidade sem precedentes.

Mesmo com os limites clássicos afastados, sinais de que outros limites persistiam foram vários. A começar pela magnitude do déficit externo. Um país que não contasse com as condições especiais da confiança irrestrita e de ser emissor da principal moeda-reserva mundial teria sido duramente punido pela desconfiança dos investidores, com uma brusca e desorganizadora desvalorização da moeda. Mesmo com a confiança garantida, um déficit em conta-corrente de grande magnitude, num país que tem o peso dos Estados Unidos na economia mundial, suscitava dúvidas sobre a possibilidade de um ajuste que não viesse a provocar perturbações profundas.

A taxa de desemprego, a partir de meados da década de 1990, aproximou-se da taxa natural - a taxa abaixo da qual as pressões inflacionárias deveriam se fazer sentir. Depois, ficou abaixo da taxa natural por vários anos. Apesar da opinião de vários analistas de que o Fed deveria subir os juros, Alan Greenspan recusou-se a fazer qualquer movimento antes de observar sinais concretos de que a inflação estava por se acelerar. Como é usual, novas teses surgiram para explicar por que desta vez era diferente. Greenspan encampou a tese de que um aumento extraordinário da taxa de produtividade tinha rompido a relação histórica entre desemprego abaixo da taxa natural e aceleração da inflação. O fato é que a inflação convencional, a inflação de bens e serviços, não se acelerou. Alguma coisa tinha de fato mudado: a credibilidade conquistada pelo Fed deu-lhe espaço para manter a inflação, convencionalmente medida, e especialmente no conceito de núcleo (excluindo energia e alimentos), sob controle, mesmo com a economia perigosamente próxima do que seria o limiar da zona de aceleração da inflação.

Enquanto a economia americana experimentava um período de prosperidade sem precedente desde os anos 1960, com taxas de desemprego abaixo da taxa natural, mas com a inflação de bens e serviços bem comportada, outro tipo de inflação, menos convencional, dava sinais de que os limites do possível não haviam sido completamente reescritos. Os preços dos ativos tinham altas extraordinárias. A chamada exuberância irracional era sinal evidente de que outros limites estavam por se revelar. Primeiro, foi a alta das ações das empresas de tecnologia. Em seguida, todo o mercado acionário, o mercado imobiliário comercial, o mercado imobiliário residencial, o preço da energia, o preço das commodities, tudo dava sinais de que a economia estava submetida a uma exuberância irracional. O Fed, ajudado por um breve hiato recessivo que se seguiu ao fim da bolha especulativa das ações de tecnologia e aos atentados de 11 de setembro de 2001, continuou a praticar uma política monetária expansionista, com juros excepcionalmente baixos. Com a credibilidade conquistada na década de 1970 e sob uma nova áurea de infalibilidade e onisciência, adquirida desde meados da década de 1990, a inflação convencionalmente medida continuava sob controle.

Os Estados Unidos não tiveram, desde a década de 1970, inflação convencional, mas tiveram inflação de preços de ativos. A inflação de preços de ativos é diferente da de bens e serviços. A inflação clássica, de bens e serviços, é um processo generalizado, sem descontinuidades, que não se interrompe por si mesmo. A inflação de ativos é um fenômeno setorial, descontínuo, com fim brusco, independente da ação da política econômica. Enquanto inflação de bens e serviços é um processo, uma doença longa e generalizada, que exige intervenção médica para interromper sua progressão, a inflação de ativos é uma doença curta e localizada. São bolhas que se expandem e que, se deixadas em seu curso, implodem por conta própria. Nem por isso as inflações de ativos - o uso do plural é mais adequado - são menos perigosas do que a inflação de bens e serviços. Estamos aprendendo a duras penas.

O Fed de Greenspan, embalado na credibilidade conquistada, esqueceu-se da máxima de William McCheney Martin Jr., que presidiu o Fed de 1951 a 1970: o papel do Banco Central é tirar a jarra de bebida exatamente quando a festa começa a ficar animada. O papel do Fed de Greenspan - daí a sua extraordinária popularidade - foi, se não diretamente o de animar a festa, o de garantir que não houvesse ressaca, para que estivessem todos prontos e dispostos a procurar a próxima festa.

O contágio internacional

Apesar da evidência de que havia algo de errado, quando se assiste a uma sucessão de inflações de ativos, a posição de Greenspan sempre foi de que não cabe aos bancos centrais julgar se uma alta de preços de ativos é excessiva ou não. Como as inflações de preços de ativos são fenômenos localizados e fadados à reversão por sua própria dinâmica, o papel dos bancos centrais deveria limitar-se ao de observadores durante as fases de euforia. Uma vez exauridas, a política macroeconômica deveria ser conduzida para minimizar os estragos. A favor de Greenspan, diga-se que, se esta não era uma opinião unânime entre os economistas, era, com certeza, a dominante.

A convicção de que o Banco Central se certificaria de relaxar a política monetária e baixar a taxa de juros, para garantir que não houvesse maiores danos após os excessos, ficou conhecida como "The Greenspan Put". A partir de certo ponto, o processo de ir de bolha em bolha generaliza-se. Passa a haver tantas inflações de ativos simultâneas que o fenômeno se transforma: perde seu caráter localizado e se alastra para toda sorte de ativos. São tantas as festas em andamento, que toda a economia se torna uma grande festa. Quando a economia toda está em festa, não há mais onde fazer festa quando a música é interrompida.

É natural que o longo período de inusitada prosperidade americana tivesse impacto positivo sobre o mundo todo. De fato teve, mas não apenas através dos tradicionais canais do comércio internacional. O principal mecanismo de transmissão da prosperidade e da euforia americana foi o novo sistema financeiro mundial globalizado. A expansão e a internacionalização financeiras das últimas décadas transformaram-se num poderoso fator de sincronização das inflações de ativos, nas mais variadas economias no mundo.

Sob o olhar benevolente das autoridades em toda parte, o sistema financeiro mundial passou por uma grande transformação. O modelo bancário clássico, baseado no relacionamento com os clientes, foi substituído por um sistema despersonalizado, baseado em transações de mercado. O crédito transformou-se radicalmente. Deixou de ser um contrato direto entre credor e devedor e adquiriu uma nova e extraordinária flexibilidade. A securitização, de todo tipo de recebíveis permitiu que as dívidas fossem fatiadas e recompostas das mais variadas formas e depois levadas a mercado. Os contratos financeiros contingentes, chamados de forma genérica de derivativos, concebidos originalmente para limitar o impacto das incertezas, tiveram desenvolvimento semelhante. A securitização e os derivativos foram os pilares a partir dos quais as inovações tomaram tal velocidade que deram origem a um sistema financeiro paralelo, que, por não ter caráter institucional, não tinha nem transparência, nem limites nacionais.

Os Estados Unidos estão no epicentro da crise, mas está claro que o problema não está restrito à economia americana. Já está também claro que o dinamismo das novas economias emergentes não resistirá à evolução da crise. Ao contrário do que se chegou a defender até meados de 2008, nenhuma das grandes economias candidatas a novas locomotivas mundiais, nem mesmo a China, foi capaz de manter o dinamismo diante do desaquecimento das economias centrais.

Assim como a festa americana contagiou o mundo, seu fim interrompeu as festas mais distantes. Todos quiseram ir para os Estados Unidos participar da grande festa, e os que lá estavam precisavam encontrar novas fronteiras para viabilizar outras festas. Em princípio, estar simultaneamente em festas espalhadas pelo mundo deveria funcionar como garantia. Haveria sempre alguma festa animada, quando a sua desse sinal de se esgotar. Mas as festas terminam por se sincronizar. Como ficou evidente, quando a grande festa acaba, as festas periféricas, ainda que incipientes e bem organizadas, são interrompidas. Os visitantes batem em retirada, chamados a recolher os escombros em casa.

O atoleiro da deflação

No final de 2002, durante uma viagem ao Japão, Ben Bernanke, ainda como membro da diretoria do Fed, fez menção aos riscos da deflação. O momento e o local eram adequados: o Japão já enfrentava a ameaça da deflação há anos. Nos Estados Unidos, em seguida ao fim da bolha das empresas de tecnologia em 2000 e aos atentados de setembro de 2001, temia-se que algo semelhante pudesse ocorrer. Bernanke é um acadêmico respeitado, cuja área de pesquisa sempre foram as políticas macroeconômicas, com interesse especial para o caso da Grande Depressão dos anos 1930. Em 2004, Bernanke escreveu, com dois colegas do Fed, um artigo técnico sobre as alternativas da política monetária quando a taxa nominal de juros se aproxima de zero. O artigo explora as alternativas, fora do arsenal ortodoxo dos bancos centrais, para evitar a deflação e uma recessão prolongada. Pois a conclusão de Bernanke, sintetizada no seu discurso do Japão, é que a melhor forma de sair de uma deflação é não chegar até ela.

A afirmativa pode parecer surpreendente, especialmente para os que como nós, brasileiros, penaram durante tantos anos com as dificuldades para controlar a inflação. Afinal, produzir inflação nunca nos pareceu uma coisa muito complicada. Muito pelo contrário, aumentar os gastos públicos sem aumento correspondente da arrecadação, expandir o crédito e dar carta branca ao Banco Central para emitir à vontade, e ainda ter justificativa teórica para isso, parece ser a receita dos sonhos de todo homem público.

A deflação é perigosa por que dificulta a digestão dos excessos do período de vacas gordas. O que paralisa o sistema financeiro é o excesso de ativos, ou seja, empréstimos de toda ordem, em relação ao capital próprio. Enquanto os ventos são favoráveis, para aumentar a rentabilidade, a ordem do dia é maximizar a relação entre ativos e capital próprio. Quando mudam os ventos, grande parte dos empréstimos se torna irrecuperável, a ordem passa a ser não emprestar até que a relação entre ativos e capital próprio - a alavancagem - se reduza para um nível confortável. A deflação aumenta o valor dos ativos em relação à renda e à riqueza dos devedores, dificulta a desalavancagem e prolonga a indigestão. O caso do setor imobiliário residencial, onde começou a crise, ilustra bem os problemas criados pela deflação. Mesmo que as taxas cobradas nos empréstimos hipotecários fossem reduzidas para zero, com a queda sistemática dos preços das casas, a partir de certo ponto o valor do imóvel passa a ser inferior à dívida. A deflação generaliza esse fenômeno: aumenta o valor das dívidas em relação à riqueza. Não é bem o que um mundo atolado em dívidas precisa.

Mas como é possível que, com toda a extraordinária emissão monetária do Fed desde o início da crise, com a taxa de juros reduzida a praticamente zero, não se tenha criado inflação e, ao contrário, continue-se a temer a deflação? A relação macroeconômica mais popularizada é, com certeza, aquela entre emissão de moeda e inflação, da chamada teoria quantitativa da moeda. É uma simplificação dos complexos determinantes do processo inflacionário, que mais induz a equívocos do que ilumina. Nas circunstâncias atuais, a teoria quantitativa perde totalmente seu, normalmente já reduzido, poder de explicação sobre os rumos do nível geral de preços.

Quando se estabelece um nível tal de incerteza próximo do pânico, a demanda por ativos líquidos e sem risco aumenta de forma extraordinária. A moeda dos Estados Unidos é o ativo líquido e seguro por excelência. A emissão, nessas circunstâncias, não cria excesso de oferta de moeda, apenas atende à demanda, que tem um crescimento fora do comum. Como não há moeda em excesso, apesar do aumento da moeda em circulação, não há pressão inflacionária. Não há pressão sobre os preços por que ninguém quer gastar para se livrar do excesso de moeda, mas, ao contrário, assustados, todos querem guardar uma quantidade muito maior de moeda do que em tempos normais. Na linguagem da teoria quantitativa, diz-se que houve uma redução da velocidade de circulação da moeda, que normalmente é estável.

Nas circunstâncias atuais, a emissão de moeda não causa inflação por que atende ao aumento da demanda, mas quando o pânico passar e as incertezas se reduzirem, a demanda excepcional pela moeda americana vai deixar de existir. Em princípio, isso também não é problema. Basta que o Fed reverta o processo, revendendo os ativos que adquiriu do público. Se, durante o pânico, o Fed tivesse comprado apenas títulos do Tesouro, o processo se reverteria sem maiores dificuldades. Quando a situação se normalizasse, o Fed revenderia os títulos que havia comprado e retiraria de circulação a moeda repassada para atender às necessidades do sistema. Este é um exemplo clássico da atuação do Banco Central como emprestador de última instância. Quando o setor privado precisa de liquidez, o banco central aumenta a liquidez, adquirindo títulos públicos do sistema financeiro.

A situação atual é diferente. A iliquidez do sistema é muito superior a uma iliquidez causada por algum fator circunstancial em tempos de normalidade. O sistema financeiro americano, que já enfrentava toda sorte de problemas há mais de um ano, com ramificações para os sistemas financeiros do mundo todo, paralisou por completo após a quebra do banco de investimentos Lehmam Brothers, em setembro de 2008. O Fed, que já vinha tomando medidas para aliviar a iliquidez, viu-se obrigado a abandonar o livro de regras dos bancos centrais e adotou um arsenal de medidas heterodoxas para tentar reanimar o sistema financeiro e a economia.

O aumento da liquidez apenas através da compra de títulos públicos em poder do sistema financeiro seria insuficiente para fazer o sistema voltar a funcionar. O Fed passou a comprar também títulos privados. Ainda não foi suficiente. Incapaz de fazer o crédito voltar a fluir, passou, em seguida, a financiar diretamente o setor privado não-financeiro, através da compra de "comercial papers". Ao dar liquidez de todas as formas para o sistema financeiro, e também diretamente para o setor privado não-financeiro, o Fed inchou o seu balanço com títulos privados. A contrapartida dos títulos privados no ativo do Fed é a expansão do seu passivo monetário, composto por moeda em poder do público, mais reservas do sistema bancário, ou seja, a emissão de moeda.

Enquanto perdurar a incerteza, moeda é o que o público quer. Com a taxa de juros tão próxima de zero, o custo de oportunidade de reter moeda é irrelevante. O público prefere moeda e o sistema bancário prefere reservas no Fed a qualquer outro ativo, até mesmo aos títulos do Tesouro, que praticamente nada rendem. A demanda por moeda tornou-se ilimitada: toda compra de títulos por parte do Banco Central, através da emissão, aumenta a quantidade de moeda entesourada pelo público. Configura-se o que John Maynard Keynes chamou de armadilha da liquidez. A política monetária perde a capacidade de estimular a demanda agregada. Incapaz de estimular a demanda, a política monetária fica também incapaz de reverter um processo de deflação, incapaz de provocar inflação.

Dado que a política monetária é o instrumento do qual o Banco Central dispõe, compreende-se a afirmativa de Bernanke, de que a melhor forma de combater uma deflação é não chegar a ela. O fato de se ter chegado até aqui com a deflação definitivamente como uma possibilidade não é reconfortante. A economia americana corre o risco de se encontrar na situação da japonesa, já há mais de quinze anos estagnada.

A assunção de dívidas

Os Estados Unidos não têm a tolerância do Japão. Acostumada à opulência e ao crescimento, é muito difícil imaginar que a sociedade americana aceite a perspectiva de uma década de estagnação. A reação americana, tanto por parte do Fed como do Tesouro, e também do Congresso, é marcadamente mais agressiva, no sentido de tomar medidas para evitar a deflação e a recessão prolongada. É opinião quase unânime hoje que as medidas para evitar um colapso mundial precisam ser internacionalmente coordenadas. Existe, entretanto, uma larga diferença, entre os países mais audaciosos, dispostos a apostar todas as fichas para evitar a deflação, e os países mais conservadores, reticentes em lançar mão de medidas que possam vir ter um custo fiscal excessivo. Num extremo estão os Estados Unidos. No outro, a Alemanha. Apesar do coro de críticas à posição da Alemanha, aparentemente apegada de forma inoportuna aos riscos do passado e insensível aos de hoje, a verdade é que essa não é uma questão trivial.

Não é preciso, mais uma vez, enfatizar os custos e os riscos de uma profunda e prolongada recessão mundial. Por que então não usar todas as fichas, correr todos os riscos, para evitar a deflação? Não foi justamente um apego à ortodoxia monetária e fiscal, incapaz de ser revista para as circunstâncias de 1929, que levou à Grande Depressão dos anos 1930? A grande contribuição de Keynes foi justamente demonstrar que a economia de mercado pode passar por momentos em que tem um "problema de ignição", que requer o aumento dos gastos públicos para fazê-la pegar no tranco. A hora parece exigir que se esqueçam os pruridos quanto a eventuais desequilíbrios fiscais e fazer todo o possível para escapar de uma nova depressão econômica mundial.

Não há dúvida de que programas coordenados de gastos públicos, de preferência de investimentos, que tenham alto poder multiplicador sobre a demanda agregada, devem ser implementados quando a economia está à beira da deflação. Com a política monetária tornada ineficaz pela armadilha da liquidez, só sobra a política fiscal como instrumento para tentar reanimar a economia. Nas vizinhanças da deflação, só resta discutir como aumentar o impacto e reduzir o prazo, normalmente longo, para que os gastos públicos tenham efeito sobre a demanda e a renda. O conjunto de medidas, preliminarmente anunciadas, pela equipe do novo presidente Barack Obama enquadra-se nesse tipo de política fiscal, sobre a qual, em momentos como o que vive a economia americana, não há o que questionar.

Mais complicada de avaliar - e potencialmente mais arriscada - é a decisão de fazer o setor público, através do Tesouro ou do Banco Central, absorver ativos podres do setor privado. Se o Banco Central expande a quantidade de moeda em circulação, através da compra de títulos do Tesouro em poder do setor privado, para atender a uma demanda excepcional por liquidez, a reversão é simples e sem custos fiscais. Uma vez revertidos os fatores de insegurança que levaram à demanda excepcional por liquidez, o Banco Central recompra os títulos do Tesouro e reduz a quantidade de moeda em circulação. A desmonetização é semiautomática. Esta é uma operação clássica de mercado aberto. Quando o Banco Central, como é o caso do Fed agora, ganha autonomia para financiar diretamente o setor privado, financeiro e não-financeiro, através da compra de títulos privados, a situação adquire uma dimensão distinta. Os títulos do Tesouro americano, acredita-se, não têm risco de crédito, mas os títulos privados, sim. Ao fazer uma expansão monetária através de uma operação clássica de mercado aberto com títulos públicos, o Banco Central não incorre em risco de crédito, não tem necessidade de avaliar riscos privados associados ao papéis que compra, e, muito provavelmente, irá revendê-los quando a situação se reverter, sem maiores dificuldades ou prejuízos.

Ao adquirir títulos privados, o Banco Central faz uma política monetária expansionista que tem um componente de política fiscal. Imaginemos o caso extremo, aquele em que o Banco Central adquire títulos privados que não têm valor residual. Nesse caso, a expansão monetária não poderá ser revertida através da revenda dos títulos ao setor privado, já que eles não têm valor e, portanto, não encontrarão comprador. Para reverter a expansão monetária, será preciso emitir títulos públicos, em valor equivalente ao pago pelos títulos privados sem valor residual. Tudo o que for pago por títulos privados que não têm valor é uma doação, uma troca de papéis bons do Tesouro por papéis podres do setor privado. Trata-se de uma forma de reduzir a dívida privada através do aumento da dívida pública. Caso os títulos privados adquiridos pelo Banco Central tenham algum valor residual, mas inferior ao preço pelos quais foram adquiridos, a situação é essencialmente a mesma.

Toda vez que o Banco Central adquire títulos privados acima do seu valor há um componente fiscal associado à política monetária. Esse componente fiscal da política monetária é diferente da política de expansão dos gastos públicos, seja de custeio ou de investimentos, pois não tem impacto direto sobre a demanda agregada. Apenas transfere endividamento privado para o setor público. A capacidade desse tipo de política fiscal de reanimar a economia é inferior à do aumento dos gastos públicos diretos, especialmente se o setor privado, atolado na deflação, estiver decidido a entesourar todo aumento de sua riqueza líquida.

O objetivo desse tipo de política não é o de reanimar diretamente a economia, como recomenda Keynes, mas o de tentar evitar o colapso do sistema financeiro e restabelecer o crédito, completamente obstruído. É um objetivo indispensável para que a recessão não se aprofunde, mas que, se mal conduzido, pode apenas transferir ativos podres para o Tesouro, até torná-lo insolvente, sem capacidade de reanimar a economia. Um caso extremo e ilustrativo é o da Islândia. O sistema bancário desse país, altamente internacionalizado, inviabilizou-se com a crise. A Islândia foi obrigada a garanti-lo, para evitar a quebra. Ocorre que, ao assumir o passivo do sistema bancário, tornando-o dívida pública, a própria Islândia quebrou. O sistema bancário era grande demais para o tamanho do país.

Qualquer que seja o tamanho da economia, há sempre um limite para a capacidade de assunção de dívidas privadas pelo setor público. O que se pretende, tanto com as novas atribuições dadas ao Fed, como com o fundo de salvamento aprovado pelo Congresso americano, é reanimar o sistema financeiro muito antes que o volume de dívidas privadas a serem assumidas pelo Tesouro aproxime-se desse limite. A assunção de dívidas privadas, tanto por parte do Banco Central, como diretamente pelo Tesouro, deveria dar liquidez a um mercado engasgado pelo excesso de alavancagem e estancar a queda dos preços, causada pela venda forçada de ativos, quando não há compradores dispostos a assumir riscos. Uma vez revertida a situação de iliquidez, pânico e paralisia, os mercados voltariam a funcionar e os preços dos papéis se recuperariam. O Banco Central e o Tesouro poderiam revender, mais à frente, os ativos adquiridos do setor privado, com pouco prejuízo, ou até mesmo com lucro. Assim, muito provavelmente se passaria se a crise fosse apenas de iliquidez, mas está evidente que a crise hoje é também de solvência. Grande parte dos ativos do setor privado são realmente de baixíssimo, ou nenhum, valor residual. Assim sendo, grande parte dos ativos que vierem a ser adquiridos pelo setor público, via Fed ou Tesouro, não têm efetivamente valor, são pura transferência de riqueza para o setor privado. O resultado é um aumento da dívida pública que não terá como ser revertido a curto-prazo.

Os riscos do gradualismo

Para que um programa de transferência de dívidas privadas problemáticas para o setor público seja bem-sucedido é preciso que a economia se recupere antes que o setor público, ele próprio, se torne insolvente. Para isso, é fundamental que o programa seja percebido como efetivamente capaz de reverter a situação. O gradualismo, nesse caso, é perigoso. Se a velocidade com que o setor público absorve ativos problemáticos for inferior à velocidade com que mais ativos privados se tornam problemáticos, é evidente que a situação não irá ser revertida. A recessão e a inexistência de crédito tornam cada vez mais ativos, perfeitamente saudáveis, insolventes. Se prolongado, esse estado de coisas pode resultar numa tal transferência de ativos podres para o setor público que nem o Tesouro será capaz de digerir.

No caso dos Estados Unidos, há espaço para o aumento do endividamento público antes que ocorram problemas. É, de toda forma, importante entender os riscos de um aumento significativo da dívida pública. A partir de certo ponto, o aumento da dívida passará a ser percebido como preocupante. A restrição fiscal intertemporal pode tornar-se difícil de administrar. O governo tem sempre a opção de monetizar grande parte do aumento da dívida. Hoje, isso não seria um problema, mas seria até conveniente. Enquanto houver risco percebido de deflação e a taxa básica de juros continuar próxima de zero, a monetização é fonte de preocupação. Enquanto a economia mundial estiver toda relativamente sincronizada em recessão, o problema não é grave, pois a demanda por moeda e títulos americanos é excepcionalmente grande. Mas assim que outras economias derem sinais de recuperação, que apareçam oportunidades de investimentos, enquanto a economia americana permanece estagnada com a indigestão de ativos podres, a demanda pela moeda e pela dívida americana se reduzirá. O resultado - especialmente se a taxa básica de juros controlada pelo Fed for mantida perto de zero, para não inviabilizar a recuperação da economia - será a desvalorização do dólar e a elevação das taxas de longo prazo da dívida. O Fed, com o seu ativo cheio de títulos privados de valor questionável, teria de enfrentar uma súbita redução da demanda por sua moeda. Entre elevar a taxa de juros para esterilizar a redução da demanda de moeda e prolongar a recessão, ou aceitar a desvalorização do dólar e a inflação decorrente da tentativa do público de reduzir seu estoque de moeda, o Fed optaria sem dúvida pela segunda alternativa. Um pouco de inflação é tudo que o Fed deseja para acelerar o processo de digestão de dívidas.

A questão-chave é se será possível passar de forma gradual, sem descontinuidades, da deflação para uma pequena inflação. Quanto mais desorganizadora a recessão, quanto mais longe tiver ido o processo de troca de ativos podres privados por dívida pública, quanto mais rápida a taxa de crescimento da relação dívida-PIB, quanto maior a resistência do Fed para subir a taxa básica de juros quando houver uma redução da demanda pelo dólar, maior será o risco de uma descontinuidade. O resultado pode ser uma desvalorização brusca do dólar, a única das previsões dos que anteviram essa crise que ainda não se realizou.

Para concluir

Essa crise foi subestimada. Hoje, já há consciência da sua gravidade. Está evidente que esta é a crise mais séria desde a Grande Depressão dos anos 1930. O fato de não ter sido antecipada, ter sido subestimada, ter sido descartada como uma pequena correção de preços dos ativos, um mero ajuste, que não deveria durar mais do que um ou dois trimestres, fez com que as medidas para enfrentá-la estivessem sempre atrasadas. Muito pouco, muito tarde.

A paralisação do mercado de crédito, em setembro de 2007, não foi um acidente reversível, como se imaginou. A queda das bolsas não foi provocada por uma reação irracional que abriu uma oportunidade de compra. As economias emergentes não se descolaram da recessão nos países centrais e assumiram o papel de novas locomotivas da economia mundial. O Brasil não está "blindado" - esta palavra horrível -, mas já foi afetado.

Estamos relativamente bem, ajudados tanto pelo dever de casa feito nos últimos anos, como pela sorte de termos chegado tarde para a festa. Fora do epicentro, seremos atingidos de forma menos intensa, mas sobretudo defasada. Para o Brasil, a crise começou no último trimestre de 2008, quando a quebra do Lehman Brothers interrompeu o crédito comercial internacional. Não vamos, entretanto, nos iludir: seremos duramente atingidos. Previsões são sempre difíceis, até por que dependem da capacidade de compreender e de reagir. O realismo da análise, sem o qual não há como bem agir, não deve ser afastado em nome de um otimismo, neste momento, mais incompetente do que ingênuo. A capacidade de compreender o quadro mundial e nossa especificidade é mais importante do que a tentativa de fazer previsões.

André Lara Resende, economista, ajudou na formulação dos planos Cruzado e Real. Foi diretor do Banco Central e presidente do BNDES no governo FHC.

O QUE PENSA A MÍDIA

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