sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

José de Souza Martins*: Medo de Lobato?

- Eu & Fim de Semana | Valor Econômico

Nos últimos tempos, os zeladores do chamado politicamente correto "descobriram" que Monteiro Lobato "seria racista". O negro de seus escritos, para quem conhece o folclore e a mentalidade brasileiros, parece um negro minimizado, mas não o é.

Monteiro Lobato traz para sua obra literária o brasileiro que éramos e não víamos e não vemos. Sua literatura nos leva a personagens que são manifestações de personalidades historicamente geradas nas contradições entre a casa-grande e a senzala. A senzala não era apenas nem principalmente o lugar da prisão de corpos cansados. Era o lugar da cultura insubmissa e desconstrutiva do escravo. Ninguém escraviza sem pagar um preço. Quem vê a escravidão só como cativeiro, é cego. Não vê nela as tensões ressocializadoras e libertadoras. Não vê Tia Nastácia.

Na verdade, tanto ela quanto o Saci-Pererê são pretos míticos, a alma do imaginário brasileiro de todos, brancos e negros, cernes de nossa identidade cultural mestiça. Para muitos, uma imperfeição; para outros, expressão de nossa pluralidade, uma de nossas maiores virtudes.

Por cerca de um século, a obra de Monteiro Lobato formou nossa consciência social e educou várias gerações de brasileiros, de várias origens, para uma compreensão brasileira e crítica dos atrasos de nossa sociedade. A crítica de nossas sutis injustiças saídas da boca de crianças bem-nascidas, mas educadas nas ambivalências do que restava culturalmente das polarizações do cativeiro. Sobretudo no rico imaginário humanizador que há nas fantasias e lendas da preta velha.

Retificar a obra de Lobato, para corrigir-lhe as cruas verdades da desigualdade e da injustiça, é indevida e inadmissível censura de obra literária, coisa de polícia e não coisa de literatura. É criar uma mentira para enganar crianças e adultos. Fazer das histórias de Lobato uma literatura pó de arroz.

Fernando Abrucio*: Não haverá país algum sem mudar a educação

- Eu & Fim de Semana | Valor Econômico

Erro de Bolsonaro na política educacional poderia condenar gerações

Em meio a tantas tragédias neste início de ano, muitos devem estar se perguntando: este país tem futuro? A história brasileira sempre teve altos e baixos frente a tal pergunta. Mais recentemente, a redemocratização inaugurou um período mais otimista, com momentos de euforia no Plano Real e no auge da popularidade de 83% do presidente Lula. Porém, desde as jornadas de junho de 2013, tem predominado o pessimismo. A vitória de Bolsonaro indica uma possibilidade de mudança de humor, mas o começo do governo está muito confuso para se fazer previsões.

De qualquer modo, o fator mais poderoso para nos tirar desses ciclos de euforia e depressão, gerando uma transformação estrutural do Brasil, é a reforma da educação. Somente melhorias contínuas e profundas da política educacional podem atacar os três maiores problemas do país. Primeiro, o combate à desigualdade, pois o ensino de qualidade para todos é o mecanismo intertemporal mais eficaz no aumento da igualdade de oportunidades entre ricos e pobres. Segundo, o crescimento da produtividade da economia, que depende sim de medidas macro e microeconômicas, mas cuja sustentabilidade depende da boa formação escolar do capital humano. E, por fim, o déficit de cidadania, fortemente vinculado à assimetria no acesso à informação e ao capital cultural.

O diagnóstico parece cristalino. Todavia, ao se analisar o conjunto de prioridades dos cem dias do presidente Bolsonaro, claramente se constata que a política educacional tem um lugar secundário no novo governo. Mais do que isso, as falas do ministro da Educação, Ricardo Vélez, demonstram um desconhecimento tanto da história recente do ensino no Brasil como sobre quais são as questões mais relevantes nessa temática. Como todo bom debate começa a partir do benefício da dúvida, pode-se supor que ainda seja cedo para uma avaliação tão peremptória, tendo como pressuposto a crença de que o comandante do MEC poderá aprender com os estudos e experiências educacionais brasileiras e internacionais.

Neste sentido, um documento que pode ajudar nos rumos do novo MEC é o "Educação Já", texto produzido pelo Todos Pela Educação, movimento que congrega vários atores que atuam e apoiam esse campo, em especial gestores públicos, entidades do Terceiro Setor e pesquisadores do assunto. Trata-se de uma proposta que é fruto do amadurecimento do diagnóstico e da agenda para o setor, resultado de muitas pesquisas sobre o Brasil e a educação no mundo, bem como dos aprendizados que os atores tiveram com a implementação da política educacional desde a redemocratização.

César Felício*: A arbitragem de perdas

- Valor Econômico

Bolsonaro está fadado a fazer a reforma possível

As reformas da Previdência de hoje, em regra, são um jogo onde quase todos perdem. A regra vale para o Brasil e para o mundo. Arma-se um cenário em que se tem, de um lado, o Estado, tentando reter recursos, e do outro dependentes de assistência social, trabalhadores, empregados públicos, em alguns casos empresários, todos submetidos a rodadas adicionais de sacrifícios, pagando mais e trabalhando mais. Nada mais fácil do que armarem-se grandes frentes contra a reforma.

No ano passado, Putin aproveitou a distração na Rússia provocada pela Copa do Mundo para propor uma reforma da Previdência elevando de 60 para 65 anos a idade mínima para homens e de 55 para 63 a das mulheres. Houve grandes protestos populares e Putin foi obrigado a ceder um pouco para obter a chancela do Congresso.

A proposta de Bolsonaro impõe perdas a quase todos, ainda que de forma assimétrica - a base é mais poupada do que o topo - e há um ganhador, o sistema financeiro, a depender do avanço da capitalização. É natural a resistência ao projeto e a tendência que sua aprovação não seja sumária e seu conteúdo seja diluído. Isto não quer dizer que o ambiente para a vitória governista não exista, como já se tratou nesta coluna, mas demandará grande capacidade da articulação da base em saber a hora de ceder e estabelecer as linhas das quais não poderá transigir. Por enquanto esta linha ainda não foi traçada, já que o líder do governo na Câmara, Major Vitor Hugo, disse que não há nenhum ponto intocável na PEC da Previdência, conforme relatou a repórter Ana Krüger no Valor PRO na tarde de ontem.

A reforma da Previdência de Bolsonaro, conforme o que venha a ser proposto em relação à capitalização, carrega uma ironia, em se tratando de um governo com tamanha participação de militares de reserva: marca a reversão de um modelo de seguridade social impulsionado nos governos Castelo Branco, Médici, Geisel e Figueiredo. Retorna-se a um dos fundamentos do que havia antes.

Claudia Safatle*: Previdência ou Previdência

- Valor Econômico

Quanto mais tempo demorar mais dura será a reforma

O cenário para a economia brasileira é claramente binário: ou aprova-se uma boa reforma da Previdência e, a partir daí, pode-se abrir um novo horizonte de crescimento econômico; ou não se aprova e o país cai no imponderável. Esta é a avaliação de várias autoridades do Executivo um dia após o envio ao Congresso Nacional da proposta de emenda constitucional (PEC) que restringe a concessão de benefícios e aposentadorias e que estima uma economia de R$ 1,07 trilhão nos próximos dez anos.

É bastante comum entrar em um gabinete ministerial e ouvir do titular da pasta a constatação de que "estamos à beira do abismo". O desequilíbrio das contas públicas chegou a uma situação insustentável e caberá ao Congresso entender e reagir, sob pena de ressuscitar a inflação.

Se isso não ocorrer, é muito provável que a crise em que o país vai mergulhar demandará uma reforma ainda mais dura a ser aprovada em uma ação emergencial do Parlamento.

A aprovação da nova Previdência Social é necessária para evitar que o Estado, quebrado, saia dando calote de toda natureza e, sobretudo, na dívida interna. Sem a PEC, não há possibilidade de uma retomada mais intensa do crescimento. Com ela, porém, a volta do crescimento é uma forte possibilidade, mas não é uma garantia incontestável.

A expectativa que move o governo e os agentes econômicos é de que a aprovação da reforma da Previdência vai retirar da cena o risco da insolvência do Estado. Esse temor é que está na base da desconfiança dos investidores internos e externos. Removido o risco, haveria um fluxo de capitais estrangeiros no país destinado, principalmente, às obras de expansão da infraestrutura. Ele faria a roda da economia girar, criando demanda e empregos. O problema é que, agora, isso deve coincidir com o processo de desaquecimento das economias mais avançadas.

O Brasil deixou para trás a sua pior recessão, mas a economia não decolou. O país vive quase que uma estagnação da economia.

Com a PEC da Previdência no Congresso, também começará a ser testada a capacidade do presidente Jair Bolsonaro, eleito para romper com o Brasil velho, do toma-lá-dá-cá, de negociar o apoio de uma ampla base parlamentar.

O Congresso também foi renovado para apagar da memória a política da troca de apoio por cargos públicos, em que o ocupante assumia com o compromisso de desviar dinheiro para o partido; quando não, para si próprio.

Tentar reeditar tais práticas será uma temeridade.

José Luis Oreiro: Só a retomada salva o país

- Valor Econômico

Retomada do desenvolvimento exige que o país reinicie processo de "catching-up" industrial e tecnológico

A sociedade brasileira passa por uma profunda crise econômica, política e social desde 2013. As manifestações de 2013 foram o evento catalizador de um processo de crescente descrédito na classe política e, posteriormente, de outras instituições da República.

A insatisfação de parte expressiva da população com a performance dos políticos, em particular, e do Estado, em geral, foi incrementada pelos efeitos deletérios da recessão iniciada no segundo trimestre de 2014 - que foi detonada por um colapso do investimento do setor privado, que se contraiu por três trimestres consecutivos, a taxa de 10% por trimestre. Isso resultou de um processo de "profit squeeze", ou seja, queda das margens de lucro e da taxa de retorno sobre o capital próprio das empresas não financeiras, a qual se tornou na mais duradoura e profunda crise econômica do Brasil nos últimos 30 anos. No auge da crise, mais de 14 milhões de brasileiros estavam desempregados e o PIB apresentou retração superior a 8% em termos reais, com destruição de riqueza de R$ 600 bilhões.

A recessão acelerou o desequilíbrio fiscal da União e dos entes subnacionais, muitos dos quais passaram a enfrentar dificuldades crescentes para manter o pagamento dos servidores em dia. A deterioração crescente do resultado primário da União a partir de 2014 gerou um crescimento acelerado da dívida pública como proporção do PIB, colocando o endividamento da União em trajetória claramente insustentável. A perda de espaço fiscal decorrente desses desdobramentos impediu a realização de uma política fiscal anticíclica justamente no momento em que a mesma era mais necessária. Pelo contrário, a política fiscal executada em 2015 foi francamente contracionista, amplificando assim os efeitos da recessão iniciada em 2014.

Outro fator que amplificou os efeitos recessivos do colapso do investimento privado foi a elevação da taxa básica de juros promovida pelo Banco Central em 2015, na tentativa de debelar os efeitos de segunda ordem que o aumento das tarifas dos públicas e dos combustíveis poderiam ter sobre a dinâmica da taxa de inflação.

O desemprego crescente aguçou a percepção de que a crise brasileira era o resultado da corrupção generalizada dentro do Estado, tal como estava sendo revelado ao público pela Lava-Jato. Essa percepção acabou por gerar um sentimento difuso de "ódio" à classe política, principalmente aos políticos diretamente ligados ao PT.

O imenso apoio popular ao impeachment da presidente Dilma Rousseff foi a demonstração clara de que, na cabeça do cidadão mediano, a crise era resultado direto da corrupção dirigida e organizada pelo PT e seus aliados. Nesse contexto, uma ampla parcela da população acreditava que o afastamento do PT do poder, pelo impeachment, cujas bases jurídicas eram duvidosas, seria uma condição necessária, quando não suficiente, para o fim da corrupção e para a retomada do crescimento econômico.

Os primeiros meses do governo Michel Temer pareciam apontar para uma retomada robusta do crescimento no início de 2017, ainda que poucas pessoas acreditassem na vontade do governo de combater a corrupção.

O governo Temer apresentou à sociedade brasileira uma narrativa essencialmente ortodoxa das causas da crise de 2014 a 2016. O problema fundamental era o desequilíbrio fiscal estrutural, resultado do "contrato social" estabelecido pela Constituição de 1988. Segundo economistas ligados ao governo, a Constituição havia produzido um conjunto de benefícios sociais para os mais pobres e de privilégios para os funcionários públicos que impunham um ritmo para o crescimento dos gastos públicos (entre 5 a 6% ao ano em termos reais) que era muito superior à capacidade de crescimento da economia.

Fernando Gabeira: Brasil, uma visão de tempo

- O Estado de S. Paulo

Nada se parece mais com comunista do que as ideias de Bolsonaro sobre meio ambiente

A longo prazo estaremos todos mortos. Essa frase, atribuída a lorde Keynes, é verdadeira. Mas prefiro ficar com as dimensões de tempo descritas pelo grande historiador Fernand Braudel: o tempo imediato é local, a convergência de fatos que produzem uma nova conjuntura é a extensa linha do longo prazo. Naturalmente, estaremos todos mortos, mas existe uma linha de longo prazo e devemos interrogá-la para definir uma estratégia.

No meu entender, a vitória de Bolsonaro é uma convergência de fatos que produziu uma nova conjuntura. Mas continuo achando que na linha do tempo, no longo prazo, o Brasil não pode fugir de seu destino de detentor de grandes riquezas naturais que são um trunfo econômico e diplomático.

O governo Bolsonaro foi eleito pela maioria, de forma democrática. Alguns de seus ministros, Agricultura e Meio Ambiente, consideram que o controle ambiental sobre a produção é coisa de comunista fantasiado de defensor do meio ambiente. Melancias, verdes por fora, vermelhas por dentro. O chanceler Ernesto Araújo classifica o aquecimento global como uma invenção do marxismo globalizante.

Isso não corresponde à realidade. Eles não conhecem um país comunista. Não visitaram o Leste Europeu, não viram a devastação ambiental deixada pelo regime. Os desastres por lá, a julgar por Chernobyl, eram piores que os nossos. Aqui, contaminamos com lama e minério dentro de nossas fronteiras. As usinas nucleares espalham a radiação por todo o continente, às vezes além dele.

Os ministros de Bolsonaro ignoram até o debate nacional. Em 2003, quando saí do PT, afirmei que o partido tinha uma visão ambiental atrasada e replicava a visão dos velhos partidos comunistas. A ideia dos antigos quadros era de que o essencial era o crescimento econômico, a melhoria de condições dos trabalhadores. Era preciso competir e vencer o Ocidente.

Eliane Cantanhêde: Maduro e os militares

- O Estado de S.Paulo

Maduro só não caiu porque tem sustentação das Forças Armadas, altamente corruptas

É altamente constrangedor, mas a verdade é que o último elo de sustentação do agonizante regime de Nicolás Maduro são as Forças Armadas da Venezuela e elas são, antes mesmo de Hugo Chávez, incluídas entre as mais corruptas das Américas.

Essa avaliação percorre os gabinetes militares do governo Jair Bolsonaro, que busca portas e atalhos para manter-se informado não apenas sobre a situação e os movimentos do próprio Maduro, como também sobre a disposição e as divisões dentro das Forças Armadas, que têm mais de mil generais. Um espanto!

Maduro é tratado no Brasil, no governo e fora dele (exceto em parte do PT), como patético, mas, ainda assim, perigoso. As Forças Armadas são fundamentais para apagar esse último adjetivo, mas insistem em apoiá-lo.

Um dia depois do grande momento de Bolsonaro, com o lançamento da “nova Previdência”, a quinta-feira foi tomada pela surpresa e pela discussão sobre a decisão de Maduro de fechar as fronteiras entre os dois países para impedir a entrada de caminhões com alimentos e medicamentos.

De certa forma, é uma declaração de guerra, ao menos de guerra branca. Curiosamente, o vice Hamilton Mourão vai participar da reunião do Grupo de Lima, em Bogotá, e Bolsonaro se reuniu com os ministros Augusto Heleno (GSI) e Santos Cruz (Secretaria de Governo), além de Onyx Lorenzoni (Casa Civil), sem convocar o chanceler Ernesto Araújo, só contatado por telefone. Depois, o porta-voz Rêgo Barros evitou um tom beligerante ou qualquer vestígio de ameaça, só avisando que a “Operação Acolhida” está mantida.

Pedro Doria: O fascismo e o digital

- O Estado de S.Paulo / O Globo

Grandes transições econômicas deixam todos numa grande insegurança

Deixe que uma discussão transcorra por tempo o bastante na internet, diz a Lei de Godwin, e alguém por certo será comparado a um nazista. Mais recentemente, a política do mundo parece ter embarcado nesta – tem muita gente vendo fascistas por todo lado. Há muito de paranoia, nisto. Há também uma intolerância da esquerda com a direita. Por tanto tempo se chamou o centro de direita que quando aquela, a verdadeira, dá suas caras muita gente a recebe com espanto. Mas há também, entre os que veem um mundo assombrado por fascistas, alguma razão.

Esta discussão tem tudo a ver com o ódio nas redes, assim como tem com a reforma da Previdência.

O fascista original é Benito Mussolini, convidado pelo rei italiano a formar gabinete como primeiro-ministro em 1922, e morto pela ira do povo em 45. História é pop e, em geral, o conhecimento que temos de história é aquele dos clipes curtos e uns marcos fundamentais. Fascismo, portanto, é aquele governo totalitário da direita de durante a Segunda Guerra, aquela mesma que fez o Holocausto.

Mas o fascismo original não nasceu totalitário, tampouco surgiu do nada. E, se a afirmação parece polêmica, ela é de Palmiro Togliatti, sucessor de Antonio Gramsci como secretário-geral do Partido Comunista Italiano, que comandou entre 1926 e 1964. O fascismo nasceu como improviso em cima de uma situação atípica.

A Itália imediatamente após a Primeira Guerra vivia uma situação econômica muito complexa. O conflito empobreceu a todos, custou a vida de 7% da população masculina e, não bastasse, a transição de uma economia agrícola para industrial estava a pleno vapor.

Estas grandes transições econômicas deixam a todo mundo numa grande insegurança. Profissões estão desaparecendo. Gente que achou que trabalharia no mesmo ramo de pais e avós, de repente, vê aquela garantia desaparecer. Não há ideia do que será o futuro, sobram insegurança e incerteza. É um cenário tão difícil que o liberalismo não tem respostas imediatas para dar. A democracia liberal é mais frágil quando o mundo está em mudança rápida. Só os radicais têm respostas claras. No biênio imediatamente anterior à repentina ascensão de Mussolini, parecia que os comunistas fariam na Itália sua segunda revolução. Era uma greve após a outra, quase deu. Naquele cenário pós-guerra, com inúmeros veteranos desempregados na rua, Mussolini os reuniu, vestiu-os com camisas pretas, e saiu por ali impondo ordem na base do murro. Morreu muita gente nos embates entre fascistas e sindicalistas.

Rogério L. Furquim Werneck: Desordem unida

- O Estado de S.Paulo / O Globo

Governo precisa reformatar com urgência sua articulação com o Congresso Nacional

Na semana passada, o País acompanhou atônito a eclosão de ruidosos desentendimentos no seio do que se supunha ser o núcleo duro do governo. O que mais impressiona é como um presidente com formação militar deixou que uma escalada de desavenças palacianas menores escancarasse a tal ponto a cizânia que se estabelecera no Planalto, justo quando se esperava que o governo estivesse cerrando fileiras para enfrentar a grande batalha parlamentar cujo desfecho selará seu destino.

O episódio mostrou que a cúpula do governo continua operando como potente amplificador de crises. E não parece ser só uma questão de incontinência dos irmãos Bolsonaro. A personalidade peculiar do presidente e a desalentadora complacência com que vem tratando as destrambelhadas intromissões dos filhos em questões de Estado são partes cruciais do problema. E, por enquanto, nada indica que tais dificuldades estejam prestes a desaparecer.

No início desta semana, a crise palaciana parecia ter sido superada, com a substituição do titular da Secretaria-Geral da Presidência da República por mais um militar. Mas, já na terça-feira, a divulgação de trocas de mensagens entre Gustavo Bebianno e o presidente voltou dar alento à crise.

Paralisado por desavenças, o Planalto mostra-se alarmantemente despreparado para enfrentar com sucesso a batalha da reforma da Previdência, como bem mostrou a acachapante derrota, de 367 a 57, que sofreu na Câmara há poucos dias. Três semanas após o reinício das atividades do Congresso, o governo parece ter avançado pouco ou nada na montagem de uma base parlamentar respeitável, com as dimensões requeridas para aprovação de uma reforma da Previdência com a abrangência e a profundidade que o Ministério da Economia vem acertadamente contemplando.

Celso Ming: O fechamento da fábrica da Ford

- O Estado de S.Paulo

O jeito mais desastrado de tentar salvar a fábrica de caminhões da Ford, em São Bernardo, cujo fechamento foi anunciado terça-feira pelo seu presidente para a América do Sul, Lyle Watters, é procurar nova rodada de socorro do governo.

É um jeito desastrado por duas razões: primeira, porque ignora os motivos dos prejuízos que levaram à decisão de fechamento da fábrica; segunda razão, porque o recurso às tetas públicas seria nova tentativa de proteger o que já não tem remédio.

A indústria automobilística mundial enfrenta uma revolução. Não se trata apenas de adaptar os sistemas de produção às novas imposições da indústria 4.0. Os veículos que começam a tomar o mercado mundial não têm nada a ver com os que conhecemos desde o fim do século 19. São veículos elétricos ou híbridos, autônomos (sem condutor).

O governo dos Estados Unidos tende a considerar os carros elétricos e autônomos como imposição regulatória descabida dos países europeus, que apenas disfarçam uma política protecionista. De acordo com esse ponto de vista, os governos europeus se apegam a questões ambientais (discutíveis para os norte-americanos) para banir veículos movidos a combustíveis fósseis. Como está bem mais atrasada no desenvolvimento dos veículos com nova tecnologia, caso da Ford e da GM, a indústria norte-americana está perdendo batalha importante na guerra comercial. Daí porque o governo Trump passou a encarar o comércio de veículos entre Estados Unidos e Europa como questão de segurança nacional, como bem vem observando a chanceler da Alemanha, Angela Merkel.

Merval Pereira: Narrativa política

- O Globo

Governo abre mão de receita com objetivos sociais, cobrando mais de quem ganha mais, e menos de quem ganha menos

A proposta da equipe econômica, comandada por Paulo Guedes, está sendo acompanhada de uma narrativa política que fez falta nas últimas tentativas de reformar a Previdência. O único segmento em que haverá uma queda da arrecadação é o setor privado, porque o governo está reduzindo a alíquota daqueles que ganham menos, de 8% para 7,5%.

Como são muito mais numerosos, o governo está abrindo mão de receita com objetivos sociais, cobrando mais de quem ganha mais, e menos de quem ganha menos, como será o mote da propaganda de convencimento da opinião pública.

Essa queda de arrecadação é compensada pelo setor público, cujos servidores vão perder privilégios, e reajustes nos benefícios. A reforma é um avanço na equiparação das aposentadorias de servidores às dos demais trabalhadores.

Mesmo servidores que entraram no serviço público antes de 2003, protegidos por outras reformas, vão ter que trabalhar mais para garantir a integralidade do salário ao se aposentar. Outro setor delicado atingido é o dos próprios parlamentares que vão se debruçar sobre as mudanças.

Hoje, deputados se aposentam com 60 anos e 35 de contribuição. A idade mínima vai passar para 65 anos, como todos os brasileiros, limitado ao teto do INSS.

O governo, através de seus membros políticos envolvidos na apresentação das medidas, especialmente o secretário Rogério Marinho, que na quarta-feira deu uma entrevista esclarecedora ao “J10” da GloboNews, bate em uma tecla: investimentos represados em segurança pública, educação, saúde pública, infraestrutura, detonadores das manifestações de 2013 contra a má qualidade dos serviços públicos oferecidos, poderão ser realizados em beneficio do conjunto da sociedade brasileira.

Bernardo Mello Franco: Ministro que pediu foro criticava a regalia

- O Globo

Em 2018, o ministro do Turismo disse que o foro privilegiado ajudava a encobrir ‘crimes gravíssimos cometidos por autoridades’. Ontem ele pediu ao STF para contar com a regalia

O ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, quer suspender o inquérito que apura o laranjal do PSL em Minas Gerais. Ele pediu ao Supremo que leve a investigação do caso para Brasília. Apelou à blindagem do foro privilegiado, velho aliado de políticos em apuros.

A manobra revela que o ministro não se contentou em driblar a Justiça ao declarar gastos com candidatas de fachada. Ele também aplicou um balão nos eleitores mineiros. Pelo menos nos que acreditaram em sua pregação contra o foro.

No ano passado, Álvaro Antônio participou de uma comissão especial da Câmara que discutiu o fim da regalia. Em requerimento apresentado em junho, afirmou que o foro estimulava a impunidade dos poderosos ao contribuir para o “abarrotamento” do Supremo.

“Outro não podia ser o resultado, senão a paralisia institucional que ocasiona a prescrição de inúmeros crimes gravíssimos cometidos por autoridades”, argumentou o deputado, que se licenciou para virar ministro.

Míriam Leitão: A difícil crise da Venezuela

- O Globo

Brasil em hipótese alguma vai cruzar a fronteira da Venezuela, mas esse fechamento imposto por Maduro elevou muito a tensão entre os dois países

A visão do Brasil é que a tensão está na divisa entre Colômbia e Venezuela. E a decisão tomada é de, em hipótese alguma, o Brasil cruzar a fronteira, segundo disse um integrante do governo. O anúncio da Venezuela de fechar a fronteira com o Brasil coloca o país numa situação rara na história das relações com os vizinhos. De um lado, o presidente Nicolás Maduro, cercado de militares, anunciou o fechamento da fronteira, de outro, o porta-voz da Presidência brasileira, Otávio Rêgo Barros, confirmou que os alimentos e remédios serão enviados o mais próximo da Venezuela, à espera de que caminhoneiros venham buscar. Mesmo que eles consigam atravessar, certamente enfrentarão violência do lado de lá. O nosso ponto fraco, como se sabe, é a dependência de Roraima da energia da hidrelétrica de Guri.

Das várias coisas estranhas desta crise, uma é o reconhecimento de Juan Guaidó como presidente da Venezuela, que de fato ele não é.

— O ato de reconhecimento pressupõe controle do território, controle do poder real. Esse é o primeiro requisito do reconhecimento. E Guaidó não tem isso. O que se esperava nessa ação de vários países era criar uma situação que favorecesse a queda de Maduro, mas isso foi há quase um mês, ele permanece controlando o país, e tudo o que se espera é uma cisão nas Forças Armadas — diz o embaixador Rubens Ricupero.

Em 2018, houve um impedimento por decisão judicial de entrada de venezuelanos, mas o bloqueio logo foi suspenso. Fechamento com tropas da divisa do Brasil não ocorre há muito tempo.

— Fui chefe da divisão de fronteiras, e nos últimos 50 anos não me lembro de um fechamento como esse. O temor de Maduro é de que haja uma invasão militar do país, não pelo lado brasileiro, mas pelo lado da Colômbia, que tem uma fronteira muito mais povoada e muito mais porosa. A presença do vice-presidente americano na Colômbia neste fim de semana aumenta essa tensão — afirmou Ricupero.

Luiz Carlos Azedo: Quem matou Marielle?

- Correio Braziliense

“Há provas suficientes de que o crime foi meticulosamente planejado e executado por profissionais. Não foi por outra razão que o ex-secretário de Segurança Richard Nunes responsabilizou as milícias”

A Polícia Federal realizou ontem, no Rio de Janeiro, uma operação para cumprir oito mandados de busca e apreensão relacionados às investigações do caso Marielle Franco, a vereadora do PSol assassinada numa emboscada, com o seu motorista, Anderson Gomes. O alvo das operações foram os policiais envolvidos nas investigações do caso que, até hoje, não foi elucidado, embora o então secretário de Segurança Pública, general Richard Nunes, tenha, à época, anunciado que as apurações haviam chegado muito perto dos envolvidos. As medidas foram autorizadas pela Justiça Estadual após serem submetidas ao Ministério Público do Rio de Janeiro, mas estão sendo determinadas pelo procuradora-geral da República, Raquel Dodge.

A origem da investigação é um longo depoimento do miliciano Orlando de Curicica a dois procuradores federais, no Presídio Federal de Mossoró, no qual contou que o responsável pela Divisão de Homicídios, Giniton Lages, esteve no presídio de Bangu para ouvi-lo e queria que confessasse que matou Marielle a mando do vereador carioca Marcelo Siciliano, do PHS. Ambos foram acusados por um policial militar considerado a peça-chave da investigação feita pela Delegacia de Homicídios do Rio de Janeiro. No longo depoimento, Orlando acusa a testemunha de ser um miliciano que se desentendeu com ele, disse ter respondido ao delegado Giniton Lages que não tinha envolvimento com o caso e que o delegado teria pedido então para ele acusar o vereador Marcelo Siciliano. “Fala que o cara te procurou, pediu para você matar ela, você não quis, e o cara arrumou outra pessoa. Mas que o cara que pediu para matar ela”, teria dito o delegado. Orlando também descreveu como atuam as milícias no Rio de Janeiro.

No jargão das investigações criminais, não existe crime de mando sem um “bode”. Isto é, alguém que possa ser incriminado por um crime porque teria algum tipo de desavença ou disputa com a vítima. No caso Marielle, há provas suficientes de que o crime foi meticulosamente planejado e executado por profissionais. Não foi por outra razão que o general Richard chegou a responsabilizar as milícias: “Era um crime que já estava sendo planejado desde o fim de 2017, antes da intervenção”, disse à época. “Ela estava lidando em determinada área do Rio controlada por milicianos, onde interesses econômicos de toda ordem são colocados em jogo.”

Ricardo Noblat: Aperta o cerco a Flávio

- Blog do Noblat | Veja

Pai sem sossego
Depois de um período de calmaria aparente, o bicho voltou a morder os calcanhares do senador eleito Flávio Bolsonaro com a decisão da procuradora-geral da República Raquel Dodge de incumbir o Ministério Público Federal (MPF) do Rio de apurar se Flávio praticou crime de lavagem de dinheiro na negociação de imóveis.

Caberá ao MPF responder à seguinte pergunta: as “negociações-relâmpago” de imóveis pelo filho do presidente resultaram ou não em um aumento patrimonial incompatível de Flávio? Se a resposta for sim, ele passará à condição de processado. Será mais um rolo que o senador terá de administrar.

Desde maio do ano passado que o MPF está de olho em Flávio. Chegou a ele a partir de uma investigação sobre grilagem de terras envolvendo milicianos. Foi assim também que chegou a Fabrício Queiroz, assessor de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio, que empregou parentes de milicianos no gabinete do seu patrão.

Não se descarta a hipótese de que Flávio tenha algo a ver com o laranjal do PSL, seu partido e o do pai. Falsas candidaturas lançadas no ano passado serviram para desvio de dinheiro público. Crescem os indícios de que isso aconteceu por toda parte, especialmente no Rio, Minas Gerais, Pernambuco e Rio Grande do Sul.

É grande o incômodo de Jair Bolsonaro com o escândalo que ameaça tragar o PSL e respingar em sua trajetória de candidato a presidente da República. A necessidade de se aprovar no Congresso a reforma da Previdência poderá salvar Bolsonaro de abalos maiores, mas isso não é garantia para tudo e para todo sempre.

Bolsonaro e o plim, plim

Bebianno estragou tudo
O que mais deixou o presidente Jair Bolsonaro furioso com o ex-ministro Gustavo Bebianno foi a divulgação do áudio onde ele diz que a Rede Globo é sua inimiga, e que o diretor de relações institucionais da Globo, Paulo Tonet, não deveria ser recebido por Bebianno no Palácio do Planalto.

Ora, Tonet seria recebido em audiência que constava da agenda pública de Bebianno postada na internet. Nada havia, pois, de clandestino. Tonet já esteve com vários ministros do governo, alguns deles militares. Representa a Globo em Brasília. Conversa com todo mundo, à direita e à esquerda. É um executivo respeitado.

Ocorre que Bolsonaro estava convencido de que mais adiante poderia fazer as pazes com a emissora, e assim agindo – imaginava ele -, a Globo talvez viesse a diminuir suas eventuais críticas ao governo. A reação da Globo ao que disse Bolsonaro a propósito de Tonet poderá inviabilizar uma possível reaproximação.

Dora Kramer: Bizarrice tem hora

- Revista Veja

Perigo mesmo é a filharada Bolsonaro investir contra Guedes e Moro

O envio ao Congresso de duas propostas da maior importância para o país, a reforma da Previdência e as medidas relativas à segurança pública, salvou o governo de ficar refém da lama remexida por Jair Bolsonaro & filhos no episódio que resultou na demissão de Gustavo Bebianno da Secretaria-Geral da Presidência.

Diante da seriedade e urgência dos temas, o forrobodó foi deslocado para segundo plano. O problema é que não saiu de cena, dada a vocação do presidente para misturar administração governamental com gerência de questões familiares. Se Jair Bolsonaro tem controvérsias com os filhos decorrentes da separação da mãe dos três e busca resolvê-las sendo permissivo diante da atuação deles, o Brasil não tem nada a ver com a história da família e muito menos precisa pagar o preço por isso.

Como ocorre em todos os governos envolvidos em crises, o atual tenta dar por “virada a página” por decreto de vontade. Não controla, contudo, as sequelas que talvez não atuem diretamente sobre a votação da reforma da Previdência, mas por certo terão influência sobre a relação do mundo com o governo.

Hoje a incerteza é geral. Entre parlamentares, no mercado financeiro, no meio dos militares protagonistas da nova ordem e na própria sociedade, considerando que muitos eleitores de Bolsonaro desaprovam a condução do presidente no episódio que acabou com a demissão de Bebianno.

Há um clima de desconfiança e de incerteza sobre o processo mental e a sistemática de atuação do presidente, por enquanto seguindo padrões absolutamente fora dos habituais, não necessariamente eficientes por serem novos. Bolsonaro tende a desprezar as críticas tomando por base o fato de ter sido eleito a despeito delas.

Monica De Bolle: As certezas desta vida

- Época

A reforma pode sofrer desidratação maior que a de Temer, caso em que possivelmente não haveria de gerar economias suficientes para satisfazer os investidores e as necessidades do país.

Dizem que na vida há duas certezas: morreremos e pagaremos impostos. No caso das vidas brasileiras, acrescentaria mais uma certeza: morreremos, pagaremos impostos e assistiremos à desidratação inevitável da reforma da Previdência. Isso, é claro, se a reforma passar no Congresso. Essa certeza não temos, como deixou claro o deputado Elmar Nascimento, líder do DEM na Câmara.

Já contamos cerca de 50 dias de existência do governo Bolsonaro. Nestes 50 dias, presenciamos: as estultices do trio Damares-Ernesto-Ricardo; a ignorância do ministro do Meio Ambiente, que não sabia muito bem quem foi Chico Mendes, além de ter sido indiciado por improbidade administrativa; as alegações sobre os candidatos laranjas que o PSL utilizou para ter acesso ao Fundo Partidário; a ascensão dos filhos do presidente à condição de presidentes auxiliares; o caso Queiroz e os problemas do filho senador com dinheiro e milícias; a contínua negação de que houve uma ditadura militar no Brasil; os ataques incansáveis à imprensa e aos jornalistas; a ameaça do comunismo imaginário; as brigas no Twitter entre um dos filhos de Bolsonaro e o ministro de sua própria sigla, ex-presidente do PSL que acolheu todo o clã familiar; os áudios gravados em WhatsApp da conversa tosca entre Bolsonaro e Gustavo Bebianno em que o presidente da República é continuamente chamado de “capitão”; as mentiras de Bolsonaro sobre as conversas com Bebianno e a traição presidencial para proteger o filhote. É certeza que falta coisa nessa lista, mas, em frente.

Passadas pouco menos de 24 horas da divulgação dos áudios que causaram no mínimo estremecimento entre Bolsonaro e seu partido — portanto, alguns danos à solidez da base governista no Congresso, para não falar da traição de Bolsonaro, que por certo cria desconfiança —, veio a reforma da Previdência. É cedo para avaliá-la, pois a apresentação divulgada pelo governo revela apenas alguns pontos fundamentais. A cifra que saltou aos olhos do mercado, evidentemente, foi a economia de R$ 1 trilhão nos próximos dez anos, o que muito faria para restaurar a sustentabilidade das contas públicas brasileiras.

Hélio Schwartsman: Presidência ao sabor do acaso

- Folha de S. Paulo

Forças do acaso são poderosas e imprevisíveis o bastante para permitir até que Bolsonaro e família não estraguem tudo

Uma das forças mais desprezadas pelo nosso psiquismo é o acaso. Experimente dizer a um executivo que o sucesso da empresa que ele comanda se deve à sorte e não a seu talento e perseverança, e você provavelmente será agraciado com uma série de impropérios.

Fora o fato de que talento e perseverança são em parte determinados pela loteria genética, encaixando-se na categoria sorte, análises estatísticas mostram que o acaso é ubíquo e robusto em praticamente todas as atividades humanas. Não é que o comandante não importe —em qualquer cenário, ele conserva enorme capacidade de estragar tudo—, mas há sempre uma enorme gama de fatores que estão fora de seu controle e que são decisivos para o bom ou mau desempenho da companhia.

Faço essas reflexões a propósito do governo Bolsonaro. Desde antes da eleição eu vinha dizendo que o julgava completamente despreparado para o cargo. A forma como agiu no episódio da fritura e demissão do ministro Gustavo Bebianno mostra que eu fora tímido em minha avaliação.

Bruno Boghossian: Óleo de peroba

- Folha de S. Paulo

Malandragem com dinheiro público desmascara candidatos que fizeram campanha com Bolsonaro

Sergio Moro deveria sugerir um novo tipo penal para lidar com laranjas e outros espertalhões eleitorais que rondam o governo.

No crime do caixa próprio, estaria enquadrada Carmen Flores, que concorreu ao Senado pelo PSL sob o estandarte de Bolsonaro. Ela perdeu a disputa, mas não saiu no prejuízo.

Carmen diz que não queria se eleger, mas torrou R$ 200 mil de dinheiro público mesmo assim. Ela repassou R$ 40 mil do fundo partidário à filha pelo aluguel de um imóvel e gastou mais R$ 34 mil em sua própria loja de móveis e decoração. O dinheiro era suficiente para comprar 34 conjuntos de mesas e cadeiras.

Como boa parte da trupe que pegou carona com Bolsonaro, Carmen pediu votos coberta com a bandeira do combate à corrupção. A lei não proíbe a contratação de parentes com dinheiro do contribuinte e os valores são tímidos perto de outros escândalos, mas a malandragem desmascara o discurso.

Reinaldo Azevedo: Uma boa reforma e um governo ruim

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro promove nova Previdência apesar do seu reacionarismo, não em razão dele

A proposta de reforma da Previdência é boa. O governo é ruim. Não se trata de ser sentencioso sobre o futuro —que só pertence a Deus, como dizem, porque a ninguém foi dado o dom da predição. A coitada da Cassandra, que recebeu esse presente literalmente de grego, conseguia, sim, enxergar o amanhã, mas ninguém acreditava nela, daí que fosse vítima de uma maldição, não de um privilégio. Cassandra evidencia que é preferível —e até mais rentável— ser um otimista abobalhado a um realista incômodo.

Na sexta passada (15), lembrei aqui o poeta Constantino Kaváfis e o texto "À Espera dos Bárbaros" —aqueles que chegariam para responder a todas as irresoluções dos romanos. Assim estamos nós com a reforma da Previdência. A mudança passou a ser uma condição necessária para o país ambicionar um outro padrão e um outro patamar de desenvolvimento, com mais inclusão e equidade social. Mas ela está longe de ser uma condição suficiente. É mentirosa a inferência de que todas as nossas iniquidades derivem das injustiças previdenciárias, que são flagrantes, ainda que o modelo em curso possa ser acusado de tudo, menos de justo.

É confortável e errado estabelecer um nexo causal entre um governo que se revela patologicamente reacionário e a sua determinação de promover a reforma, como se esta fosse a expressão econômica, material propriamente, de uma inflexão política que requer, para se efetivar, o que é lido como a espoliação dos mais pobres, a cassação de direitos, a marginalização dos oprimidos. Há uma mentira factual irrespondível nessa hipótese: a espinha dorsal do texto está na diminuição de privilégios brutais, embora os pobres também sejam alcançados pelas medidas.

Vinicius Torres Freire: A reforma dos pobres e miseráveis

- Folha de S. Paulo

Reforma Bolsonaro-Guedes implica cortes pesados na assistência para desvalidos

A reforma da Previdência para os pobres ou quase miseráveis tem razões que o coração desconhece.

Estamos falando aqui de idosos e deficientes muito pobres e trabalhadores rurais. A reforma Bolsonaro-Guedes deve ser podada por aí.

Para pensar um pouco no problema, é preciso considerar alguns dados básicos sobre o sistema de assistência social bancado pelo governo federal.

O Bolsa Família paga em média R$ 187,56 por mês a cada uma das 13,9 milhões de famílias miseráveis atendidas pelo programa (quase 50 milhões de pessoas). Na conta para o ano inteiro, custa pouco mais de R$ 31 bilhões.

O INSS paga benefícios a idosos de 65 anos ou mais e a deficientes muito pobres de qualquer idade.

Chamados de BPC (Benefício de Prestação Continuada), atendem cerca de 4,7 milhões de pessoas, 43% delas idosas, que recebem um salário mínimo mensal (R$ 998, em 2019). A conta anual foi de R$ 57 bilhões em 2018.

Na reforma Bolsonaro-Guedes, idosos muito pobres teriam direito a BPC a partir de 60 anos, mas de apenas R$ 400 por mês. A partir dos 70, um salário mínimo. Há grita quase geral.]

O jabuti de Paulo Guedes: Editorial | O Estado de S. Paulo

Há um jabuti enorme e luzidio no projeto de reforma da Previdência - um generoso favor a empregadores interessados em demitir funcionários já aposentados. Se o texto for aprovado com essa aberração, aposentados serão demissíveis sem a multa de 40% sobre seu Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Ninguém se surpreenderá se empresários aplaudirem a mudança. Mas haverá uma grande surpresa se o ministro da Economia, Paulo Guedes, conseguir explicar a relação entre essa novidade e a redução do buraco no sistema de aposentadorias e pensões. Jabutis, no jargão político, são itens introduzidos de contrabando em projetos de lei ou em textos de medidas provisórias. Os autores da manobra são geralmente congressistas. Desta vez, o pacote foi entregue ao Legislativo já com o bicho misturado aos componentes normais. O Executivo fez todo o serviço, antecipando-se à esperteza de algum parlamentar.

Aprovado o projeto, quem se aposentar e continuar empregado também deixará de receber o depósito mensal do FGTS. Se o contrato for anterior à vigência da nova lei, o depósito será mantido, mas a multa por demissão sem justa causa será eliminada. As finanças da Previdência em nada serão beneficiadas com essas alterações. Não há, portanto, como descaracterizar o contrabando, mas o ministro da Economia ainda teria de explicar um detalhe: o governo também deixará de receber, nesse caso, a multa equivalente a 10% do saldo do FGTS? Deixará, obviamente, quando o depósito mensal já tiver sido extinto. E antes disso?

A conta dos pobres: Editorial | Folha de S. Paulo

Proposta de reforma da Previdência também afeta programas assistenciais; impacto social deve ser avaliado com cuidado na negociação legislativa

No que talvez seja seu aspecto mais problemático, a proposta de reforma previdenciária apresentada pelo governo Jair Bolsonaro (PSL) endurece regras para programas de características assistenciais.

Tal como foi enviado ao Congresso na quarta-feira (20), o texto atinge o chamado benefício de prestação continuada (BPC), destinado ao amparo dos mais pobres, e o regime de aposentadoria dos trabalhadores rurais, no qual as contribuições dos segurados e seus empregadores é hoje ínfima.

No caso do BPC, a exigência de idade para o recebimento de um salário mínimo mensal (R$ 998) sobe de 65 para 70 anos —abrindo-se a possibilidade de um pagamento de R$ 400 aos 60 anos. Para os segurados do setor agropecuário, torna-se obrigatório comprovar 20 anos de contribuição.

As medidas suscitam preocupação porque afetam parcelas mais vulneráveis da sociedade. O benefício de prestação continuada se destina a idosos com renda familiar per capita inferior a um quarto do piso salarial, enquanto na Previdência rural a aposentadoria média é de R$ 1.330 mensais.

A versão original da reforma encaminhada em 2016 pelo ex-presidente Michel Temer (MDB) também trazia restrições aos dois programas. Diante da reação política e de objeções técnicas à iniciativa, os dispositivos foram retirados do projeto durante a tramitação na Câmara dos Deputados.

Reforma dá fôlego para estados e municípios: Editorial | O Globo

Se forem aprovadas, mudanças na Previdência ajudam governadores e prefeitos a saírem da crise fiscal

Depois de três renegociações de dívidas patrocinadas pela União, sem que se afastassem de vez das turbulências da crise fiscal, os estados enfim veem abrirse, pela reforma da Previdência, uma porta de saída — a do ajuste na seguridade do funcionalismo, sem deixar de fora servidores estaduais e municipais.

Essas rodadas de renegociação provam que a crise que enfrentam governadores e prefeitos deriva menos do estoque da dívida pública e bem mais dos fluxos das despesas com salários do funcionalismo da ativa, e da folha de aposentados e pensionistas.

Como no caso da União, estes gastos crescem de forma autônoma. Seja devido à indexação ou impulsionados pelo processo demográfico acelerado de envelhecimento da população.

Entre 27 estados, há um em processo de recuperação fiscal, o Rio de Janeiro — mediante acordo com o Tesouro —, mas com prognósticos incertos; Goiás e Mato Grosso já se declararam de maneira formal em situação de “calamidade financeira”, e há outros que podem admitir o risco de insolvência.

Pontos que extrapolam objeto da reforma também são polêmicos: Editorial | Valor Econômico

A proposta de reforma da previdência enviada pelo governo ao Congresso traz mudanças institucionais importantes, para além das modificações de elegibilidade, mecanismos de transição, valores de contribuição e direitos. Praticamente tudo que se refere às aposentadorias e pensões dos regimes próprios de previdência (RPPS) dos servidores públicos deixará de ser inscrito no texto constitucional e passará a ser objeto de projeto de lei complementar, o que exigirá um quorum de votação em um único turno, por maioria simples (50% mais 1) no Congresso. Com isso elimina-se a barreira forte dos 308 votos favoráveis, com dois turnos nas duas Casas, que desencoraja e dificulta alterações no regime que beneficia o funcionalismo em relação aos demais contribuintes, que lhes pagam a aposentadoria, sem, no entanto, usufruir de suas benesses.

A PEC, porém, extrapola objetivos para fora do campo da previdência. Propostas periféricas ao núcleo reformador, elas poderão ser derrubadas ao longo do caminho, sem retirar muito da potência da reforma, que pretende obter economias de R$ 1,074 trilhão em dez anos. Um dos exemplos é a dispensa do pagamento de multa de 40% do FGTS para o trabalhador que já se aposentou e continua empregado. A empresa não necessitará mais realizar o depósito mensal de 8% do Fundo para o aposentado. A medida nada tem a ver com o INSS, reduz custos das empresas e atinge cerca de 5 milhões de aposentados que trabalham.

Alceu Valença:Voltei Recife

Fernando Pessoa: Depus a máscara

Depus a máscara e vi-me ao espelho.
Era a criança de há quantos anos.
Não tinha mudado nada...
É essa a vantagem de saber tirar a máscara.
É-se sempre a criança,
O passado que foi
A criança.
Depus a máscara, e tornei a pô-la.
Assim é melhor,
Assim sem a máscara.
E volto à personalidade como a um términus de linha.