domingo, 13 de janeiro de 2019

*Marco Aurélio Nogueira: O bode expiatório

- Época

O que está por trás dos ataques dos bolsonaristas ao chamado “marxismo cultural” e como isso pode empobrecer a democracia e prolongar a crise do sistema político

Não é só o governo Bolsonaro, com seus ministros que disparam petardos ideológicos em cada fala.

Há no país uma onda mal-ajambrada que quer criar um bode expiatório no campo da política, da ação governamental e da cultura. Em nome do ataque ao “marxismo cultural”, ela se alimenta de uma enorme ignorância e de um deliberado esforço de provocação.

A obsessão é uma só. Surge límpida no discurso de posse do presidente, convencido de que a partir dele “o povo começou a se libertar do socialismo, da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto”, falando como se esses problemas tivessem relação de causalidade. Promessas vagas de “combater o marxismo nas escolas” e perseguir os comunistas são feitas a todo momento, sem que se deem muitas explicações a respeito.

A mixórdia temática não é compartilhada pelo núcleo principal do novo governo, integrado pelos generais e por Paulo Guedes e Sergio Moro, ministros mais concentrados na gestão e na obtenção de resultados. Surge imponente nas platitudes reacionárias de Damares Alves contra a identidade de gênero e em Vélez Rodríguez, que parece acreditar que há uma “tresloucada onda globalista tomando carona no pensamento gramsciano e num irresponsável pragmatismo sofístico”, com o claro propósito de “destruir um a um os valores culturais em que se sedimentam nossas instituições mais caras: família, igreja, escola, Estado e pátria”. Não é diferente nas Relações Exteriores, cujo responsável está na linha de frente dessa cruzada.

Ora o discurso é genérico e fala em marxismo sem mais, ora vem embrulhado com a menção a pensadores como Antonio Gramsci, ora ainda surge abraçado a ataques contra a esquerda, o petismo, o socialismo e o globalismo, sempre indeterminados. É um conjunto que se sustenta na superficialidade e na estigmatização, sem preocupação de fomentar algum debate. Não há qualquer intenção de mapear a sério o campo cultural brasileiro ou de avaliar erros, acertos e possibilidades da esquerda, que é posta sumariamente fora da lei, em suas distintas versões. O propósito é ativar uma maquinação ideológica para desqualificar eventuais opositores do novo governo e repor, na política nacional, temas e convicções extemporâneos, centrados no apelo confuso a Deus, religião e Bíblia.

O ataque ao marxismo tem muito de manobra diversionista: busca produzir um ruído que distraia o público e desvie a atenção do fundamental. Espancar o PT e o socialismo que por aqui jamais existiu é parte do roteiro, assim como o compromisso de “desconstruir” Gramsci.

Nessa operação, o nível precisa cair ao rés do chão, já que se trata de atingir o grosso da opinião pública, não a intelectualidade. O tom precisa ser de palanque, para ter chance de mobilizar. Abusa-se da caricatura, do exagero, da ofensa e da grosseria, dispensando qualquer tipo de refinamento. Fala-se de Marx e de Gramsci como se se tratasse de dois perdidos que, numa noite de farras, tivessem caído no Brasil para corromper a juventude e a sociedade com ideias malignas e perversas. O objetivo é promover a circulação de um espectro que assuste, acue e impressione, semelhante ao que Marx anteviu nas primeiras linhas do famoso Manifesto comunista de 1848: um espectro contra o qual deveriam unir-se numa Santa Aliança todas as potências da velha ordem.

A denúncia do “marxismo cultural” é ao mesmo tempo reativa e ofensiva. Ela intui que o marxismo soube se adaptar ao longo da história, saindo do determinismo rígido dos primeiros tempos para a flexibilidade dialética de Gramsci, por exemplo — autor que é a verdadeira pedra no sapato dos antimarxistas. Gramsci incomoda porque atualizou a teoria que veio de Marx, dando a ela melhores condições de dialogar com as épocas mais complexas do capitalismo do século XX. A operação intelectual gramsciana permitiu ao marxismo a recuperação plena dos temas do Estado, da política, da cultura, dos intelectuais. Tornou-o mais “competitivo” para decifrar as armadilhas ideológicas do capitalismo e da dominação política, abrindo os olhos de muitos marxistas ainda aprisionados aos ritmos duros da luta de classes de primeira geração, na qual não existiam tantas mediações e sinuosidades. Recusou as limitações cognitivas do “determinismo econômico” e analisou a sociedade como realidade complexa, conforme o próprio núcleo originário da filosofia de Marx. Estudou a sério o Estado e chamou a atenção para a sociedade civil, destacando sua função como instância de hegemonia.

Quanto mais o capitalismo ganhou complexidade, mais as ideias gramscianas mostraram força.

Depois de Gramsci, o marxismo nunca mais foi o mesmo, ainda que muitos de seus seguidores não tenham se soltado das incrustações mecânicas e do doutrinarismo. Encorpou, tornou-se uma teoria “clássica”, ganhou respeitabilidade plena no mundo intelectual, ingressou nas universidades e se converteu na “filosofia de nosso tempo”, antevista pelo filósofo francês Jean-Paul Sartre.

*Bolívar Lamounier: Energia, dedicação e farol alto

- O Estado de S.Paulo

Se funcionar bem como freada de arrumação, o governo terá realizado um trabalho meritório

A julgar pelas duas primeiras semanas, o governo Bolsonaro periga tomar gol antes de tocar na bola. Realmente, o número de desencontros e trapalhadas foi considerável.

Se funcionar bem como uma freada de arrumação, o governo terá realizado um trabalho meritório. Freada de arrumação o que é? Arrumar as contas públicas, aí incluída a reforma da Previdência; atrair capital estrangeiro em quantidade para destravar a infraestrutura; controlar as falcatruas e safadezas na administração direta e nas estatais. Isso é pouco, pouquíssimo, à luz dos desafios que teremos de enfrentar no médio prazo – voltarei a este ponto abaixo –, mas no presente quatriênio temos de ser realistas, pois fomos atingidos em cheio pelo tsunami Dilma Rousseff. Isto posto, qualquer pequena perda de capital político precisa ser avaliada com seriedade, uma vez que o jogo ainda nem começou.

A trapalhada de maior tamanho foi, sem dúvida, o precipitado anúncio da transferência de nossa embaixada em Israel para Jerusalém. Nesse caso, o próprio presidente Bolsonaro e o excelentíssimo senhor ministro das Relações Exteriores parecem-me ter cometido um sério pecado, falando antes da hora e mostrando-se propensos a comprar uma briga que não nos pertence. E sinalizando duas possíveis orientações que se revelarão desastrosas caso sejam levadas à prática: um afastamento do conceito do Brasil como Estado laico – consta que a influência evangélica pesou na mencionada atitude – e um alinhamento político automático com os Estados Unidos, ainda por cima dentro do jeito Trump de governar, que, obviamente, suscita preocupações.

Outro episódio que merece referência foi a contratação pelo presidente do Banco do Brasil do sr. Antônio Mourão, filho do vice-presidente, Hamilton Mourão. O general vice-presidente reagiu com calma e sinceridade ao episódio, ressaltando a lisura do ato, a competência de seu filho para a função, o fato de ser concursado e de ter uma longa carreira no banco. Fato é, porém, que a contratação repercutiu negativamente numa parcela da opinião pública, que reagiu com argumentos também ponderáveis. Recorrendo a uma imagem surrada, à mulher de César não basta ser casta, ela precisa parecer casta. Nesse caso, a aparência é importante por várias razões. 

Primeiro, pelas circunstâncias da eleição. Jair Bolsonaro foi eleito graças a um amplo movimento de opinião caracterizado, de um lado, pelo antipetismo e, do outro, por uma aguda exigência de reforma, de mudança de comportamentos e práticas. A questão do timing é também relevante. Entre os eleitores que foram às urnas com essa expectativa, muitos devem ter estranhado a mencionada contratação já na primeira quinzena do novo governo.

Tudo isso desaparecerá da memória se o governo conseguir “entregar” as mudanças que se propôs efetivar. Mas isso, como assinalei no início, não são favas contadas.

*Rolf Kuntz: Entre dona Damares e os perigos da filhocracia

- O Estado de S.Paulo

O episódio grotesco do presidente da Apex mostra como são as nomeações ‘técnicas’

O presidente Jair Bolsonaro resolveu só o menor problema, ignorando ou desprezando outro muito mais grave, ao confirmar a demissão de Alecxandro Carreiro, Alex para os amigos, da chefia da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex). Inspirado talvez por Pepino, o Breve, ele ocupou o cargo por apenas uma semana. Poucos dias bastaram para ele afastar antigos funcionários, abrir espaço para aliados e entrar em conflito com gente de confiança de seu superior imediato, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Sem conseguir um afastamento pacífico, o ministro anunciou a demissão de Carreiro. Um dos motivos indicados foi sua deficiência em inglês, pecado considerado grave numa pessoa encarregada de cuidar de exportações e de atrair capitais. Carreiro recusou a decisão do superior e recorreu ao presidente da República. Este apoiou o ministro e endossou sua decisão. De fato, nada no currículo do efêmero presidente da Apex podia justificar sua nomeação para o posto. Assunto liquidado, portanto? Só para os mais distraídos.

A questão mais séria, e até escandalosa, continua intacta. Essa questão se desdobra em várias perguntas. Quem indicou Alex Carreiro? Por que seu currículo inadequado e seu inglês insuficiente foram ignorados na hora da nomeação? Nada se combinou antes do início de sua atividade?

Parte importante do esclarecimento já saiu na imprensa, mas sem contribuição explícita de fontes oficiais. Alex Carreiro foi indicado por deputados do PSL e pelo senador eleito Flávio Bolsonaro, filho do presidente da República e ex-chefe de Fabrício Queiroz, o das movimentações “atípicas” apontadas pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf). Flávio Bolsonaro e Alex Carreiro apareceram juntos, sorridentes e em pose amigável, numa foto divulgada nos últimos dias.

Falta saber por que o presidente Jair Bolsonaro, responsável pela nomeação de Carreiro, aceitou a indicação sem submeter o candidato a algum controle de sua experiência e de sua capacidade para a função. Nomeações com critérios técnicos foram uma das promessas mais alardeadas pelo presidente durante sua campanha e também depois da eleição. Essa promessa nunca foi estritamente cumprida, mas também nunca foi renegada.

Quanto ao ministro das Relações Exteriores, por que aceitou tão passivamente a nomeação de um funcionário para um posto em sua área de responsabilidade? Por que esperou os desmandos do presidente da Apex e seus atritos com servidores da agência para começar a agir? Se Carreiro fosse mais cauteloso e evitasse conflitos, teria continuado no posto mesmo sem qualificações?

Eliane Cantanhêde: Queimando a largada

- O Estado de S.Paulo

Estreia do governo mostra confusão, desinformação e um desmentido atrás do outro

A estreia do governo Jair Bolsonaro produziu menos decisões e metas do que recuos e confusões. A sociedade, o mercado e o próprio governo não sabem até agora qual será a proposta para a Previdência, nem mesmo as idades mínimas para homens e mulheres e o regime para as três Forças. Mas todo mundo descobriu que o presidente fala sem pensar e estar devidamente informado, os ministros são obrigados a desmenti-lo e está uma confusão.

Dificuldades são comuns em qualquer começo, especialmente num governo que traz tantas mudanças, mas é além do razoável que a lista de equívocos e desmentidos cresça todo dia e seja maior do que a de projetos e metas. Os ministros parecem falar muito, mas dizer pouco. E alguns parecem ter como função desmentir os erros do presidente.

Mesmo a reunião do Conselho de Governo, que inclui o presidente, o vice e os 22 ministros, foi decepcionante. A expectativa era de que, no final, algum dos ministros (na falta de um porta-voz) desse uma luz sobre as prioridades em cada área: Educação, Saúde... Mas tudo o que anunciaram foi um projeto – que não é meta de governo – para flexibilizar a posse de armas, o que, aliás, pode aumentar o já alto número de mortes por armas de fogo.

Sem que o governo diga exatamente o que pretende, são inacreditáveis os erros da largada. Bolsonaro fala em IOF, IR e idade mínima para a Previdência e é desmentidopelo primeiro e segundo escalões, gerando mal-estar entre as equipes política e econômica. Acena com Base Militar dos EUA em solo pátrio e deixa os militares em choque, tentando resumir tudo a um “auê”.

Bolsonaro também suspendeu a reforma agrária, depois suspendeu a suspensão; jogou no ar restrições ao acordo Boeing-Embraer e só depois foi discutir o assunto com os ministros; o chanceler postou no Twitter que o presidente da Apex tinha pedido demissão, mas ele foi trabalhar normalmente; um vídeo antigo da ministra da Família contra a Teoria da Evolução provocou crítica até do colega de Ciência e Tecnologia.

Vera Magalhães: Presidente ou sindicalista?

- O Estado de S.Paulo

Bolsonaro terá de mostrar se fez a conversão liberal ou se continua um defensor das pautas militares

Nas duas primeiras semanas de governo de Jair Bolsonaro, uma das únicas coisas virtuosas foi justamente aquela que é mais importante, e a que corre mais riscos, pelo andar da carruagem dos últimos dias: a aula de liberalismo de Paulo Guedes, que parecia apontar para uma mudança concreta de diretriz econômica num País pouco afeito a temas como responsabilidade fiscal, eficiência do Estado e estímulo ao empreendedorismo.

Parecia. O levante organizado pelos militares tão logo vislumbraram a possibilidade de serem incluídos na reforma da Previdência será o primeiro e decisivo teste para Bolsonaro demonstrar, na prática, se fez mesmo sua conversão no altar do liberalismo ou se continua sendo aquilo que sempre foi: um ardoroso defensor das causas sindicais dos militares – a quem continua tratando como “nós” mesmo depois de empossado, numa clara demonstração de que ainda não entendeu a dimensão do novo cargo que ocupa, e o fato de que agora não é mais o “capitão”.

Uma pista a respeito do lado para o qual ele pode pender foi dada em seu discurso na transmissão de cargo do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva. Ali, no dia 1 de seu governo, Bolsonaro voltou a encarnar o sindicalista que foi nos seus 27 anos de Câmara. “Um breve histórico, já que falamos de Defesa”, começou Bolsonaro, naquela prosódia de quem está lendo um ditado. E se pôs a elencar os governos que o antecederam. Não para se ombrear com os presidentes, mas com os militares, enumerando perdas e ganhos salariais, leis que retiraram benefícios, contingenciamento de recursos para as Forças Armadas e por aí afora. Apenas pautas corporativas. Nenhuma grande questão de Defesa. “Nós fomos um tanto quanto esquecidos”, se lamuriou.

Com um presidente que se apresenta como um deles e representados como nunca estiveram desde a redemocratização na estrutura política do governo, os militares já trataram de marcar posição na questão da reforma: acham que têm de ficar fora do regime que for fixado para servidores, pelas especificidades da carreira.

Merval Pereira: O perigo da mediocridade

- O Globo

O pior cenário é continuar o pacto dos últimos anos, em que se tenta atender a demandas da população e das corporações

Na coluna de ontem tratamos da possibilidade de um cenário de crescimento saudável do país nos próximos anos, se o governo Jair Bolsonaro enfrentar os obstáculos políticos que tem pela frente. O economista Claudio Porto, fundador da consultoria Macroplan, especializada em planejamento e gestão, chamou-o de “globalização econômica inclusiva”.

Mas existem outros dois cenários possíveis na visão de Claudio Porto, considerando o jogo de interesses de três grandes grupos de atores no país: os agentes econômicos, que demandam equilíbrio fiscal, crescimento sustentável e competitividade; as corporações, que reivindicam a manutenção de direitos especiais, privilégios e proteções; e a população, que hoje exige segurança, integridade, políticas e serviços públicos de qualidade e oportunidades de trabalho.

O segundo cenário seria uma espécie de retorno aos anos 70: crescimento com desigualdade. A coalizão de forças políticas, econômicas e sociais dominantes assume uma “pegada nacionalista” e novamente aposta no mercado interno, buscando conciliar as demandas dos agentes econômicos com as das corporações, em prejuízo de demandas da população.

Um cenário parecido com o padrão dominante no Brasil na década de 1970. As reformas econômicas, predominantemente liberais, avançam substancialmente nos planos fiscal e previdenciário, mas as mudanças microeconômicas são minimalistas, especialmente na abertura da economia, que evolui de forma muito lenta e gradual.

O peso do Estado na economia reduz um pouco. Ampliam-se as concessões e parcerias público-privadas. O ambiente de negócios melhora, e o ajuste fiscal é alcançado ao longo dos quatro anos iniciais. A dívida pública começa a declinar.

Mas as desestatizações e as restrições aos privilégios das corporações são mais simbólicas do que reais, enquanto as políticas sociais sofrem restrições. A economia cresce, com pequeno aumento da produtividade e sem pressões inflacionárias.

Míriam Leitão: As duas guerras da Previdência

- O Globo

Grande batalha da Previdência ainda nem começou e se dará no Congresso. Por isso, preocupa a falta de sintonia interna sobre o projeto no governo Bolsonaro

A principal batalha da reforma da Previdência ainda nem começou. A briga para valer será depois da posse do novo Congresso, em fevereiro, e da eleição da nova CCJ, que deve acontecer no final de março. Só aí os lobbies entrarão em campo. O que houve até agora é disputa interna, que tem emitido péssimos sinais. No governo passado, Temer, Padilha e Meirelles jogavam afinados a favor da reforma e tiveram que suar a camisa atrás dos votos que a fizesse avançar. No atual, há desencontros no trio: o presidente e os ministros da Economia e da Casa Civil.

A opção de começar do zero é a pior ideia que surgiu. Por isso no Ministério da Economia bate-se para que seja aproveitado o projeto que já caminhou contra todas as críticas do então deputado Onyx Lorenzoni. A tramitação, no caso de ter um novo projeto, seria longa demais e desperdiçaria o período de lua de mel com o Congresso, o mercado e o eleitorado. Neste caso, a discussão só teria início após a formação da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), no final de março. Depois, seria constituída uma Comissão Especial para discutir a PEC. O primeiro semestre seria perdido refazendo-se os passos da reforma de Temer.

Esse é o argumento mais forte do ministro Paulo Guedes. Ele sempre diz que a reforma do Temer é “remendo em calça velha”, porém esse remendo será o veículo para a proposta de Bolsonaro avançar. Quem já esteve negociando no governo passado explica que há uma margem de manobra enorme para se mexer no texto. Mais de 200 emendas foram apresentadas ao projeto original, na Comissão Especial que analisou a PEC. Essas emendas servem de base para alterações no substitutivo do relator Arthur Maia (PPS-BA), incluindo a capitalização. O próximo passo então seria a votação em plenário.

Bernardo Mello Franco: Apertem os cintos

- O Globo

Em novo livro, 22 intelectuais fazem previsões sobre o novo governo. ‘Passaremos por uma zona de forte turbulência política’, alerta o sociólogo Sérgio Abranches

O Brasil está condenado a reescrever uma página infeliz da nossa história? A pergunta ronda os 22 ensaios de “Democracia em risco?”, que chega às livrarias na semana que vem pela Companhia das Letras. Como indica o ponto de interrogação, a coletânea não oferece respostas definitivas. Sua proposta é ajudar a entender o que está em jogo na “nova era” de Jair Bolsonaro.

No texto de abertura, o sociólogo e cientista político Sérgio Abranches sustenta que a eleição de 2018 foi disruptiva. Ele afirma que a vitória do capitão encerrou o ciclo que organizou a política brasileira com relativa estabilidade nos últimos 25 anos. As instituições, que sobreviveram a dois impeachments e múltiplas crises, agora terão que enfrentar uma prova de resistência “mais significativa e direta”. “Apertem os cintos, pois passaremos por uma zona de forte turbulência política”, avisa.

O historiador Boris Fausto diz que é cedo para desenhar com clareza os rumos que o governo vai tomar. “Mas no âmbito educacional e da cultura, assim como no trato de determinadas minorias, as tendências não deixam dúvidas. Todas elas constituem um retrocesso”.

Ele prevê o acirramento da violência no campo, a reboque do discurso agressivo do presidente. “As porteiras estão abertas para as mortes de lideranças, para a invasão de terras indígenas pelas milícias armadas, para o desmatamento sem inibições”, escreve. Apesar dos temores, Fausto diz contar com a vigilância da imprensa, do Judiciário e da sociedade civil: “Ao menos por ora, não há razões para ceder ao catastrofismo”.

*José Roberto Mendonça de Barros: O mundo não começou agora

- O Estado de S.Paulo

A retomada do investimento e o crescimento econômico podem levar o governo para a frente

A última eleição trouxe, realmente, uma novidade: o presidente Bolsonaro ganhou legitimamente o pleito com uma proposta que se coloca claramente à direita do espectro político, em contraste com o passado recente, como, aliás, está ocorrendo em muitos lugares do mundo.

Sua coligação é complexa, pois abarca vários grupos bem distintos, cada um referenciado a uma recorrente frustração, que compõe o mosaico da crise atual: o cansaço com a corrupção e o desgoverno (muito visível no plano dos Estados, como descobriram muitos dos novos governadores, por exemplo), a violência generalizada e o crescimento do crime organizado, a voracidade tributária e o baixo nível dos serviços públicos e a excessiva ingerência governamental na vida do cidadão, entre outras questões.

Tudo foi muito bem percebido e melhor ainda colocado por alguém que se posicionou como “novo”, embora participe da vida política há quase 30 anos. De novo realmente o que tivemos foi a competente utilização da comunicação pelas redes sociais.

Esta novidade política tem um grande desafio organizacional, pois será necessário estabelecer um convívio e, idealmente, alguma organicidade entre temas bem distintos, agrupados em três grandes campos: economia (liberal, num país de arraigado patrimonialismo e tradição de décadas de detalhada regulação pública, que afeta a vida do cidadão), governança pública (controle da violência e da corrupção) e um conjunto de coisas associadas a “valores familiares, tradicionais, conservadores e nacionalistas”.

Só o futuro vai dizer se esta “geringonça” (como foi apelidado o governo do primeiro-ministro Antonio Costa) será do tipo português, que está dando certo na terrinha ou uma coisa mais para confusão, como o despreparo de muitos transformou os primeiros dez dias de governo.

Existe, entretanto, algo que pode levar o governo para a frente: a retomada do investimento privado e do crescimento econômico.

Ora, as circunstâncias e a crise recente criaram uma oportunidade única, que pode facilitar a nova gestão. O debate dos últimos tempos gerou uma quase unanimidade da opinião pública em torno de duas coisas:

– não há como empurrar mais o enfrentamento da crise fiscal, sob pena de ocorrer um desastre sem precedentes.

– este enfrentamento tem como ponto de partida a aprovação de uma reforma da Previdência de certa abrangência. Mais ainda, dois ou três projetos de excelente qualidade estão disponíveis e já passaram por um intenso escrutínio técnico, de sorte que a equipe econômica pode apresentar o projeto que lhe aprouver antes de março.

Tudo passa a depender, então, da aprovação pelo Congresso, que nunca é simples, mas é possível. A experiência mostra que um presidente recém-eleito, desde que focado num projeto principal, consegue sucesso. Se tiver uma pauta dispersa, o sucesso fica muito mais difícil.

Assim, se a reforma da Previdência for aprovada neste ano, a porta estará aberta para a retomada do crescimento. Isto, apenas, não resolve o sucesso da gestão, mas é certo que as outras reformas e ações podem, então, ser tocadas com mais tranquilidade.

Olhado desta forma, fica claro que a agenda de hoje não é uma invenção recente. Ela é o resultado de uma crise profunda, dos avanços do governo Temer, da inflação ancorada, da folga no setor externo, de juros historicamente baixos e da evolução de um grande debate nacional.

O País não começou agora, ao contrário do que boa parte do discurso oficial procura mostrar.

Luiz Carlos Azedo: A volta do otimismo

- Correio Braziliense

“A única coisa que parece importar para o mercado é a reforma da Previdência. Aparentemente, a resistência dos militares já foi precificada”

Nada parece abalar as expectativas em relação a uma virada na economia a partir deste ano. O mercado financeiro tem dado sinais de alívio com as medidas anunciadas pelo novo governo. Desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, o real é a moeda que mais se valorizou em relação ao dólar e a Bovespa tem o segundo melhor desempenho mundial. Não é um fenômeno isolado, tem a ver com os desgastes do presidente norte-americano Donald Trump, por causa da guerra comercial com a China e da crise com o Congresso, provocada pela proposta de construção do muro com a fronteira do México. O rublo, da Rússia (3,9%), e o rand, da África do Sul (3,6%), também se fortaleceram, porém, menos do que o real, que acumula valorização de 4,3% frente ao dólar, negociado a R$ 3,71.

Um sinal de que os agentes econômicos apostam no êxito da política econômica do ministro da Economia, Paulo Guedes, é o desempenho da Bovespa, que fechou a semana em 6,57%, abaixo apenas do índice Merval, da Argentina (11,95%). No ano passado, a alta do dólar era uma preocupação recorrente dos economistas, mas houve uma inflexão depois que Jerome Powell, o presidente do Federal Reserve (Fed), o banco central dos EUA, decidiu abrandar a política de juros norte-americana. A economia dos EUA sinaliza desaceleração, o que melhora a posição relativa do nosso mercado de ações. Entretanto, iniciativas do novo governo também pesam na avaliação de investidores, como as mudanças no Conselho de Administração da Petrobras, cuja composição está sendo alterada para se ajustar à orientação da nova equipe econômica e acelerar a venda de subsidiárias e outros ativos, e a anunciada venda de estatais, entre as quais, a Eletrobras.

O que teve mais impacto na bolsa, porém, foi a mudança de posição do presidente Bolsonaro em relação à venda da Embraer para a Boeing, à qual havia feito restrições. Na sexta-feira, os termos do acordo foram ratificados e, segundo a Embraer, as negociações devem ser concluídas até o fim deste ano, um negócio de US$ 5,26 bilhões. Como a Embraer é a mais importante empresa de tecnologia do país, a venda da empresa consolidou no mercado a ideia de que os militares não se oporão à política ultraliberal de Paulo Guedes, muito pelo contrário. Foram os comandantes militares que convenceram o presidente da República de que a venda era a melhor alternativa para manter a capacidade de produção e desenvolvimento tecnológico da aviação no país, sobretudo porque foi criada uma empresa em parceria com a Boeing para fabricar os aviões militares, principalmente o cargueiro KC-390, de fabricação nacional, mas com controle acionário da Embraer.

Nem mesmo a crise de segurança pública no Ceará, que permanece fora do controle, ameaça o otimismo do mercado. Já era para ter ocorrido uma intervenção militar no estado, mas uma queda de braços entre o governador Camilo Santana (PT) e Bolsonaro, que perdeu a eleição presidencial no estado, complica o enfrentamento da crise. O petista pediu ajuda ao ministro da Justiça, Sérgio Moro, mas não solicitou ao presidente da República uma operação de “garantia da lei e da ordem”, que permitiria o emprego das forças armadas. A onda de violência no estado chegou ao 11º dia seguido, com 194 ataques em 43 municípios, mesmo com a transferência de 35 líderes das facções criminosas para presídios federais e a detenção de mais de 330 suspeitos. Na madrugada de ontem, os bandidos destruíram uma torre de transmissão de energia elétrica em Maracanaú (CE).

Dorrit Harazim: Sumiu o clima

- O Globo

A ausência do presidente americano rouba de Bolsonaro e Araújo, nossos estreantes em Davos, um escudo de peso

O presidente Jair Bolsonaro e o chanceler Ernesto Araújo talvez fiquem desapontados: ainda não será desta vez que haverão de conhecer o mito maior, Donald Trump. O presidente dos Estados Unidos, emparedado na Casa Branca pelo impasse envolvendo a construção da prometida muralha mítica na fronteira com o México, anunciou que fará forfait em Davos. A paralisação do funcionamento da máquina do governo americano já entra em sua terceira semana, e nem Trump consegue edulcorar a dimensão da encrenca em curso.

Este ano, o Fórum Econômico Mundial começa no dia 22 de janeiro. Sempre no mesmo cenário alpino onde Thomas Mann, Nobel de Literatura de 1929, escreveu sua monumental “A montanha mágica”. Também como sempre, participará das centenas de mesas uma constelação de figurões de ponta da economia global, celebridades, ministros de Estado, chefes de governo, acadêmicos e ativistas. O encontro tem tantos defensores quanto adversários. Alguém já avisou a Jair Bolsonaro e Araújo que para o fundamentalista de direita Steve Bannon, cultuado como estrategista-mor da ascensão de Trump, a reunião anual desse “magma” é produto da treva? “A classe trabalhadora está cansada dos ditames do ‘partido de Davos’”, declarou o personagem em 2014.

A ausência do presidente americano rouba de nossos estreantes em Davos um escudo de peso. Pior, os deixam sós e soltos ao alcance de uma atrevida adolescente sueca de 16 anos, Greta Thunberg, que irrompeu no cenário mundial durante a 24ª Conferência da ONU sobre o Clima, em Katowice, Polônia, em dezembro, quando demonstrou saber se fazer ouvir.

De início, poucos entenderam o que fazia aquela criança de tranças Rapunzel, cara de bolacha e crachá pendurado no pescoço, sentada ao lado do secretário-geral das Nações Unidas. Ela foi uma das palestrantes. Seu discurso durou apenas quatro minutos, mas acordou os representantes de quase 200 países no plenário. Ninguém fez melhor em matéria de frescor, naturalidade e relevância não acadêmica. Vale a pena conferir na internet e redes sociais, onde Greta está por toda parte com sua cruzada pró justiça climática. Abaixo, um trecho do discurso em que a adolescente parecia ser o único adulto no salão:

Janio de Freitas: Pesca de mentira

- Folha de S. Paulo

Uma burla foi a solução dada por Bolsonaro para flagrante do Ibama

A recente anulação da multa aplicada em 2012 a Jair Bolsonaro, por pesca ilegal em lugar ilegal, é mais interessante do que a sua notícia sugere.

Com a decisão, datada de dez dias antes da posse do novo presidente —mero acaso, é claro—, Bolsonaro foi retirado do cadastro de devedores da União.

Deu-se que há exatos seis anos o então deputado foi surpreendido por fiscais do Ibama em um bote inflável, no recanto de Angra dos Reis chamado de Tamoios. Deu-se também que Bolsonaro, o bote e seu equipamento de pesca de vara não podiam estar ali, na Estação Ecológica de Tamoios, área sob proteção em que a presença humana é proibida. No caso, eram presença, bote, motor marinho e pesca.

A multa foi de R$ 10 mil. O deputado recusou-se a mostrar documentos. A partir daí, o Ibama desenrolou um colar de inoperâncias muito ilustrativo da defesa ambiental que os governos brasileiros proclamam ao mundo com orgulho.

O auto de infração só foi emitido em 6 de março, dois meses e 12 dias depois do flagrante. O multado só recebeu a respectiva notificação em 6 de outubro. De 2014. Dois anos, oito meses e 12 dias depois da infração. Não pagou a multa.

Seu nome e a dívida foram, por isso, inscritos no cadastro de inadimplentes. Em 16 de outubro. De 2015. Um ano e seis dias depois de encerrado o prazo para pagamento.

Recursos de Bolsonaro fizeram o processo passar por duas instâncias de julgamento do Ibama. Em ambas, recusa dos recursos. Entra no roteiro a AGU, Advocacia-Geral da União, mas nem sempre pró-União. Já é dezembro, dia 7. De 2018.

A AGU se manifesta: Bolsonaro não teve direito a ampla defesa, os julgamentos do Ibama "não analisam os argumentos das peças defensivas e não fundamentam os indeferimentos" (dos recursos). Anule-se a multa, anule-se tudo. Volta ao zero.

Sérgio Dávila: Jair Seinfeld

- Folha de S. Paulo

Um certo grau de barata-voa é até normal na largada, mas vaivém começou a perder a graça

Num dos episódios clássicos de “Seinfeld”, a melhor sitcom da TV americana, exibida nos anos 90, o personagem sem nenhum caráter George Costanza é demitido numa sexta-feira e volta ao trabalho na segunda, como se nada tivesse acontecido.

Lembra o que ocorreu nesta semana com o breve presidente da Apex, a Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos. Alex Carreiro foi dispensado por seu superior, o chanceler Ernesto Araújo, mas se recusou a deixar o posto —até que o presidente interveio, e ele saiu.

O jovem governo de Jair Bolsonaro chega ao seu 13º dia com um quê de série cômica. Protagonizou dez recuos, sendo os mais recentes a suspensão da suspensão da reforma agrária e o cancelamento das mudanças no edital de compra de livros didáticos.

É natural e até esperado um certo grau de barata-voa na largada de uma administração, ainda mais no caso do grupo ora no poder, que traz consigo uma mudança nos códigos e sinais da política que vinha sendo feita, com sucessos e fracassos, há duas décadas no Brasil.

Bruno Boghossian: Vice

- Folha de S. Paulo

General buscou posição de destaque, mas tenta esconjurar fantasma do vice decorativo

Entre a vitória na eleição e os primeiros dias de governo, Hamilton Mourão foi forçado a descer alguns metros no edifício do poder. O vice-presidente esperava despachar ao lado do gabinete de Jair Bolsonaro no terceiro andar do Planalto. Sua cadeira, porém, foi colocada no anexo que se conecta ao palácio por um túnel subterrâneo.

Em outubro, a ideia era outra. “Eu me vejo como um assessor qualificado do presidente, um homem próximo ali, junto dele, dentro do Planalto. Nossas salas serão juntas”, disse o general ao jornal O Globo, a três dias da eleição. “Não seremos duas figuras distantes, como já aconteceu.”

Ao entrar na terceira semana de governo, Mourão tenta esconjurar o fantasma do “vice decorativo” —que assombrou um Michel Temer maltratado por Dilma Rousseff.

Mesmo antes da vitória de Bolsonaro, o general se oferecia para funções de peso. Indicou publicamente que poderia ser um coordenador de ministérios. Ofereceu-se ainda para comandar parcerias público-privadas na área de infraestrutura.

Mourão ficou sem o gabinete, sem autoridade sobre os investimentos e sem o papel de líder da Esplanada. Com humildade, afirmou à Folha que esta última ideia “não vingou”. Agora, sugere cooperar com Bolsonaro nas relações internacionais. “Vamos aguardar o que o presidente vai definir”, disse, pacientemente.

Vinicius Torres Freire: O aumento salarial de R$ 3

- Folha de S. Paulo

Economia está muito abaixo do nível de 2013 e ainda dá sinais de frieza deprimida

O salário médio no Brasil não aumentou no ano passado. Para ser mais preciso, o rendimento médio do trabalho cresceu 0,2% até novembro, em termos reais (descontada a inflação). Em português claro, aumentou R$ 3 em um ano. Não paga ônibus ou cafezinho.

Pouca gente prestou atenção ao desastre, divulgado no dia 28 de dezembro. Desde a recessão, o salário respirou apenas em 2017. A precarização do trabalho continua a aumentar. O número de empregos com CLT ainda é 3,5 milhões menor que em 2014.

O resultado não é de admirar, pois a economia ainda nem saiu do buraco em que afundou de 2014 a 2016; há ociosidade de capital e trabalho por quase toda parte. Mas a estagnação dá outra vez o que pensar sobre essa depressão. Que recuperação será possível? As taxas de juros estão altas? Além de reformas, há algo a fazer?

O salário médio não é nem 1% maior do que era em 2014 (R$ 17 maior). A produção da economia (PIB) no ano passado ainda era 4,3% menor que em 2013 (por cabeça, pelo PIB per capita, a baixa ainda era de 8%).

*Elio Gaspari: A colaboração está virando jabuticaba

- Folha de S. Paulo / O Globo

O instituto que começou como uma arma contra malfeitores aos poucos tornou-se uma barafunda que os favorece

Antonio Palocci, ex-ministro de Lula e Dilma, quindim da banca enquanto mandou, fechou seu terceiro acordo de colaboração, desta vez com o Ministério Público Federal em Brasília. Condenado a 12 anos de prisão, cumpriu menos de dois e está em casa, de tornozeleira. Como de hábito, o que vazou de suas confissões é uma mistura de notícias velhas com aulas de ciência política.

Quando juiz, no calor da campanha eleitoral, Sergio Moro divulgou um dos anexos da colaboração de Palocci à Polícia Federal. Espremendo-a, dela resultou que Lula chamou-o para uma reunião no Palácio da Alvorada e mandou que organizasse uma caixinha com os fornecedores
de sondas para a Petrobras.

Grande revelação, desde que em outros anexos, ainda desconhecidos, ele tenha contado a quem mordeu, quanto arrecadou e como passou o dinheiro adiante. Sem isso, o anexo é o que foi: um instrumento de campanha política.

O instituto da colaboração de malfeitores está contaminado desde 2015, quando um procurador de Curitiba formulou a doutrina da “bosta seca”, segundo a qual, havendo colaborações conflitantes, não se aprofunda a investigação.

Aceita-se a palavra do delator e, mais tarde, sentenças baseadas nelas caem nas instâncias superiores. Essa jabuticaba faz a fortuna de uma nova geração de criminalistas.

Ainda neste ano o Supremo Tribunal Federal decidirá se mantém ou revoga o acordo feito por Rodrigo Janot com os donos da JBS. Os irmãos Batista estão na frigideira, mas Janot, a outra ponta de um acordo tão astucioso quanto escalafobético, vai bem, obrigado.

Com a ida do astro-rei Sergio Moro para o Ministério da Justiça, talvez se possa começar a duvidar da eficácia da doutrina da “bosta seca”. Estima-se que, de cada dez anexos de colaboração, só a metade resulte em investigações ou sindicâncias.

Para ficar num exemplo que entrará nos anais da diplomacia, o Itamaraty de Lula deu agrément ao doutor Choo Chiau Beng, para a posição de embaixador de Cingapura no Brasil. Ele não pertencia ao serviço público, nunca chefiou a embaixada em Brasília e não deixou de ser o CEO do estaleiro Keppel, que fornecia sondas à Petrobras.

Essa circunstância foi revelada na colaboração do operador da Keppel no Brasil, Zwi Skornicki, que pagou a propina de 1,2% no contrato de US$ 700 milhões da plataforma P-52.

Quem topou dar o agrément? Choo entregou suas credenciais a Lula e chegou a fazer uma visita protocolar ao presidente do STF, Joaquim Barbosa.

O Brasil visto de fora

Ilustríssima | Folha de S. Paulo

Em carta aberta ao ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, autor norte-americano comenta repercussão internacional das ideias enunciadas pelo novo chanceler em artigo recente.

Prezado ministro,
Há pouco mais de dois anos, o ministério que o senhor hoje encabeça me outorgou o Prêmio Itamaraty de Diplomacia Cultural. Foi um reconhecimento do meu trabalho e trouxe consigo uma obrigação de continuar trabalhando em prol do Brasil —de ser algo como um amigo oficial do Brasil. E é nesta capacidade que lhe escrevo.

Recentemente, o senhor publicou uma matéria no meu idioma, o inglês, e no meu país, os Estados Unidos (“Bolsonaro was not elected to take Brazil as he found it”, ou “Bolsonaro não foi eleito para deixar o Brasil como o encontrou”, na Bloomberg, em 7/1). Se respondo em português, é por dois motivos.

Primeiro, porque sua matéria ilustra muito bem que saber a gramática ou o vocabulário de outra língua não implica compreender suas sutilezas: como soa. Se tivesse maior noção do meu idioma, seria de esperar que não houvesse publicado uma coisa que —digo francamente— expõe o Brasil ao ridículo.

E essa é a segunda razão pela qual lhe respondo em português. Apesar de não ser de nacionalidade brasileira, o Brasil não me é de maneira nenhuma alheio. Desagrada-me profundamente vê-lo alvo de risadas internacionais. Gostaria, pois, que esta conversa ficasse entre nós —em português.

Em inglês, a sua vinculação da política externa com Ludwig Wittgenstein soa bizarra. Suspeito que não seja sua intenção —que é, se estou lendo bem, de deslumbrar o leitor com frases como “desconstrução pós-moderna avant la lettre do sujeito humano e negação da realidade do pensamento”.

Sabe aquele estudante de pós-graduação que encurrala a menina na festa falando de Derrida ou Baudrillard?

Pois é.

Aliás, em inglês, proclamar “não gosto de Wittgenstein” soa pretensioso, arrogante. Sabe aquele homem que, diante de um Picasso, diz que sua filha de quatro anos poderia ter feito melhor?

Pois é.
Mas, além do tom, qual é mesmo seu problema com Wittgenstein? Vejo que não é sequer uma frase inteira, mas uma parte de uma frase: “O mundo tal como o encontramos.”

O senhor lê isso como um pedido —uma ordem, até— de aceitar tudo no mundo tal como é, de não tentar mudar nada, de se comportar como se não tivesse vontade própria. Se acompanho a sua lógica, é assim que o Brasil tem se comportado durante todos os governos, de esquerda como de direita, que precederam o atual.

*Mary Zaidan: Baila comigo

- Blog do Noblat / Veja

Queiroz no radar

Voltar atrás, corrigir, pedir desculpas são atos louváveis. Merecem elogios, devem ser incentivados. Mas até os principiantes aprendem rapidamente que é estupidez insistir no erro. Lição básica que Jair Bolsonaro parece não querer assimilar. E, com erros em cima de erros, o presidente se arrisca a minar a confiança nele depositada.

A gravidade maior não está no bate-cabeças entre integrantes de sua equipe, tido como usual em início de mandatos, ou nas idas e vindas em atos oficiais, revogados antes de criarem traumas. Mas nos modos permissivos do presidente diante do comportamento de sua prole e de alguns amigos que começam a dar as caras no governo.

Ter um filho que o escolta na cerimônia de posse como se todo o aparato militar montado não fosse capaz de fazê-lo pode ser apenas um acinte, mas outro que escolhe faltar a uma audiência no Ministério Público ultrapassa todos os limites.

Deputado estadual, eleito senador pelo Rio de Janeiro, Flávio Bolsonaro preferiu dar uma entrevista ao SBT para dizer o que deveria ter dito ao MP. Atitude no mínimo estranha para quem nega qualquer envolvimento no imbróglio de seu ex-assessor, Fabrício de Queiroz.

Bolsonaro não é Flávio e não pode responder pelo rebento. Mas Flávio só chegou onde está usando o nome e a popularidade do pai. O mesmo aconteceu com os demais – Carlos, vereador, e Eduardo, deputado federal. Mais: a primeira-dama Michelle aparece nos rolos de Queiroz, a quem o presidente chama de amigo, parceiro de pescarias.

Queiroz entrou no radar da operação Furna da Onça, que prendeu 10 deputados fluminenses e investiga 24 assessores parlamentares, a partir de movimentações bancárias atípicas detectadas pelo Coaf. Entre 2016 e 2017 os registros mostram entradas de R$ 1,2 milhão, algumas feitas no mesmo dia de pagamento dos demais funcionários de Flávio. Na conta de Michelle foram parar R$ 24 mil que, conforme o próprio presidente explicou, seriam relativos a pagamentos parcelados, não declarados ao fisco, de empréstimo que fizera ao ex-assessor do filho.

Ricardo Noblat: Clã Bolsonaro brinca com fogo

- Blog do Noblat / Veja

Enquanto isso, Queiroz dança e rola

Quanto mais tempo for gasto para que se esclareça a encrenca em que se meteu Fabrício Queiroz, ex-funcionário do gabinete do deputado Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio, pior para a reputação do clã do presidente da República empossado há 13 dias.

Queiroz é suspeito de ter embolsado ou repassado a terceiros parte dos salários dos seus colegas de gabinete. Um cheque dele no valor de R$ 24 mil foi passar na conta da primeira dama Michelle Bolsonaro. A crer-se no que disse o presidente, era parte de uma grana que Queiroz lhe devia.

Sim, porque Queiroz e Jair eram amigos há 40 anos. A mulher e duas filhas de Queiroz trabalharam com Flávio no gabinete. Uma das filhas, depois, foi trabalhar no gabinete de deputado federal de Jair. O Ministério Público quer interrogar Queiroz, e já o intimou quatro vezes pelo menos.

Por problemas de saúde, Queiroz faltou aos depoimentos, internou-se em um hospital de São Paulo, um dos mais caros do país, e ali foi operado de um câncer, segundo ele mesmo informou. Intimadas, a mulher e as duas filhas invocaram o estado de saúde de Queiroz para não serem ouvidas.

Dois vídeos protagonizados por Queiroz foram a sensação do último fim de semana nas redes sociais. No primeiro, ele celebra a chegada do Ano Novo em seu quarto de hospital dançando na companhia de familiares. No outro, manifesta sua revolta com a divulgação do vídeo da dança.

Os Bolsonaros dizem que não devem explicações para o que Queiroz fez ou deixou de fazer com o dinheiro movimentado em sua conta sem que ele aparentemente tivesse renda suficiente para isso. Queiroz afirma que em breve dará as explicações pedidas e que elas serão satisfatórias.

E se não forem? Pior para ele, mas também para os Bolsonaros

Desassossego: Editorial | O Estado de S. Paulo

A sociedade foi fraturada pela cizânia promovida a método de governo pelas hostes lulopetistas e as contas públicas foram carcomidas pela incúria e pelo populismo desbragado da presidente cassada Dilma Rousseff.

Não obstante o valoroso trabalho do ex-presidente Michel Temer e de sua equipe econômica, cujos resultados aí estão para os que não têm o hábito de brigar com a realidade, fato é que a primeira eleição presidencial após o impeachment de Dilma Rousseff conferiu ao eleito um capital político muito maior que o de seu antecessor para levar adiante as reformas de que o País precisa.

Jair Bolsonaro foi eleito presidente da República com a missão de engajar os brasileiros em torno do projeto de resgate do País. Se seus desafios são imensos, o aval popular que recebeu das urnas para dar-lhes as soluções não foi menor.

Era esperada, pois, a chamada “lua de mel” entre o presidente e a sociedade, encerrando o clima de disputa eleitoral e trazendo a paz necessária para que o governo tivesse condições políticas para levar adiante projetos inarredáveis, alguns bastante impopulares, como é o caso da reforma da Previdência. O governo ainda não perdeu tais condições, mas poderá perder se não arrumar o prumo o mais rápido possível.

Ao contrário do que se poderia supor, há um pesado clima de desassossego instalado em Brasília. Esta intranquilidade não é causada pela oposição, desarticulada e perdida em seus propósitos, e tampouco pela imprensa, como alardeiam alguns membros do governo e pessoas muito próximas do presidente. Resulta de ações e inações que provêm do núcleo palaciano, que até agora tem dado a impressão de governar de improviso, como se não estivesse preparado para os problemas com os quais, sabidamente, teria de lidar.

Uma série de episódios embaraçosos, para dizer o mínimo, canaliza energias do presidente Jair Bolsonaro e de membros de seu governo para infindáveis explicações, e não para o trabalho que tem de ser feito. O que mais se vê são autoridades esclarecendo “mal-entendidos”, desdizendo o que antes havia sido dito em português cristalino, desfazendo o que foi feito ao sabor da repercussão e por aí vai. Quase duas semanas após a posse, não há um fato positivo sequer na agenda governamental.

Voto de confiança: Editorial | Folha de S. Paulo

Expectativa de desempenho positivo do Congresso é a maior medida desde 2010, segundo Datafolha; parlamentares devem contribuir para superar crise

O eleitorado costuma ficar esperançoso com o resultado das urnas. As pesquisas realizadas no lusco-fusco entre a eleição e o início de um governo indicam que pelo menos dois terços dos votantes creem que um novo presidente vá apresentar desempenho ótimo ou bom. A taxa de otimismo sempre supera a votação do novo mandatário.

Apesar de menos pronunciada, também é considerável a esperança dos brasileiros com o Congresso. No caso da legislatura que começa em fevereiro, a expectativa positiva, de 56%, supera as apuradas em 2010 e 2014, registra o Datafolha.

Ademais, no período nunca foi tão grande a discrepância entre a avaliação dos parlamentares que saem e daqueles que tomarão posse. O dado constitui indício, ao que parece, de que se aguarda renovação de métodos, atitudes e resultados no sistema político.

Tal demanda já ficara evidente, por exemplo, nas mudanças da composição partidária da Câmara dos Deputados. Algumas legendas tradicionais, mais ligadas ao establishment, perderam quase metade de suas bancadas.

Os eleitores do presidente Jair Bolsonaro (PSL) são de longe os mais confiantes —71% deles acreditam em um Congresso ótimo ou bom, ante 41% entre os eleitores de Fernando Haddad (PT) e 43% entre os que não votaram em nenhum dos dois no segundo turno.

O otimismo é maior entre aqueles de renda e escolaridade mais baixa, e menor no Nordeste.

Situação fiscal de estados é preocupante: Editorial | O Globo

Governadores recorrem à Justiça para não pagar dívidas e instituem a corrosiva cultura do calote

Uma das faces mais visíveis da crise fiscal histórica por que passa o Estado brasileiro é a Previdência, pelo seu tamanho e por se tratar de um sistema vital para as pessoas. E, nele, atenções estão voltadas para o INSS, do qual recebem aposentadorias e pensões 34 milhões de pessoas, oriundas do mercado de trabalho privado, havendo também um foco na seguridade dos servidores federais, pela capacidade de mobilização de suas diversas categorias e pelas elevadas cifras que recebem. Além do mais, a reforma que for aprovada para assalariados e servidores federais terminará valendo para toda a Federação.

Já quanto à gravidade da situação de cada ente federativo, especialistas alertam para o desequilíbrio de contas estaduais. Há casos notórios como o Rio de Janeiro, abrigado sob um programa de recuperação fiscal assinado com o Tesouro; também Rio Grande do Sul e Minas, este cujas finanças foram devastadas pelo ex-governador Fernando Pimentel, do PT. Há outros.

Chama a atenção que mesmo tendo passado por três rodadas de renegociação de dívidas, estados hajam naufragado em grave crise financeira. O diagnóstico de especialistas é que esta é a prova do descontrole nos gastos de pessoal. Porque está claro que a dívida não explica as maiores dificuldades.

É certo que a indexação de gastos ditos sociais, em que se incluem os previdenciários, cria uma força autônoma de geração de mais despesas nos orçamentos públicos. Mas o Espírito Santo, por exemplo, está submetido às mesmas regras e ainda assim manteve as contas equilibradas. O fato é que não existe, por parte de governadores, vontade política para sanear as contas. Preferem praticar o populismo, gastando mais com salários, aposentadorias e pensões. Pensam só em votos.

Paulinho da Viola - Mar grande

Joaquim Cardozo: Velhas ruas

Velhas ruas!
Cúmplices da treva e dos ladrões,
Escuras e estreitas, humildes pardieiros
Quanta gente esquecida e abandonada!

As varandas se alongam
Num gesto atento e imóvel de quem espreita
Rumor, sombra de passos que passaram,
Tato de mãos ligeiras invisíveis.

Velhas ruas!
Cúmplices da treva e dos ladrões,
Refúgio do valor desviado e da coragem anônima,
Sombra indulgente para os malfeitores,
De quem ocultais os crimes
E a quem dais generosas.

Nos momentos de paz um conselho materno.
Comovida e cristã sabedoria,
Espírito coletivo das gerações passadas,
Estes muros que a ferrugem da noite rói sugerem
O velado esplendor espiritual dos conventos,
O ritmo das coisas imperfeitas,
A volúpia da humildade.

Trêmula, dos lampiões
Desce uma luz de pecado e remorso,
E o cais do Apolo acende os círios
Para velar de noite o cadáver do rio.

In: Cardozo, Joaquim. Poesias completas. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p.4-5