segunda-feira, 15 de março de 2021

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

O desmonte conduzido pelo chefe do Executivo – Opinião / Valor Econômico

As corporações mostraram mais uma vez sua força

É como naquelas brincadeiras de expectativa versus realidade que aparecem nas redes sociais. A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) Emergencial era para ser uma soma do útil ao agradável para a equipe econômica: num mesmo embrulho, seria autorizada a necessária retomada do auxílio emergencial e dado o pontapé inicial para um ajuste estrutural nas contas públicas. A realidade é uma versão magra, desdentada e gastona dessa construção.

Logo de início, ainda no Senado, a PEC perdeu um dos dispositivos mais potentes em termos de ajuste: a supressão, do texto constitucional, dos gastos mínimos com saúde e educação. Embora a equipe econômica tenha encontrado na Câmara dos Deputados entusiastas da ideia, a iniciativa não prosperou entre os senadores. Até porque um passo dessa magnitude não poderia de forma alguma ser dado às pressas, no bojo de medidas emergenciais para lidar com uma pandemia.

Mas não é possível ao governo creditar ao Congresso todo o desmonte dos mecanismos de ajuste da proposta de emenda constitucional. O próprio Executivo cortou pela metade, logo de saída, o potencial de economia que se poderia obter com a revisão dos gastos tributários. Deixou de fora os maiores programas, como Simples, Zona Franca de Manaus, entidades filantrópicas. É verdade que as chances de sucesso no corte desses itens tenderiam a zero. Mas, o governo não quis nem sinalizar a intenção.

Também partiu do Executivo, e não do Congresso, a redação de um dispositivo que, na prática, vai adiar para o próximo governo o ajuste das contas da União. A PEC diz que as medidas de corte de despesas, como suspensão de reajustes e contratações, serão disparadas quando os gastos obrigatórios atingirem 95% dos gastos primários totais, ambos sujeitos ao teto. Pelas contas da Instituição Fiscal Independente (IFI), isso só acontecerá em 2025. Se o índice fosse 93%, os gatilhos seriam acionados em 2022.

Com essa calibragem que parece sob medida, as “maldades” que restaram na PEC Emergencial não serão usadas pelo governo federal no próximo ano eleitoral. Como notou o diretor-executivo da IFI, Felipe Salto, será possível até conceder reajustes salariais em 2022. A inflação alta da virada do ano, combinada com uma queda da taxa ao longo de 2021, poderá produzir uma folga no teto de gastos para acomodar essa e outras “bondades”.

Fernando Gabeira - Brasil, visto por um amador

- O Globo

Ministros pelejam no STF. As pessoas morrem. Lula volta à cena. As pessoas morrem. Bolsonaro começa a usar máscara, e seu filho quer que as pessoas enfiem a máscara no rabo. As pessoas morrem. Jornalistas discutem animadamente a eleição do ano que vem. Recorde de mortos: 2.349.

Fui convidado para, mais uma vez, debater a resposta nacional à pandemia. Continuo tentando entender, embora seja para mim bastante clara a razão principal do fracasso. Não posso chamá-la delicadamente de falta de liderança. Isso implicaria omissão ou apenas incapacidade do presidente. Mas ele é obtusamente negacionista. Não é um líder que falta, mas que joga contra.

Já avancei na minha análise, procurando entender por que as pessoas, sobretudo as mais pobres, não seguem as medidas de segurança na pandemia. Mencionei suas condições precárias de habitação e transporte e o fato de que os políticos não se esforçam em criar condições que amenizem a aspereza do cotidiano de sua gente.

Algumas coisas ficam de fora dessa análise. Num bairro próspero do Rio, como o Leblon, há muita gente que despreza ostensivamente as medidas de segurança. E aí, como preencher essa lacuna?

Sou apenas um intérprete amador. Felizmente, tenho comigo na quarentena a bela edição da Nova Aguilar intitulada “Intérpretes do Brasil”. Eles merecem mais do que três volumes comentados por grandes intelectuais. Merecem um eterno reconhecimento por ter arrancado um sentido deste caótico país nascido nos trópicos.

Mergulho nos grandes textos quase toda noite. Mesmo assim, como o domador do poema de Drummond, vivo roído por dúvidas. Sérgio Buarque de Holanda fala de uma certa relutância à autoridade. Paulo Prado menciona, no seu “Retrato do Brasil”, um triste conformismo.

Marcus André Melo* - Polarização

- Folha de S. Paulo

Polarização não pressupõe simetria política

Muitos analistas têm apontado para um recrudescimento da polarização política em virtude da possível participação de Lula na eleição de 2022. O debate tem girado em torno de uma disputa entre dois extremos ideológicos e sobre o espaço para uma candidatura de centro, argumento que é criticado porque não haveria simetria ideológica ou programática: o PT e seu candidato não seriam extremistas.

Há aqui um equívoco argumentativo, porque várias dimensões separadas estão justapostas. O que, ou quem, está polarizado? Partidos, políticos individuais ou o eleitorado? E mais: a polarização não se confunde com a localização de partidos ou candidatos no continuum ideológico.

Como demonstrado por pesquisas empíricas, a polarização política nas democracias avançadas, sobretudo nos EUA, onde se manifestou de forma intensa, não está ancorada em divergências programáticas. Embora os políticos estejam crescentemente polarizados, muitos cidadãos convertem-se em "ideólogos sem questões", como argumenta Liliana Mason.

Celso Rocha de Barros - Como Bolsonaro reagirá a Lula?

- Folha de S. Paulo

Presidente dirá que causou a recuperação gerada pela vacinação que sabotou

Como disse em meu artigo publicado na Ilustríssima, a entrada de um Lula moderado na disputa eleitoral de 2022 mudou completamente o quadro político brasileiro. Lula moderado é um polo de oposição muito mais forte do que os que havia até agora. O choque, inclusive, levou o “centro” a acelerar suas articulações por uma candidatura competitiva. Como a extrema direita que governa o Brasil desde 2019 vai reagir?

No dia do discurso de Lula, a reação de Bolsonaro foi de evidente terror. Pela primeira vez em muito tempo, apareceu de máscara em uma solenidade pública. Não tenho nenhuma dúvida de que seu pessoal nas redes sociais notou que as declarações ponderadas de Lula sobre vacinas e máscaras foram bem-recebidas pelo público.

Seria maravilhoso se a ameaça Lula forçasse Bolsonaro a finalmente começar a se comportar como presidente da República, mas talvez seja tarde demais. Se Jair acordou na quinta-feira decidido a se comportar como um estadista responsável para derrotar Lula, imediatamente deve ter percebido que o Jair de 2020 não comprou as vacinas que um Jair responsável de 2021 teria que aplicar. Como a única outra alternativa de combate à Covid-19, o lockdown, prejudicaria o Jair candidato de 2022, não sobrou nada de responsável para qualquer Jair fazer no Brasil da pandemia.

Ana Cristina Rosa - Além do vírus, fome

- Folha de S. Paulo

No auge da pandemia no Brasil, o desemprego é recorde

Alguma coisa vai muito mal quando ir às compras no supermercado se torna um ato angustiante e motivo de tristeza. Pois na capital federal chegamos a esse ponto. Está cada vez mais difícil entrar pela porta da frente de um supermercado sem ser abordada por criança ou adulto a pedir por comida.

Pudera. No auge da pandemia no Brasil, o desemprego é recorde, a tendência é de aumento dos juros e a inflação disparou. Para completar, nos últimos 12 meses a alta de preço dos alimentos representa quase o triplo do percentual da inflação oficial, segundo a aferição do IBGE.

Além do aterrorizante crescimento exponencial das mortes por Covid-19, o empobrecimento da maioria da população é fato que chama atenção e preocupa nesses tempos sombrios. O agravamento do nível de insegurança alimentar atinge mais de 10 milhões de brasileiros segundo as estimativas oficiais. É gente que está passando fome, que vai deitar de barriga vazia e acorda sem saber se terá o que comer ao longo do dia.

Catarina Rochamonte - Danilo Gentili e o autoritarismo da Câmara

- Folha de S. Paulo

Imputar saudosismo de ditadura a Gentili é assombrosa aleivosia

Em atitude abusiva, covarde e persecutória, o presidente da Câmara e sua turma acionaram o STF com um pedido de prisão em flagrante contra o humorista Danilo Gentili. O motivo da estapafúrdia peça jurídica, enviada pelo ministro Alexandre de Moraes para apreciação da PGR, foi uma postagem de Twitter na qual o apresentador vale-se de expressão hiperbólica para tecer sua crítica aos deputados que apoiavam aquela que ficou conhecida como "PEC da impunidade."

Augusto Aras se manifestou junto ao STF dizendo não existir, "por ora", motivos para a prisão, mas propôs incluí-lo no inquérito dos atos antidemocráticos e recomendou seu banimento do Twitter. Outras medidas de cerceamento contra as liberdades de Gentili foram propostas, como a proibição de sair da cidade onde vive ou se aproximar a menos de um quilômetro da Câmara.

Denis Lerrer Rosenfield* - O crime compensa!

- O Estado de S. Paulo

Se o prestígio do Supremo Tribunal já não era grande, sai agora diminuto

Perplexidade talvez seja o melhor termo para caracterizar a decisão do ministro do STF Edson Fachin de cancelar, por questões processuais, a condenação do ex-presidente Lula. Perplexidade ainda mais acentuada pelo segundo momento desse teatro do absurdo, quando a segunda turma põe em votação a imparcialidade ou não do ex-juiz Sergio Moro. Os papéis abruptamente se invertem, o decido torna-se inválido, o mocinho torna-se bandido. A continuar nessa toada, o ex-juiz será considerado ficha-suja, enquanto o responsável pela corrupção posará de vítima. Onde estão agora o “sujo”, o “lixo”, a “corrupção”, o desvio de recursos públicos, a compra de parlamentares? Vai tudo para debaixo do tapete?

Qual é a percepção do brasileiro, aquele que não compreende as firulas jurídicas? A resposta mais imediata, sem dúvida, é a de que o Judiciário condenou injustamente o ex-presidente da República. Pobre coitado, foi preso arbitrariamente, numa tramoia urdida por juízes e promotores. Evidentemente, não sabe a diferença entre anulação do “juiz natural” e anulação de “provas”. Politicamente é a mesma coisa!

Roberto Romano* - O Congresso como pandemia

- O Estado de S. Paulo

Mercenários? Há muitos por lá. Subornos? Ora... Preocupados com o bem público? Poucos

Já passou a hora de pôr um fim à sua presença neste lugar que perdeu a honra pelo desprezo de todas as virtudes, contaminado por todos os vícios. Os senhores não passam de uma facção inimiga de todo bom governo, pois formam um bando de miseráveis mercenários. Seu gosto é como o de Esaú: vender seu país por um guisado e, como Judas, trair Deus por moedas. Existe uma única virtude entre os senhores e algum vício que não possuam? (...). Qual dos senhores deixou de trocar a consciência por subornos? Existiria um homem entre os senhores preocupado com o bem da Comunidade? Prostitutas sórdidas! Os senhores não infectaram este lugar sagrado e fizeram do templo divino um covil de ladrões por seus princípios imorais e práticas iníquas? Os senhores se tornaram odiosos para toda a nação pois foram postos aqui, pelo povo, para reparar suas queixas, mas se tornaram a fonte da maior queixa. Logo, o seu país apela-me para limpar esta estrebaria de Augias, pondo um ponto final nos procedimentos iníquos desta Assembleia. Com ajuda de Deus e a força que ele me deu, efetivo tal missão. Ordeno, com perigo das suas vidas, que os senhores saiam imediatamente deste lugar. Escravos venais, vão embora! Em nome de Deus, vão!

Deixei sem aspas o trecho acima para que os informados sobre a história dos parlamentos tenham o prazer melancólico de identificar semelhanças entre o que teria ocorrido na Inglaterra do Rump Parliament e os dias de hoje, no Brasil. Cromwell, a quem se atribui a fala mencionada, se estivesse na porta do Congresso brasileiro, informado das manobras para tornar os parlamentares isentos das leis que eles mesmos devem manter, diria as mesmas palavras do parágrafo anterior. Nada falta para a similaridade entre a situação parlamentar na terra de Shakespeare (“existe algo podre no reino...”) e o Brasil de agora.

Mercenários? Existem muitos no Parlamento nacional. Praticantes de subornos? Ora... Preocupados com o bem público? Poucos.

Ricardo Noblat - Efeito Lula pode custar a cabeça do general Eduardo Pazuello

- Blog do Noblat / Veja

Acuado, Bolsonaro procura saídas

Que condições impôs a cardiologista Ludhmila Hajjar para aceitar substituir o general Eduardo Pazuello como ministra da Saúde? Ao presidente Jair Bolsonaro, com quem se reuniu, ontem, no Palácio da Alvorada, o que ela pediu equivale ao feijão com arroz.

Em resumo, pediu autonomia para formar sua equipe e adotar à frente do ministério a política que achar adequada para, de saída, deter o agravamento da pandemia que bate recordes diários em número de mortos. Autonomia e vacina, vacina, vacina.

Mais adiante, se os resultados forem bons, se pensará no resto. Mas com o sistema público e privado de atendimento médico às vésperas de um colapso, com pacientes internados até em banheiros de hospitais, não há outra prioridade. Simples assim.

Simples para quem é do ramo, e simples de ser entendido por quem tem amor à vida alheia. Bolsonaro provou que esse não é o seu caso. Mortes não lhe importam se o preço a ser pago para diminuí-las prejudica a economia e seu projeto de reeleição.

Irapuã Santana - Polarização e Teoria dos Jogos


- O Globo

Um país imaginário, dividido em duas castas rivais, conduz eleições para o seu novo líder. Três candidatos concorrem, um de cada casta e um terceiro, moderado. Os candidatos sectários fizeram da perseguição aos integrantes da casta rival sua plataforma de campanha. Caso um deles seja eleito, os membros da casta oposta sabem que seus direitos serão suprimidos, enquanto os da mesma casta receberão privilégios. O moderado não oferece risco, nem privilégios, a nenhum grupo.

Nas urnas há empate entre os dois candidatos ligados às castas, enquanto o moderado segue atrás com apenas um voto de diferença. Dois cidadãos, um de cada casta, são chamados a proferir os votos decisivos no certame eleitoral, em sigilo. Ambos prefeririam a eleição do candidato moderado em relação à vitória do concorrente de casta rival, já que sofreriam severas consequências adversas nesse último cenário. Entretanto aquele apenas será eleito se obtiver dois votos. Em caso de novo empate, haverá sorteio dentre os candidatos empatados com mais votos para eleger o vencedor.

Bruno Carazza - Mais próximo do que se imagina

- Valor Econômico

Autonomia exige cautela de presidente do BC

No seu discurso de fênix na quarta (10/03), Lula disse não saber por que o mercado deveria ter medo de sua volta ao poder, diante de tudo o que ele e o PT fizeram pelo empresariado. Em resposta à repórter Cristiane Agostine, do Valor, porém, deixou explícita uma exceção: “Eu era e sou contra a autonomia do Banco Central. É melhor o Banco Central estar na mão do governo do que estar na mão do mercado. [...] A quem interessa essa autonomia? Não é ao trabalhador urbano, não é ao sindicalista, é ao sistema financeiro”.

Embora real, o risco de captura de órgãos reguladores por representantes de empresas é difícil de ser comprovado. Seguir os caminhos do dinheiro, mapeando doações de campanhas, ajuda bastante. Monitorar agendas públicas e verificar com quem eles se sentam à mesa também. Outra estratégia que costuma funcionar é observar o movimento das portas giratórias da administração pública, quando agentes do mercado são nomeados para cargos nas agências reguladoras e, depois de um tempo, retornam aos antigos empregadores.

O pesquisador David Finer, da Chicago Booth School of Business, deu um passo além. Utilizando a Lei de Acesso à Informação de Nova York, teve acesso a dados anônimos de mais de um bilhão de viagens de táxi ocorridas na maior cidade dos Estados Unidos entre 2009 e 2014, incluindo as coordenadas de GPS, data e horário do início e do fim de cada deslocamento.

Alex Ribeiro - Copom deve agir com calma e tranquilidade

- Valor Econômico

Mercado pressiona por aperto monetário forte e acelerado

O mercado financeiro está pressionando o Banco Central para subir os juros com mais vigor em reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) que começa amanhã. Os juros futuros fecharam com forte alta na sexta-feira, precificando quase 30% de chance de uma alta de 0,75 ponto percentual na Selic. Os ativos gritam para que o BC elimine rapidamente os estímulos monetários, levando a taxa para 6% ao ano.

A tese defendida por muitos no mercado é que uma alta forte e rápida da taxa Selic vai ter efeitos positivos na atividade econômica. Ou seja, com movimentos corajosos, o Banco Central vai convencer o mercado de que vai ser implacável com a inflação, fazendo com que a curva de juros fique menos inclinada, o dólar recue e as condições financeiras gerais da economia fiquem mais favoráveis - o que é bom para a economia.

 “É um argumento completamente maluco”, diz um experiente economista que deu aulas para muitos dos que operam hoje no mercado. “Quanto mais ‘hawk’ você age, mais ‘dove’ você fica. Isso não faz sentido”, afirma, usando o jargão dos economistas para banqueiros centrais inclinados ao aperto monetário (“hawk”, falcão em inglês) e inclinados a distensão (“dove”, ou pombo).

Música | Leila Pinheiro e Roberto Menescal - Bossa Nova

 

Poesia | Fernando Pessoa - Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes
e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa,
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim…
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas —
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas —,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.