Enquanto no país prevalecer a postura de tratar a corrupção dos aliados e correligionários como uma questão política, e demonizar a corrupção dos adversários, não teremos condições de controlar essa verdadeira praga, que não é "coisa nossa", pois está espalhada pelo mundo globalizado, mas que tem encontrado entre nós um acolhimento incomum devido à legislação frouxa e à cultura da impunidade que por aqui impera.
Por isso, quando volta e meia relatórios do Departamento de Estado dos Estados Unidos ou de outro governo qualquer classificam nossa corrupção de endêmica, é preciso entender a palavra como uma metáfora, e não ficar com o nacionalismo à flor da pele.
Não se diz que a corrupção no Brasil é endêmica por se tratar de uma doença típica dos trópicos, por exemplo, mas para explicar que ela se espalhou pelo organismo social do país, e essa parece ser uma verdade irrefutável.
No índice da Transparência Internacional, o Brasil caiu da 45 para 73 posição entre 2002 e 2011, uma piora considerável durante os governos petistas.
Mas o partido que está no poder usava o combate à corrupção como sua marca antes de chegar à Presidência, e tentou manter as aparências nos primeiros tempos de poder central.
O ex-ministro José Dirceu cunhou o slogan, que repetia seguidamente, "este é um governo que não rouba nem deixa roubar", até que seu assessor político Waldomiro Diniz foi denunciado por um vídeo, que o mostrava recebendo propina do bicheiro Carlinhos Cachoeira quando trabalhava nas Loterias do Rio de Janeiro no governo Garotinho.
O vídeo era antigo, mas revelava uma aptidão de seu principal assessor no Congresso nada adequada aos cargos que ocupava.
Com a revelação do mensalão, e de métodos nada ortodoxos de atuação política de petistas à frente de prefeituras pelo país, especialmente paulistas, ficou claro que a diferenciação do PT dos outros partidos que acusava existia apenas no marketing político.
Diferentemente dos outros partidos, no entanto, no PT ser corrupto não invalida a atuação política de um líder importante.
Ao contrário, o partido, mesmo que tenha no primeiro momento que fingir estar se livrando do filiado apanhado em flagrante, assume a proteção de seus políticos acusados até que o tempo ajude a nublar a memória do cidadão mediano.
E todos vão sendo acomodados novamente na burocracia partidária ou mesmo nos diversos escalões dos governos que o PT assume, como se não devessem nada.
O caso do senador Demóstenes Torres é emblemático. Seu ex-partido, o DEM, abriu um processo de expulsão que o obrigou a se desfiliar, o mesmo tratamento dado anteriormente ao ex-governador do Distrito Federal José Roberto Arruda.
Quem o PT expulsou de suas fileiras nos últimos anos, quando escândalos de diversos quilates estouraram no seu colo?
Apenas seu tesoureiro à época do mensalão, Delubio Soares, que nunca perdeu sua situação de prestígio dentro do partido e foi finalmente reconduzido oficialmente de volta no ano passado, antes mesmo do julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, numa tentativa de inocentá-lo publicamente antes do veredito oficial.
José Dirceu continuou com tanta importância dentro do PT que se tornou um consultor de empresas altamente requisitado justamente por seu prestígio pessoal junto aos presidentes petistas e demais autoridades governamentais.
Ele mesmo admitiu em entrevista que um telefonema seu tinha um peso diferenciado.
O PSDB teve o mesmo comportamento do PT em relação ao hoje deputado federal Eduardo Azeredo, acusado de ter dado origem ao esquema do mensalão na campanha em que se candidatou a governador de Minas com o mesmo Marcos Valério que mais tarde surgiria organizando o mensalão petista.
É verdade que Azeredo perdeu a presidência do partido e o prestígio interno quando o escândalo estourou, e não conseguiu legenda para tentar se candidatar a senador, tendo se contentado a disputar uma vaga de deputado federal.
Em sua defesa, ele alega que sua situação nesse esquema é idêntica à do ex-presidente Lula, que não foi envolvido em nenhuma investigação do mensalão do PT.
Essas situações evidenciam que a questão da corrupção continua sendo um tabu entre nossos políticos, e a tendência de absolver seus pares é quase uma questão de autopreservação.
Agora mesmo não se consegue quem queira presidir a Comissão de Ética do Senado para iniciar um processo contra o senador Demóstenes Torres.
É impensável que o Senado não encare esse problema, e o mais provável é que ele seja julgado e condenado por quebra do decoro, mas todos os constrangimentos da corporação estão expostos aos olhos da opinião pública.
Uma outra característica de casos como os do bicheiro Carlinhos Cachoeira é que eles são multipartidários, isto é, acabam envolvidos parlamentares de vários partidos, independente de ideologia ou tendência política.
Por isso, a CPI do Cachoeira dificilmente será aprovada, pois não interessa a nenhum dos principais partidos: o PT, além de ter alguns deputados envolvidos nas escutas, não quer remexer no caso Waldomiro Diniz às vésperas do julgamento do mensalão.
O PSDB tem o governador Marconi Perillo perigosamente colocado em zonas de suspeição, já tendo uma assessora pedido demissão depois de flagrada em conversas telefônicas com Cachoeira em um Nextel.
Os dois, aliás, deram desculpas esfarrapadas sobre seus casos. A assessora disse que foi confundida com outra pessoa, e o governador que recebera o bicheiro a pedido do senador Demóstenes, e que Cachoeira jurara que já abandonara a contravenção.
Os petistas que acusam a mídia de ter "inventado" Demóstenes, transformando-o em um ícone da oposição mesmo sendo ele quem era, esquecem-se do caso do ex-ministro duas vezes Antonio Palocci, que nos governos Lula e Dilma foi tratado pela mesma mídia como o grande garantidor do equilíbrio político e econômico das gestões petistas.
Os dois, o ex-ministro e o senador, realmente exerceram os papéis que a mídia lhes atribuía. Só que, por baixo dos panos, tinham outras atividades desconhecidas até serem denunciadas.
FONTE: O GLOBO