Para celebrar a data, neste sábado, é só repetir o titulo do álbum de Bethânia “Que falta você me faz”, esperar que todos ao alto-falantes do país toquem o “Samba da Bênção”, e rematar com Toquinho: Vininha velho sarava!”
Em depoimento prestado a Miguel Faria Jr., na abertura do precioso documentário "Vinicius de Moraes" (Videolar/Paramount, 2006), Chico Buarque afirma não ser capaz de imaginar Vinicius vivo, hoje: que relações ele manteria com a generalizada luta pelo sucesso a qualquer preço nesta sociedade tão pragmática e neoliberal? Se aparecesse de repente no Rio, em Salvador, em Los Angeles, em Paris, depois de anos de ausência, é possível que ele se espantasse: vocês desistiram? Deixaram os caras tomar conta de tudo? A vida única e a liberdade de cada um não valem mais nada?
De fato, quem, hoje, diria: "Eu sei que vou te amar, por toda a minha vida eu vou te amar"? Sim, claro, alguém talvez lembrasse: "...que não seja imortal posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure". Mas onde foi parar a "chama"? E como sonhar que venha a ser "infinito" o que nem chega a começar? De que adianta saber que "a alegria é a melhor coisa que existe", e que "pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza", se todos desistiram de conciliar os contrários?
Pois é, se aparecesse por aí, Vinicius ficaria desolado. Mas, um uísque depois, ele contaria uma boa piada, se sentiria de novo em casa e começaria a cantar, com "o Baden mandando brasa no violão": "Afogai-me, tirai-me deste tempo,/ Levai-me para o campo das estrelas,/ Entregai-me depressa à lua cheia,/ Dai-me o poder vagaroso do soneto, dai-me a iluminação das odes, dai-me o cântico dos cânticos,/ Que eu não posso mais, ai!,/ Que esta mulher me devora!/ Que eu quero fugir, quero a minha mãezinha, quero o colo de Nossa Senhora!"
Vinicius passou a vida (1913-1980) tentando conciliar os contrários - na poesia, na música, nas amizades, nas profissões que exerceu, na fieira de amores que viveu (casamentos reconhecidos foram nove). Por isso não só acompanhou, mas ajudou a criar a profunda transformação de valores que este país conheceu no período que vai dos anos 30 à década de chumbo posterior ao Ato Institucional nº 5, de 1968: ditadura Vargas, democracia Dutra, Vargas de novo, depois Juscelino, Brasília, Jânio, a renúncia, Jango, o golpe de 64, a ditadura militar e bem mais tarde a volta à democracia. Ao longo desse tempo, alheio ao vaivém, o sonho de um Brasil grande - na arquitetura, no futebol, no cinema, no teatro, na indústria automobilística, na urbanização triunfante, na desigualdade crescente...
Enquanto a pátria oscila entre o jeitinho brejeiro do homem cordial e a tirania dos que se sentem donos do poder, Vinicius alterna a alegria ilimitada dos prazeres do amor com a inarredável consciência da tragédia iminente. Não ora um, ora outro, mas os dois sempre entrelaçados - na alma do poeta e nas entranhas do país.
Mas a revolução de Vinicius parece ter-se concentrado na liberalização dos costumes. Para ele, esse Brasil novo tem como epicentro a Mulher, que desce do pedestal onde a tradição espiritualizante a colocara, para surgir aos olhos do poeta - Vênus nascida da espuma - banhada de sol e mar, livre e sensual, "leve como um resto de nuvem: mas uma nuvem com olhos e nádegas". "Em sua incalculável imperfeição", a mulher, para Vinicius, é "a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável".
Poeta de prestígio, já ao estrear, em 1933, com "O Caminho para a Distância"; diplomata bem-sucedido, a partir dos anos 40 - Vinicius foi aos poucos largando a pose, a gravata, o paletó, a carreira segura que tinha pela frente, para se arriscar na aventura da música popular, o livre exercício de cantar a vida que brota do efêmero e passa e se renova a cada novo amor.
A partir dos anos 50, graças ao sucesso de sua peça "Orfeu da Conceição", encenada no Theatro Municipal do Rio de Janeiro (cenário de Oscar Niemeyer, música de Tom Jobim); graças à boa aceitação das primeiras apresentações em público, ao lado do mesmo Tom, Odette Lara, João Gilberto -, Vinicius se entrega por inteiro à poesia da vida cotidiana que, convertida em música, se espalha por toda parte. O poeta descobre sua vocação de cantor, ao mesmo tempo, da mulher e da alma do povo.
Em plena ditadura militar (ele ainda ligado à diplomacia, mas já famoso como parceiro de Tom Jobim, Carlos Lyra, Baden Powell e outros), o Itamaraty não lhe perdoou a ousadia da hibridez e fez cumprir a ordem transmitida, em curto e grosso memorando, por Costa e Silva: "Demita-se esse vagabundo".
Ele fez o possível para mostrar que não estava nem aí e seguiu em frente. Ainda teve fôlego para mais três casamentos, e uma derradeira parceria, a mais duradoura, com Toquinho, que tinha idade para ser seu neto.
Para celebrar o centenário (19/10/2013), é só repetir, com Maria Bethânia, o título do álbum que é um dos pontos altos da carreira da cantora: "Que Falta Você Me Faz - Músicas de Vinicius de Moraes" (Biscoito Fino, 2004); esperar que todos os alto-falantes do país toquem, vezes sem conta, o "Samba da Bênção"; e rematar, com Toquinho: "A vida é pra valer,/ A vida é pra levar./ Vininha, velho, saravá!"
Carlos Felipe Moisés é poeta ("Noite Nula"), crítico literário ("Poesia & Utopia") e tradutor ("O Poder do Mito")
Valor Econômico