(José de Alencar, vice presidente da República, ontem, no Jornal do Brasil)
Política e cultura, segundo uma opção democrática, constitucionalista, reformista, plural.
segunda-feira, 11 de janeiro de 2010
Reflexão do dia – Vice Presidente da República
(José de Alencar, vice presidente da República, ontem, no Jornal do Brasil)
Fábio Wanderley Reis :: PSDB, Serra e Aécio
As particularidades do processo de definição da candidatura presidencial do PSDB para as eleições deste ano são talvez reveladoras do ponto de vista de questões mais gerais sobre partidos e dinâmica partidária. Naturalmente, o contraste a ser estabelecido é antes de tudo com o PT. Aí, a figura de Luiz Inácio Lula da Silva, tendo sido decisiva desde o início como referência mesmo para aqueles que pretendiam construir um partido ideológico capaz de ir além de meros personalismos, segue sendo, com o êxito e a popularidade singulares, o grande fator de coesão do partido agora pragmático que resolve escolher Dilma Rousseff como candidata (Lula demais, mas, no pós-2005, candidatos a candidato de menos) e trata de somar-lhe apoios heterogêneos.
Já no PSDB, não obstante a visibilidade especial de Fernando Henrique Cardoso, com o prestígio intelectual e o exercício de dois mandatos presidenciais, o que temos é antes um conjunto de líderes de estatura política mais uniforme. Como consequência, as ambições pessoais não têm de haver-se com o peso de uma liderança maior e incontestável. Em princípio, isso poderia representar um traço propício à busca de coesão em termos mais afins à democracia partidária, com a institucionalização do partido levando a um grau relevante de controle dos líderes pela base partidária. Mas torna-se também mais difícil equilibrar os interesses políticos pessoais com os do partido como tal. Esse é o problema que se encontra, em geral, nas disputas em torno de mecanismos como o do voto em listas como instrumento de fortalecimento partidário, em que se aponta o perigo de oligarquia, em contraste com a "democrática" apropriação do mandato pelo político individual - ou com o recurso a prévias ou eleições primárias, em que a chefia partidária tende a ver comprometido o seu controle da escolha dos candidatos.
As idas e vindas da competição entre José Serra e Aécio Neves podem ser vistas na perspectiva de sugestões que se ligam a isso. Embora as pesquisas coloquem Serra, até aqui, como líder destacado dos candidatos potenciais do PSDB nas preferências populares, há indícios nítidos de que a disputa com Dilma (até com Dilma...) pode vir a ser difícil: já haveria um empate "latente" entre os dois na soma dos apoiadores declarados da ministra com aqueles que se dizem inclinados a votar em quem quer que Lula indique e que ainda não sabem que ela já é a sua candidata. E a candidatura à Presidência pode revelar-se uma opção pessoalmente ruim para Serra, cuja reeleição para o governo de São Paulo se presume tranquila. Mas resta a ponderação de que, para um político como Serra e a esta altura da vida, a aposta dirigida à Presidência, mesmo com alguma precariedade, é provavelmente mais sedutora do que a simples acomodação a alguns anos mais de um cargo "confortável". De todo modo, a composição com Aécio numa chapa "puro sangue" pode ser crucial para as chances de vitória.
Já a orientação das ações recentes de Aécio parece clara. Depois do ícone oligárquico em que se transformou, há poucos anos, a imagem de alguns cardeais pessedebistas a deliberar sobre candidatura presidencial em jantar de bons vinhos, o partido, caso Aécio batesse o pé a respeito, não teria como deixar de realizar as prévias que ele (apesar de incluído no ícone...) passou a reclamar. As razões de seu recuo de insistir na exigência parecem ser as mesmas que o levaram depois a desistir de buscar a candidatura à Presidência, ostensivamente e de imediato, como parte da disposição em que sobressai a recusa de ser candidato a vice de Serra. Descrita como "generosa" por líderes partidários envolvidos no jogo, a desistência obedeceria antes a um cálculo fácil de reconstituir do ponto de vista do projeto político pessoal de Aécio: o desfecho de derrota nas prévias, além do desgaste que representaria em si mesmo, tornaria muito mais difícil para ele resistir a associar-se a Serra em posição subalterna, na qual compartilharia os danos da eventual derrota eleitoral (ou mesmo de um governo comparativamente mal sucedido em seguida ao Super-Lula) sem perspectivas nítidas de ganho em caso de vitória e êxito de Serra. Por outro lado, seguindo caminho próprio (no Senado, por exemplo), mesmo o poder dos tucanos paulistas dificilmente impediria que o partido lhe caísse no colo na hipótese de malogro de Serra.
Um aspecto importante é o de que o partido, levado quer por cuidados supostamente mais nobres com a coesão partidária, quer até pelo empenho de interesses parciais em melhorar as coisas para Serra, poderia ter tratado oportunamente de encaminhar de fato a realização de prévias e de, por assim dizer, agarrar Aécio pela palavra. De um ponto de vista "serrista", o risco, naturalmente, era o de que o processo assim deflagrado acabasse por viabilizar a opção do partido pela candidatura de Aécio, e é provável que, com o poder paulista, esse risco tenha sido a razão decisiva de que o processo não tenha andado. O que acaba por sugerir que, seja qual for a percepção externa quanto à estatura político-eleitoral de diferentes líderes tucanos, a suposição da existência de um número mais ou menos amplo de lideranças de poder equivalente se revela internamente problemática. Mas, se a dimensão especial do poder de Lula assegura, bem ou mal, a coesão petista, as desigualdades relativas de poder no PSDB redundam no comprometimento evidente da coesão tucana, por mais que seja outra a retórica. A ver com quais consequências eleitorais.
Fábio Wanderley Reis é cientista político e professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais. Escreve às segundas-feiras
Luís XIV tropical :: Marcelo de Paiva Abreu
Nunca neste país o poder político esteve tão concentrado numa só pessoa como hoje no presidente Lula. Essa afirmação, ao contrário de muitas gabolices do presidente, é verdadeira e tem implicações cruciais para o destino do País nas próximas décadas.
Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek (JK) não se aproximaram da popularidade de Lula. O Getúlio relevante, de 1951-1954, só foi popular na eleição e no início do governo. JK tinha dúvidas quanto à sua popularidade, em face do populismo de centro-direita encarnado por Jânio Quadros. A sua estratégia de volta ao poder em 1965 envolveu o sacrifício de Henrique Lott, candidato do governo na eleição. Juscelino imaginava que o tempo cuidaria de Jânio. Cuidou de Jânio e dele também.
Lula é o mais popular presidente na história do Brasil. Seu problema é como fazer uso eficaz desse cabedal.
Escândalos envolvendo o Partido dos Trabalhadores (PT) comprometeram a imagem do partido que se pretendia inspiração para a consolidação de outros partidos políticos e a redução do fisiologismo na vida política do País. O PT mostrou ser bem parecido com os demais partidos.
O seu poder pessoal, já marcante antes da crise do partido, se reforçou. O protagonismo presidencial dominou as ações do governo dentro e fora do País. No País, o presidente escolheu a candidata de seu partido à eleição presidencial e adotou como refrão afirmações ao estilo de "nunca antes neste país", frequentemente sem qualquer compromisso com os fatos. Antes mesmo da atual campanha eleitoral da ministra Dilma Rousseff, o presidente já estava engajado em campanha eleitoral permanente, pouco interessado em sutilezas quanto ao que diferenciaria interesses de governo, da coalizão partidária dominante ou do País.
O protagonismo externo tem envolvido opções questionáveis, como a "relação estratégica" com a França, as tertúlias com o neobolivarianismo ou com o neoperonismo e a intimidade com o regime iraniano. Como pano de fundo, o emblemático anseio por um lugar no Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU).
A adequação do monarca absolutista ao regime republicano não é trivial. Dada a extensão indefinida de seus "mandatos", pois só a morte determinaria sua sucessão, monarcas podiam se dar ao luxo de acompanhar o "l"Etat c"est moi", de Luís XIV, com o "après moi, le déluge", de Luís XV (ou talvez de Madame de Pompadour) - "o Estado sou eu" e "depois de mim, o dilúvio", ou seja, "danem-se".
O presidente Lula gosta da primeira parte, mas não da segunda, pois a Constituição brasileira estabelece regras sobre a duração de mandatos e as possibilidades de reeleição. Dadas as dificuldades de reforma constitucional, o uso ótimo do capital político do presidente revelou ser a eleição do seu sucessor e a sua volta nos braços do povo em 2014.
A implementação dessa estratégia não é trivial. O problema óbvio é a capacidade de Lula eleger o sucessor, ou seja, de transformar a sua popularidade em votos para Dilma Rousseff. Imagine-se que Dilma Rousseff seja eleita. Para Lula, uma grande vitória e, também, espinhosos problemas a resolver. Como estabelecer a tutela da nova presidenta? É difícil ver Lula como mentor direto da sua candidata vitoriosa.
Como seria exercida a tutela indireta de Lula? Quão propensa a aceitá-la será Dilma Rousseff? Qual será a efetiva influência do seu nacionalismo exaltado, externado em palanque, sobre as políticas de seu governo? A política de estabilização poderá ser comprometida? Sem o protagonismo de Lula será difícil manter a atual política externa baseada em muitos fogos de artifício. E, finalmente, se o exercício da Presidência classicamente desperta desejos de reeleição, o que assegura que Dilma Rousseff abrirá espaço para Lula em 2014? São complexas as relações entre criador e criatura.
Por outro lado: o que fará Lula, se José Serra for vitorioso? É difícil imaginar que volte à posição de líder e inspirador do PT, que ocupou antes da vitoriosa eleição de 2002. Inclusive porque, como já foi dito, o PT em 2011 será muito diferente do PT pré-2003. Não será nada fácil justificar o fracasso da sua escolha pessoal de sucessor.
As dificuldades da sua posição podem ser talvez ilustradas por especulações quanto à sua postura relativa à política econômica. Vai retroceder para as posições ridículas da oposição pré-2003 ou vai manter coerência em relação ao que se implementou enquanto foi presidente? Tudo, é claro, dependendo de quão "desenvolvimentista" possa ser a política econômica do candidato vitorioso.
De qualquer forma, a proverbial capacidade política do presidente será duramente testada na sua volta à oposição.
Lula, em 2010, vai ter bem mais trabalho do que carregar caixa de isopor. Vai enfrentar uma crise militar séria decorrente de tentativas canhestras de rever a legislação relativa à Lei da Anistia. Agravada, no caso da Aeronáutica, pelas peripécias em relação à escolha dos novos caças e pela explicitação de que os critérios políticos serão dominantes na decisão final. No terreno da política externa, diversas posições adotadas pela diplomacia brasileira serão agora testadas com a participação do Brasil como membro eleito do Conselho de Segurança da ONU no próximo biênio.
É muito. Vai testar os limites de seus inegáveis talentos.
Marcelo de Paiva Abreu, Ph.D. em Economia pela Universidade de Cambridge, é professor titular do Departamento de Economia da PUC-Rio
Ricardo Noblat :: Só prendendo
"Devo também ter cometido erros. Quero dizer, de coração mesmo, que eu já perdoei todos os que me agrediram"(Arruda)
Brasil, meu Brasil brasileiro, meu mulato inzoneiro! Saúdo a esperteza dos que o comandam e a apatia dos seus habitantes. A propósito: o que deverá acontecer com o governador José Roberto Arruda, do Distrito Federal, depois de ter sido apontado como chefe de uma organização criminosa? O mais provável é que ele cumpra seu mandato até o fim.
Que país é este onde um deputado filmado escondendo dinheiro nas meias reassume a presidência do poder Legislativo para comandar o processo de impeachment do governador, seu aliado, acusado de corrupção? É o que ocorrerá, logo mais, na Câmara Legislativa do Distrito Federal com a volta à cena do deputado Leonardo Prudente.
Está para se ver ato mais revelador do estado de apodrecimento dos costumes políticos na capital da República. Licenciado do cargo por 60 dias, Prudente antecipou seu retorno depois de ter explicado – sem sequer franzir o cenho – por que escondeu dinheiro nas meias: “Não uso pasta”. Sabe de uma coisa? Saudades de Severino Cavalcanti!
Eleito presidente da Câmara dos Deputados em fevereiro de 2005, o rei do chamado “baixo clero” renunciaria ao cargo dali a sete meses ao ser confrontado com a cópia de um cheque de R$ 10 mil que recebera como propina paga por Sebastião Buani, concessionário de restaurantes. Na Era Lula, o mensalinho de Severino foi pioneiro.
Não, não foi daquela vez que Lula se valeu da expressão “uma merreca” para designar subornos de pequeno valor. “Uma merreca” fez sua estreia no vocabulário político do País quando Lula, às voltas com o mensalão do PT em 2006, saiu em defesa do deputado Professor Luizinho (SP), beneficiado com a modesta quantia de R$ 20 mil.
Lula tentara antes equiparar o mensalão a Caixa 2 de campanha. Como se Caixa 2, por ser uma prática corrente, tivesse perdido a condição de crime sujeito a severa punição. Em dezembro último, ao falar sobre o mensalão do DEM, o Big Brother de todos os escândalos, Lula insistiu em defender bandidos: “As imagens não falam por si”.
Não, de fato não falam. Elas gritam, berram, suplicam para ser escutadas. Vocês imaginam que serão? Nada se espere da Câmara Legislativa do Distrito Federal, antecipou Durval Ferreira, ex-secretário de Relações Institucionais do governo Arruda, em conversa informal com procuradores da República. Foi ele que detonou Arruda.
Para espanto dos procuradores, Durval contou que apenas um ou dois dos 24 deputados distritais deixaram de ser aquinhoados com o mensalão do DEM e outros favores patrocinados pelo governo. Um dos que se mantiveram íntegros, citado por Durval: o deputado de primeiro mandato José Antônio Reguff (PDT).
No momento, funcionam em Brasília quatro centrais de vídeos capazes de fazer Severino corar. O dono da mais completa é Durval, que entregou 30 vídeos à Polícia Federal e guardou 50. O ex-governador Joaquim Roriz é dono de outra. A terceira é de Arruda. E a quarta dos irmãos Pedro e Márcio Passos, acusados de grilagem de terras.
Quem foi filmado sabe que foi. Quem não sabe receia ter sido. O manto pesado do medo cobre a Brasília dos poderosos. A outra Brasília serve de pano de fundo para a primeira e em boa parte depende dela. Sem dúvida, está indignada. Mas por cautela prefere manter o silêncio dos cúmplices – ou dos desencantados.
Arruda reuniu-se em separado com cada um dos 17 deputados que o apoiam na Câmara. Seu recado foi simples e direto: ou nos salvamos juntos ou afundaremos juntos. Os jornais de Brasília são parceiros de Arruda. O dono de um deles era mensaleiro. O presidente do mais importante foi citado por Durval em mais de um depoimento.
Somente a Justiça poderá estragar os planos de Arruda. Para isso terá de agir com rapidez, acatando o pedido do Ministério Público de mandar prendê-lo. Solto e no exercício do cargo, Arruda prejudica as investigações, como tem feito, e a produção de provas contra ele mesmo.
PSDB cobra posição de Dilma sobre o programa
Catia Seabra
O presidente nacional do PSDB, Sérgio Guerra (PE), cobrou ontem uma manifestação da potencial candidata do PT à Presidência, ministra Dilma Rousseff, acerca do controverso plano de direitos humanos decretado pelo governo. A titular da Casa Civil estava em férias e retorna ao trabalho hoje.
Para Guerra, "é inimaginável que uma iniciativa dessa complexidade não tenha a participação da Casa Civil". "Por que a ministra Dilma, que fala sobre tudo, está calada?", alfinetou.
O governador de São Paulo e possível candidato do PSDB à Presidência, José Serra, avisou a interlocutores que não pretende falar sobre o assunto. Então presidente da UNE, Serra exilou-se após o golpe militar.
Serra tem sido aconselhado a evitar o debate, sob argumento de que importaria para o PSDB uma polêmica que consome a base governista. O ideal, recomendam os serristas, é assistir à crise. Os tucanos ainda temem que a apresentação do programa tenha nascido de uma tentativa de reconquista dos movimentos sociais. E, em caso de descuido, o PSDB poderia acabar caracterizado como conservador, acirrando o caráter plebiscitário que o PT pretende dar à eleição.
No PSDB, há quem duvide que Serra consiga driblar o assunto. Nesse caso, a orientação é concentrar críticas à forma de concepção do programa, contornando o mérito de temas mais delicados. "O método não é adequado. Como se constrói democracia em cima de representação de conferências estaduais e nacional? É distorção da representatividade", disse o vice-governador Alberto Goldman. "O Congresso não discutiu", diz o líder do PSDB na Câmara, José Aníbal.
Roteiro para o autoritarismo –Editorial (domingo)
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou em dezembro um roteiro para a implantação de um regime autoritário, com redução do papel do Congresso, desqualificação do Poder Judiciário, anulação do direito de propriedade, controle governamental dos meios de comunicação e sujeição da pesquisa científica e tecnológica a critérios e limites ideológicos. Tudo isso está embutido no Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), instituído pelo Decreto nº 7.037, de 21 de dezembro - o tal decreto que, acredite quem quiser, o presidente disse que assinou sem ler. O programa, um calhamaço de 92 páginas, é um assustador arremedo de constituição. Recobre assuntos tão variados quanto a educação, os serviços de saúde, a Justiça, as condições de acesso e de preservação da propriedade, as decisões de plantio dos agricultores, a atividade legislativa, as funções da imprensa e o sentido do desenvolvimento.
A apuração das violências cometidas pelos agentes do regime militar e a revogação da Lei da Anistia são apenas uma parte desse programa - a mais divulgada, até agora, por causa da reação dos comandantes militares à redação inicial do decreto. Mas o maior perigo não está nos detalhes, e sim no objetivo geral dessa manobra articulada no Palácio do Planalto: a consolidação de um populismo autoritário sustentado na relação direta entre o chefe do poder e as massas articuladas em sindicatos, comitês e outras organizações "populares".
Tal como seu colega Hugo Chávez, o presidente Lula propõe a valorização de instrumentos como "lei de iniciativa popular, referendo, veto popular e plebiscito". É parte do populismo autoritário a conversão de formas excepcionais de consulta em meios normais de legislação. Usurpa-se o poder de legislar sem ter de recorrer a um golpe aberto. Da mesma forma, a multiplicação de "conselhos de direitos humanos", com ação coordenada "nas três esferas da Federação", reproduz a velha ideia de comitês populares tão cara às ditaduras.
Consumada a mudança, um juiz não mais poderá simplesmente determinar a reintegração de posse de um imóvel invadido. O governo propõe "institucionalizar a utilização da mediação como ato inicial das demandas de conflitos agrários e urbanos, priorizando a realização de audiência coletiva com os envolvidos, com a presença do Ministério Público, do poder público local, órgãos públicos especializados e Polícia Militar". Em outras palavras: esqueça-se a Constituição, negue-se ao juiz o poder de garantir a propriedade e converta-se o invasor em detentor de direitos sobre o imóvel invadido.
Combater essa aberração não interessa apenas a fazendeiros e proprietários. A questão essencial não é o conflito entre ruralistas e defensores da reforma agrária a qualquer custo, mas a depreciação da lei e do Judiciário tal como deve operar no Estado de Direito. Nada ficará fora do controle do assembleísmo. É parte do programa "fomentar o debate sobre a expansão de plantios de monoculturas que geram impacto no meio ambiente e na cultura dos povos e comunidades tradicionais, tais como eucalipto, cana-de-açúcar, soja", etc.
A criançada ficará sujeita, nas escolas, a uma instrução sobre direitos humanos moldada segundo os interesses do regime e apresentada muito claramente no decreto. O controle sobre as mentes não poderá dispensar o comando dos meios de comunicação. Se as leis propostas forem aprovadas, o governo poderá suspender programações e cassar licenças de rádios e de televisões, quando houver "violações" de direitos humanos. Será criado um ranking nacional de veículos de comunicação, baseado em seu "comprometimento" com os direitos humanos. O governo também deverá incentivar a produção de filmes, vídeos, áudios e similares voltados para a educação sobre direitos humanos e para a reconstrução "da história recente do autoritarismo no Brasil". Será um autoritarismo cuidando da história de outro.
As intenções políticas são claras, embora escritas numa linguagem abstrusa. Em todo o texto há expressões do tipo "fortalecimento dos direitos humanos como instrumento transversal das políticas públicas e de interação democrática". Essa patacoada deverá servir de bandeira na campanha da candidata petista à Presidência. Em 2002, esse era o programa do PT. Para se eleger, o candidato Lula teve de renegá-lo em sua "Carta aos brasileiros". Mas não renegou, como se vê mais uma vez, o sonho de "mudar tudo isso que está aí".
Lula: Lei da Anistia não deveria constar de plano
O presidente Lula admitiu a auxiliares que o Plano Nacional de Direitos Humanos não deveria ter incluído temas relacionados à Lei da Anistia, o que gerou uma crise com o ministro da Defesa, Nelson Jobim, e os chefes militares, que chegaram a pedir demissão. Agora, é o secretário Nacional de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, que ameaça demitir-se caso haja alterações no plano. A crise deve ser o tema principal da reunião de hoje da coordenação política.
Para Lula, Lei da Anistia é assunto da Justiça
Presidente admite a auxiliares que foi um erro incluir tema polêmico no Programa Nacional de Direitos Humanos
Gerson Camarotti
BRASÍLIA. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva avalia que foi um erro da Secretaria Nacional de Direitos Humanos incluir no novo plano setorial - cujo decreto vem provocando embate dentro e fora do governo - assuntos relacionados à Lei de Anistia. Contrariado com os conflitos desencadeados pela versão final do Programa Nacional de Direitos Humanos, o presidente afirmou a auxiliares que esse tema deve ser tratado exclusivamente pelo Poder Judiciário, e não pelo Executivo. Editada em 1979, a Lei da Anistia perdoou todos os atos de autoridades e de opositores cometidos durante a ditadura militar.
Lula, que retornou ontem a Brasília depois das férias de fim de ano, considera que o governo poderia ter evitado a crise, caso tivesse excluído integralmente o assunto militar do texto - itens como o fim do Superior Tribunal Militar (STM) acabaram ficando de fora da versão final do plano. A polêmica deverá dominar a primeira reunião de coordenação política do governo em 2010, marcada para a manhã de hoje.
Vannuchi afirma ser um "fusível removível"
A expectativa de integrantes do primeiro escalão é que Lula enquadre seus ministros para acabar com o bate-boca público. Não está descartada a convocação do ministro Paulo Vannuchi (Direitos Humanos), de férias, a Brasília. Ele - a exemplo dos comandantes militares e do colega Nelson Jobim (Defesa) - ameaça pedir demissão se for contrariado no decreto, cuja revisão teria sido prometida por Lula aos militares.
A ameaça de demissão foi feita por Vannuchi em entrevista publicada ontem no jornal "Folha de S.Paulo", na qual ele disse ser um "fusível removível" e que sua eventual saída "não é um problema para o Brasil nem para a República". O ministro afirmou ainda que não vai admitir que transformem o programa num "monstrengo político único no planeta".
A eventual demissão de Vannuchi provocou reações na sociedade civil organizada.
- Quem censurou, quem prendeu sem ordem judicial, quem cassou mandatos e quem apoiou a ditadura militar estão anistiados. Mas um torturador cometeu um crime de lesa-humanidade e deve ser punido pelo Estado como quer a nossa Constituição - disse o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cezar Britto, que telefonou ontem para Vannuchi.
O presidente da OAB-RJ, Wadih Damous, também manifestou "total solidariedade":
- Se é para haver demissões no governo, que primeiro sejam as de Jobim e dos chefes militares - disse. - É inaceitável que a sociedade brasileira volte a ser tutelada por militares.
O decreto gera confronto entre Jobim e Vannuchi desde meados de dezembro e, na semana passada, opôs também os ministros Guilherme Cassel (Desenvolvimento Agrário) e Reinhold Stephanes (Agricultura).
Militares pedem retirada de "repressão política" do texto
Isso porque o decreto dos direitos humanos - que prevê a edição de 27 novas leis e a adoção de 32 outros planos e inventários - lista centenas de ações das mais diversas áreas, como radiodifusão e saúde. No caso agrário, a fonte de discórdia é a previsão de realização de audiência pública antes de uma decisão judicial sobre liminar para reintegração de posse.
- O presidente Lula tem que intermediar essa polêmica. Houve esse bate-boca interno no governo. Por isso, é preciso um cuidado especial com esse assunto - avaliou o líder do PSB, senador Renato Casagrande (ES).
Integrantes do núcleo do governo foram informados no fim de semana de que os três comandantes da Forças Armadas continuam dispostos a entregar os cargos, caso o presidente não faça uma mudança rápida no programa, conforme promessa feita a Jobim antes do recesso.
Os militares querem, por exemplo, a substituição da expressão "repressão política" por "conflito político" na proposta de criação da Comissão da Verdade. Assim, ela investigaria não apenas militares, mas também militantes da esquerda armada. Para Vannuchi, isso não é negociável, pois colocaria num mesmo plano torturadores e torturados.
Setores militares também mandaram recados ao Palácio de que a saída de Vannuchi pode ajudar na solução do impasse. Ainda assim, Lula quer resolver o problema no seu ritmo.
- O presidente não vai tratar desse tema no afogadilho por pressão de ninguém, nem dos militares - disse o líder do PT, deputado Cândido Vaccarezza (SP).
A posição de Lula de que o tema deva ficar circunscrito ao Judiciário deve-se ao fato de que, ainda que o assunto permaneça no Programa de Direitos Humanos, a possibilidade de punição a torturadores e agentes da ditadura militar pode ser banida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A Corte deverá julgar este ano ação da OAB contestando a Lei de Anistia.
Programa prevê adoção de filhos por casais homossexuais
Para a Ordem, a anistia não pode ser estendida a agentes públicos que praticaram crimes comuns - como homicídio, tortura, abuso de autoridade, estupro e atentado violento ao pudor. Os ministros do STF estão divididos. Dois deles - Marco Aurélio Mello e Gilmar Mendes - já deram declarações públicas contrárias à revisão da lei. Outros quatro revelaram reservadamente que é fundamental punir atos de tortura cometidos na ditadura.
Em nota, o presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, Toni Reis, defendeu o amplo conceito de direitos humanos - o programa prevê a aprovação do projeto que trata da união civil entre homossexuais e da adoção de crianças por esses casais.
"Compreendemos que os direitos sexuais de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais são direitos humanos e por isso direitos fundamentais a serem respeitados em uma sociedade democrática", diz a nota.
Integrante da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, o deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) pretende realizar uma audiência pública sobre o texto, com a presença de Vannuchi.
Colaboraram Carolina Brígido, Evandro Éboli e Patrícia Duarte
Vagner Gomes de Souza*:: Nós, os liberais e a Política do Rio de Janeiro
Não há necessidade de ruptura com os setores liberais da oposição fluminense uma vez que esses necessitam de passar por um processo de modernização. A articulação de um programa com uma linha social-democrata é a linha central da nossa frente. Entendemos que programas como o RIOCIDADE e, principalmente, o FAVELA-BAIRRO são modelos desse pensamento de reformas possíveis do espaço social que devem ser dinamizados nessa conjuntura de carência de grande política.
O núcleo reformista da oposição PSDB, DEM e PPS precisa ocupar um espaço político vazio. O “centro democrático” está sem um ator político que o represente diante das alternativas de polarização entre os grupos políticos do Ontem e do Anteontem. Enfim, o continuísmo estadual não se encaminha para uma auto-reforma de suas concepções o que deve ser nosso foco de questionamento. Somos por um reformismo democrático e devemos mobilizar as forças liberais da política estadual para que fracionem esse processo de mudanças vindas de cima.
Nós e os liberais somos mais do que uma aliança eleitoral para eleger parlamentares, pois há uma perspectiva de vitória de uma política reformadora no estado. A esquerda pró-Lula não gerou nada de determinante no Rio de Janeiro. A esquerda da antiga classe média está delimitada pela falta de dinamismo no mundo sindical. Nós devemos reformar o espaço da esquerda moderna para que os liberais não se isolem ou se deixem cooptar pelo pragmatismo da sobrevivência eleitoral. Portanto, o gesto político de questionamento a visão imediata na política deve partir de nossa atitude ao propor uma aliança mesmo que implique na mudança de planos políticos individuais.
Não há carência de quadros para representar essa política. Há uma carência de colocar essa política em prática. Há uma carência de fazer os gabinetes parlamentares saírem da timidez. Nós somos herdeiros de uma cultura política que enfrentou dificuldades maiores. Sempre soubemos dialogar com os liberais e fazer uma política ampla que trouxe graduais mudanças para os mais pobres. O silêncio na política poderá custar uma geração de jovens. Portanto, a política do Rio de Janeiro deve se tornar uma realidade.
* Militante do PPS em Campo Grande-Rio de Janeiro. Suplente do Conselho de Ética do Diretório Municipal do PPS-RJ. Mestre em Sociologia (UFRuralRJ).
José Augusto Pádua :: Civilização do risco
Brasil precisa abrir mão da tradição elitista de construir espaços sociais sem respeitar a natureza
Ao ver as imagens recentes de encostas desabando, pontes caindo e águas invadindo o interior de tantas casas e vidas, não pude deixar de pensar, até por ranço de historiador, que cenas semelhantes vêm se repetindo desde os primórdios do longo e difícil processo de construção do que hoje chamamos de território brasileiro. Basta lembrar que São Vicente [no litoral paulista], a primeira povoação oficialmente criada na América portuguesa, teve seu núcleo urbano destruído por uma combinação de tempestades e ressacas em 1541. O mar tragou a Casa do Conselho, a fortaleza e a igreja matriz, edificadas sobre solos arenosos.
Antes disso, o porto da ilha de São Vicente já sofria com o assoreamento provocado pelas enxurradas que desciam as encostas parcialmente desmatadas pelas primeiras plantações. Em uma carta de 1560, escrita naquela região, o padre José de Anchieta descreveu uma tempestade que "abalou as casas, arrebatou os telhados e derribou as matas".
Paradoxo da modernidade
É claro que não se pode estabelecer uma sequência simples entre esse passado longínquo e as tragédias que ocorrem diante dos nossos olhos. Mas a história é sempre um jogo de continuidades e descontinuidades.
O contexto atual é muito diferente em termos de tamanho dos assentamentos e de complexidade dos meios tecnológicos. O litoral brasileiro está hoje inserido, mesmo que de forma desigual, no que Patrick Lagadec [diretor de pesquisas na Escola Politécnica de Paris, na França] chamou de "civilização do risco". Um paradoxo da modernidade.
Em certos aspectos, o mundo urbano-industrial fornece mais segurança do que no passado.
Em outros, ele é incomparavelmente mais arriscado.
Sua densidade, suas escalas e sua alta dependência de energia são também as causas da sua fragilidade. Foi significativo o temor de que os desabamentos inviabilizassem o plano de evacuação da usina nuclear de Angra [dos Reis]...
No século 16, no entanto, alguns elementos já estavam aqui presentes: as encostas, as matas e os aguaceiros tropicais.
E também a dificuldade humana em reconhecer que nossa vida é, de fato, um jogo permanente com forças naturais que não criamos, e cujos movimentos não dependem do nosso arbítrio. Hoje, sabemos que a Terra é um planeta antigo, poderoso e muito diversificado.
Sua existência se funda em ciclos biogeoquímicos que movimentam fluxos de matéria e energia muito superiores aos que nossa tecnologia é capaz de produzir.
Medidas urgentes
Em cada região existem realidades específicas com as quais interagir. Daí o tema fundamental da "localização" (que ganha mais importância no mundo da "globalização").
É preciso superar a tradição arrogante de construir espaços sociais sem atenção à realidade natural através da qual existimos. A sustentabilidade consciente requer que as sociedades se territorializem de maneira ecologicamente inteligente.
Algo que, por certo, não é nada fácil, ainda mais no contexto de sociedades abertas e dinâmicas, que conseguem burlar cotidianamente as leis estabelecidas para ordenar o uso dos solos.
A desocupação das áreas de risco, porém, não pode mais ser adiada.
As florestas representam a melhor proteção das encostas, e sem elas o desastre seria incomensurável. É preciso que a sociedade defenda o Código Florestal das forças políticas retrógradas que o atacam no Congresso Nacional.
As áreas de preservação permanente e de reserva legal, determinadas pelo código, são essenciais para estimular um modelo de desenvolvimento cuidadoso e tecnologicamente intensivo (superando a velha tradição de crescimento horizontal e devastador).
Em regiões de forte densidade urbana, especialmente, as áreas de preservação permanente (vegetação que protege os recursos hídricos, a estabilidade geológica etc.) devem ser consideradas um pressuposto da segurança coletiva.
Aqui é preciso levar em conta um problema que também se observa na Amazônia. As florestas parcialmente exploradas, mesmo por um número limitado de atividades, perdem grande parte da sua capacidade sistêmica de estabilizar solos e reter umidade.
As áreas de preservação permanente, portanto, necessitam ser respeitadas na sua totalidade.
As intervenções de engenharia geotécnica, por outro lado, precisam ser democráticas, suplantando a prática elitista de concentrá-las nas áreas habitadas pelos mais ricos.
A existência de "zonas de sacrifício", onde se considere normal que populações pobres convivam com espaços degradados e de grande risco, dotados de baixíssimo investimento público, constitui uma injustiça ambiental inaceitável no contexto de uma ordem verdadeiramente republicana.
A adoção de boas políticas e práticas, diante dos problemas específicos que estão sendo tratados aqui, pode ser vista como um aprendizado coletivo para o futuro. A tendência geral é que nossa vida no planeta se torne cada vez mais difícil nas próximas décadas, com o avanço das mudanças climáticas.
É bom começar a tratar do assunto com a maior seriedade.
Se não aprendermos a enfrentar problemas climáticos com os quais convivemos há séculos, como agiremos diante dos riscos bem maiores que se delineiam no horizonte?
José Augusto Pádua é professor de história na Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor de "Um Sopro de Destruição - Pensamento Político e Crítica Ambiental no Brasil Escravista" (ed. Zahar), entre outros livros.
Alfredo Sirkis :: Pós-Copenhague, como prosseguir?
Depois do fracasso da COP 15, dois fatos emergem de forma clara: 1) É preciso negociar um pós-Kioto num foro mais restrito de países grandes emissores, com responsabilidade históricas ou com vulnerabilidades especiais. O circo ONU não dará conta do recado, poderá a posteriori oficializá-lo e ampliar um acordo entre os atores que de fato contam. 2) O terreno de batalha decisiva ainda é dentro de cada país, região e cidade, remetendo-nos à noção de que mais do que nunca precisamos pensar globalmente e agir localmente.
É preciso fazer convergir ações de redução de emissões de GEE com outras mais imediatamente perceptíveis e aceitas pela opinião pública envolvendo segurança energética, a defesa do meio ambiente local e a criação de empregos. O segundo ponto é a necessidade de buscar um consenso político em relação à questão do clima que transcenda às polarizações partidárias ou ideológicas, inclusive à dicotomia direita-esquerda.
A Suécia conseguiu reduzir em 9% suas emissões entre 1990 e 2005, ultrapassando a meta de Kioto. Na origem dessa performance, no entanto, encontramos uma estratégia de segurança energética que tem origem na crise do petróleo de 1973. Do início dos anos 80 até hoje, conseguiu reduzir em metade seu consumo de petróleo. Em 1973, 80% de seu consumo de energia dependia de petróleo; atualmente, menos de 35%. A Suécia tem como meta prescindir totalmente de petróleo até 2020. Essa mudança de matriz energética foi em boa parte financiada por uma taxa de carbono a mais antiga da Europa.
Na Alemanha, uma considerável convergência política propiciou um crescimento muito significativo das fontes de energia renovável, permitindo que em menos de uma década sua proporção passasse de 6,3% para 14% da oferta de energia elétrica. A Alemanha lidera em energia eólica, com mais de 20 mil cata-ventos e em energia solar com 80% de toda produção fotovoltaica da Europa, embora, em breve, tenda a ser ultrapassada, em números absolutos, pela China.
Um dos casos mais interessantes de sucesso vem de um país em desenvolvimento, a Costa Rica, que tem a meta mais arrojada de todas: tornar-se “carbono neutra” em 2021. A parte do leão do esforço costaricense é dada por programas de reflorestamento e conservação florestal, públicos e privados, com fortes incentivos fiscais.
Fazer convergir metas de redução com projetos energéticos, florestais, agropecuários, industriais, de transportes e urbanísticos que criem benefícios econômicos e socio-ambientais adicionais à redução de emissões é o grande desafio. Fazê-lo de forma politicamente inteligente, mediante “compromissos históricos-climáticos” para além de interesses partidários e da própria polarização esquerda-direita parece ser o caminho para vencê-lo. A decepção com o resultado pífio da COP-15 deve levar-nos a assumir com ainda maior tenacidade a boa e velha máxima ecologista: “Pensar globalmente, agir localmente”.
Alfredo Sirkis é vereador (PV-Rio).
Luiz Carlos Bresser-Pereira :: Crise na Argentina
A decisão da presidente diz respeito à forma de utilizar os recursos do Estado; é uma decisão de política fiscal
Um presidente eleito segundo todas as boas regras da democracia cria um fundo fiscal usando para isso uma parte modesta das reservas do país no banco central. O presidente desse banco, em nome da "independência do BC", opõe-se ao uso das reservas do país depositadas no banco para constituir o fundo porque o governo teria outros recursos fiscais para pagar as dívidas. A presidente do país demite o presidente do banco por decreto.
Indignação geral -indignação da direita e da esquerda: dos que querem que se pague a dívida do Estado e dos que não querem. Esse país é a Argentina. A presidente é Cristina Kirchner, que, como seu marido, embora fiel à democracia, tem um estilo de governo autoritário que foi fundamental para que o país lograsse sair muito bem da grande crise de 2001. Agora, porém, em nome da democracia, da lei, e do princípio da independência do BC, a oposição de direita, que nunca se conformou com o êxito da redução da dívida externa lograda pelos Kirchner, e a oposição de uma esquerda que está sempre em busca do governo perfeito, apoiam o presidente do BC e criam uma grave crise política no país.
Não vou discutir se a demissão por decreto é legal; se o presidente do BC pode continuar no cargo enquanto a Justiça resolve mantê-lo ou não. A presidente da Argentina demitiu Martín Redrado por "falta de cumprimento dos deveres de funcionário público". Redrado recusou-se a cumprir a ordem porque a lei argentina garante que o BC não estará sujeito a ordens, indicações ou instruções do Poder Executivo na formulação e na execução da política monetária. Não vou também discutir o princípio antidemocrático da independência plena dos bancos centrais. Afirmo apenas que uma "razoável" independência -como a que existe nos Estados Unidos ou no Brasil- é algo muito bom; uma independência plena é um absurdo. No caso, porém, ainda que a decisão da presidente tenha elementos financeiros e esses se confundam com os problemas fiscais, sua decisão não é uma decisão de política monetária, e sim de política fiscal.
Diz respeito à forma de utilizar os recursos do Estado. Quando o presidente do BC e os opositores do governo argumentam contra a utilização das reservas "porque o governo dispõe de recursos fiscais correntes para pagar a dívida, e porque a utilização das reservas abriria espaço para maiores gastos fiscais sem aumentar o deficit público", o argumento é estritamente fiscal. Nada tem a ver com a autonomia da política monetária que justificaria a independência dos bancos centrais. Para apoiar o presidente do BC, portanto, teremos de atribuir a essa instituição não apenas autonomia monetária, mas o direito de interferir diretamente na política fiscal do governo. É isso que queremos? A ditadura dos "técnicos"? A oposição já está, inclusive, falando em impeachment de um governo que, desde a traição do vice-presidente, Julio Cobos, no caso das "retenciones" variáveis (necessárias para neutralizar a doença holandesa), ficou enfraquecido. Os argentinos ainda não descobriram o caminho do desenvolvimento econômico; não perceberam que a neutralização da doença holandesa originada na agropecuária é a condição fundamental de seu desenvolvimento. Mas a maioria dos argentinos sabe que a democracia é um valor universal. Por isso, apesar da violência da oposição, a democracia não está ameaçada na Argentina; é o desenvolvimento econômico que continua em questão.
Luiz Carlos Bresser-Pereira , 75, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Globalização e Competição".
Chávez: Exército contra reajustes
DEU EM O GLOBO
Presidente venezuelano promete plano para evitar que "burguesia" eleve preços após desvalorização
Do El Nacional/GDA*
Opresidente da Venezuela, Hugo Chávez, anunciou ontem que criará um plano contra a especulação, para evitar que a "burguesia" reajuste os preços. Ele afirmou que isso se deve às afirmações de vários especialistas de que a desvalorização da moeda local em até 50%, anunciada na sexta-feira, levará à alta da inflação. Chávez deu carta branca ao Exército para intervir em lojas que reajustarem seus preços.
- Alguns burgueses, oligarcas, estão dizendo que, por causa das medidas anunciadas na sexta-feira, eles têm de aumentar todos os preços. De maneira alguma vamos aceitar isso! - afirmou Chávez em seu programa semanal de rádio e televisão, "Alô presidente". - Não há qualquer razão para remarcar os preços porque os produtos à venda hoje foram importados com o valor antigo do dólar. Quero que a Guarda Nacional vá às ruas com o povo para lutar contra a especulação.
Na sexta-feira, Chávez anunciou a desvalorização e a criação de duas taxas de câmbio. Para artigos de saúde e alimentos, o dólar passará de 2,15 para 2,60 bolívares (desvalorização de 17,3% da moeda local); para itens considerados supérfluos, o dólar irá a 4,30 bolívares (diferença de 50%). A moeda americana estava em 2,15 bolívares desde 2005.
O objetivo, segundo o governo, é reduzir as importações e estimular a produção nacional. Chávez também anunciou ontem a criação de um fundo de US$1 bilhão para promover a substituição de importações.
Economista da PUC acha câmbio duplo ineficaz
Chávez afirmou que a medida de "ajuste cambial" foi bem estudada, mas que os preços "continuam regidos pelo capitalismo selvagem, e o governo e o povo têm de acabar com isso". Criticando os especuladores e a mais-valia, o presidente venezuelano disse que a Guarda Nacional terá carta branca para intervir nas lojas que elevem seus preços.
- Que se preparem os que quiserem aproveitar os anúncios (sobre a desvalorização) para encher as pessoas de medo! Como vejo que a burguesia anda solta, anunciando o desastre, eu digo ao povo que o governo lutará com maior força, e vamos transformar a Venezuela em uma potência.
Outro objetivo das medidas é fortalecer a estatal Petróleos de Venezuela S.A. (PDVSA). Chávez ressaltou ontem que, para cada dólar que a PDVSA entregue ao Banco Central, receberá 4,30 bolívares, já que produtos petrolíferos ficaram na faixa de câmbio mais elevada.
Mas analistas locais esperam uma forte alta na inflação, que em 2009 atingiu 25,1%, pelos dados oficiais. O presidente da Academia Nacional de Ciências Econômicas da Venezuela, Pedro Palma, disse à agência de notícias AP que o governo teve de reconhecer que a grande disparidade entre o câmbio oficial e o paralelo - que chegava a 7 bolívares - já não era viável.
- A inflação vai disparar, mas é necessário corrigir um desequilíbrio acumulado tremendo.
Na avaliação do presidente da Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais e da Globalização Econômica (Sobeet), Luiz Afonso Lima, a desvalorização do bolívar é duplamente equivocada. Do ponto de vista político, é um retrocesso; e economicamente ela é, no mínimo, "pouco eficaz", tendo em vista que os Estados Unidos estão passando por um período de ajuste interno, o que derruba a cotação do dólar internacionalmente.
Além de ter "cheiro de naftalina", como avaliou o economista Luiz Roberto Cunha, da PUC-Rio, a decisão de Chávez já se comprovou mundialmente equivocada. O Brasil mesmo, lembra ele, adotou duas taxas de câmbio nos anos 1950, e a medida foi um "verdadeiro fracasso". Se o objetivo era distinguir produtos, diferenciando os básicos dos supérfluos, a melhor opção, disse Cunha, seria adotar tarifas diferenciadas. Não bastasse isso, continua, a desvalorização na Venezuela tende a pressionar ainda mais os preços. Especialista em inflação, Cunha não acredita que as medidas ajudem a estimular a produção nacional:
- Não se estimula a produção nacional por decreto.
Não se espera muito impacto nas economias latino-americanas, à exceção da Colômbia. A Venezuela já tinha reduzido suas compras do vizinho, em retaliação ao acordo que permitiu a instalação de bases americanas em território colombiano. Isso já reduziria o crescimento da Colômbia em cerca de um ponto percentual, segundo economistas. Com a desvalorização, eles esperam uma queda ainda maior no comércio bilateral.
- Não há luz no horizonte em termos de comércio com a Venezuela. Nossas exportações já haviam sido prejudicadas. Agora, elas ficarão mais caras - disse Tulio Zuluaga, diretor da Asopartes, grupo que reúne os exportadores de autopeças da Colômbia.
As medidas também devem encarecer as exportações brasileiras para a Venezuela, que foram de US$2,74 bilhões em 2009.
Chávez, com suas promessas de "socialismo bolivariano", já nacionalizou várias empresas estrangeiras no país, especialmente no setor de energia. Ontem, ele atacou o setor cultural estrangeiro:
- Os filmes do capitalismo nos metem na cabeça o consumismo. Fazem telenovelas para
envenenar nossos filhos, para incitá-los ao consumo de drogas. Estive há pouco em Cuba e lá não passam telenovelas capitalistas, mas sim de conteúdo social.
(*) O "El Nacional" faz parte do Grupo Diarios América (GDA)
Colaborou: Liana Melo, com agências internacionais
ENTREVISTA : Gestão Lula é continuidade da era FHC, diz economista
O economista Claudio Salm diz que a melhoria dos indicadores sociais no Brasil não pode ser creditada a um único governo. Segundo ele, Lula é continuação de FHC, com o que há de bom e de ruim. "Essa conversa de herança maldita é bobagem."
Para o professor da UFRJ, o motor não foi o Bolsa Família, mas ganhos do mínimo e fim do ciclo de crescimento sem emprego.
Essa conversa de herança maldita é pura bobagem
Para economista, Lula é continuidade de FHC, com o que tem de bom e de ruim
O ECONOMISTA Claudio Salm diz que a evolução dos indicadores sociais no Brasil não é conquista de um único partido ou de um único presidente. Segundo ele, o país está melhor por uma sucessão de fatores que não obedece ao calendário ou à lógica eleitoral. Entre eles, a consolidação de uma mesma política social, a queda na taxa de natalidade e o fim de um duro ciclo estrutural de crescimento sem emprego, que durou até 2000.
Marcio Aith
Com base em dados do IBGE desde 1996, Salm constata uma progressão contínua na qualidade de vida dos mais pobres. Mas, por meio de outros indicadores, diz que serviços universais, como educação e saúde, pioraram. Aos 67 anos, Salm graduou-se pela Universidade Federal do Rio, fez pós-graduação no Chile e doutorado na Unicamp. Sua tese, Escola e Trabalho, foi publicada pela editora Brasiliense em 1982.
FOLHA - Quais são os indícios de que, entre os governos FHC e Lula, houve continuidade, e não ruptura, nas políticas sociais?
CLAUDIO SALM - Do ponto de vista da política econômica já sabemos que não houve qualquer ruptura, como o próprio Lula havia anunciado que não haveria, em 2002, na famosa Carta aos Brasileiros. Eu diria até que, em alguns aspectos, como o da política monetária, Lula é mais conservador que FHC. Conservador no sentido do excessivo cuidado em relação à banca. Quanto à política social, é só conferir os números. O período Lula é uma continuidade do período FHC, com tudo o que tem de bom e de ruim. Houve uma progressão contínua na qualidade de vida dos 25% de brasileiros mais pobres. Desde 1996, vários indicadores melhoram mais ou menos no mesmo ritmo: acesso às redes de água e esgoto, coleta direta de lixo, iluminação elétrica, posse de telefone, máquina de lavar. Essa conversa de herança maldita é pura bobagem.
FOLHA - Mas, vistos assim, de forma panorâmica, os indicadores sociais sempre melhoram. É possível dizer que FHC também não rompeu com Itamar, que não rompeu com Collor e assim vai.
SALM - Não é bem assim. Há inflexões importantes, fatores demográficos, ciclos, crises, políticas acertadas, políticas equivocadas. Uma reforma que tornasse nossa arrecadação tributária mais justa poderia ser uma inflexão de grande alcance social.
FOLHA - Cite indicadores que pioraram ao longo da história.
SALM - São muitos. A década de 80 foi desastrosa para o mercado de trabalho, trazendo graves consequências para o nível e a qualidade do emprego: informalidade e a interrupção de uma longa trajetória de crescimento do trabalho assalariado com carteira assinada. Outro exemplo é o salário mínimo. Ele ainda está abaixo do que era sob a Presidência JK [1956-61], embora tenha aumentado 50% no governo FHC e outro tanto no governo Lula. Aliás, a recuperação do salário mínimo começou para valer a partir de 1995, quando FHC deu um aumento de cerca de 40% com a inflação já debelada.
FOLHA - Qual foi o papel da demografia no processo de melhoria dos indicadores sociais?
SALM - No Brasil, uma herança bendita foi a queda na fecundidade a partir de meados dos anos 60. A transição demográfica no Brasil foi das mais intensas. Como a queda na natalidade foi muito mais acentuada entre os mais pobres do que entre os mais ricos, o aumento da renda foi maior justamente entre os pobres. Além disso, a crescente proporção de idosos tem sido mais que compensada pelo menor número de filhos. Como mais de 80% dos idosos recebem benefícios previdenciários, eles não são dependentes como as crianças, mas, com o perdão do economicismo rude, um ativo valioso.
FOLHA - Voltando ao Lula, como se pode afirmar que não houve ruptura se o gasto social aumentou em termos absolutos e relativos?
SALM - Eu diria que continuou aumentando. A expansão do gasto público social foi uma medida acertada. Mas a redução recente da desigualdade se deve mais a outros fatores, como a volta do emprego formal, o aumento do salário mínimo e o fim de um ciclo.
FOLHA - Que ciclo é esse?
SALM - A abertura abrupta no início da década de 90 levou a fortes e rápidas transformações estruturais, especialmente na indústria. Surgiu pela primeira vez entre nós, como um grave problema, o desemprego aberto. Foi nessa época que ganhou força a ideia do crescimento sem emprego, justamente por causa da rápida modernização da indústria. As grandes transformações tecnológicas, a matança de pequenas empresas, a racionalização, tudo isso durou até os anos 90. Findo esse processo, as coisas se arrumaram e o crescimento voltou a ser altamente promotor do emprego. É impressionante a correlação entre crescimento e geração de emprego dos anos 2000 para cá. O crescimento recente voltou a gerar empregos para os segmentos pouco qualificados, o que foi mais importante do que o Bolsa Família para explicar a melhora da distribuição de renda.
FOLHA - Não se deve a Lula criação de empregos formais? Afinal, FHC defendia a superação do getulismo.
SALM - Não vejo nada de errado nesse aspecto do getulismo. Errado é querer desregulamentar o mercado de trabalho num país como o nosso, com enorme excedente de mão de obra de baixa qualificação. O governo do PT ensaiou, mas acabou não comprando a ideia da urgência da reforma trabalhista. Deixou isso de lado. O crescimento é a grande variável na geração de emprego e não a flexibilização trabalhista. Quem pensava assim, acertou.
FOLHA - 32 milhões de brasileiros ingressaram no conjunto das classes A, B e C sob Lula. Isso não é ruptura?
SALM - No mesmo período houve diminuição da pobreza e melhoria da distribuição de renda em quase toda a América Latina. É verdade que, no Brasil, foi ainda mais rápido. Isto já vinha do governo FHC, quando o IDH aumentou e a população pobre caiu 10%. O processo aqui foi favorecido pelo maior crescimento. Durante FHC o PIB anual cresceu em média 2,3%; durante Lula, 3,9%. Isso não é ruptura, mas ciclo econômico, como já tivemos tantos. Não podemos esquecer que a estabilidade do Real também reduziu a pobreza e o desemprego.
FOLHA - E o papel do Bolsa Família?
SALM - Programas sociais de transferência de renda são, sim, fundamentais para reduzir a miséria absoluta. Ainda mais quando cumprem com condicionalidades, como a exigência de frequência à escola. Ninguém seria louco de eliminá-los. O Bolsa Família não deixou de ser uma continuidade: juntou o Bolsa Escola e o Bolsa Alimentação, que vinham do governo anterior. O Bolsa Família também pode funcionar, indiretamente, para elevar os rendimentos do trabalho. Quem recebe o benefício tem melhores condições para resistir a uma diária aviltante. Mas não é tudo o que parece quanto à distribuição de renda. Nesse sentido, mais importante foram o crescimento do emprego e a recuperação do salário mínimo. O gasto público social aumentou? Ótimo. Mas, simultaneamente a isso, as políticas sociais universais, como educação e saúde, ficaram para trás.
FOLHA - Em dez anos, o número de alunos em universidades saltou de 2 milhões para 4 milhões. Esse aumento não o sensibiliza?
SALM - Para falar a verdade, pouco. Formou-se no Brasil um ciclo nefasto, que começa na falta de atendimento de creche e de pré-escola e acaba em gigantescas universidades privadas que estão mais para escolões do que para universidades. A coisa funciona assim: como o percentual de crianças com atendimento adequado na educação infantil é mínimo, elas já chegam ao ensino fundamental com deficiências. Aí avançam rapidamente, com o artifício da progressão continuada ou do ciclo básico, mecanismos que escamoteiam a repetência. Quando sai do ensino fundamental, não sabe nem falar, nem articular direito. Não avançamos na implantação do horário integral. Tampouco avançamos na melhoria do ensino médio. No governo FHC os alunos no ensino público federal aumentaram em torno de 50%. Sob Lula, o ritmo caiu pela metade.
FOLHA - É melhor ter ou não ter o que o senhor chama de escolões?
SALM - É melhor tê-los. Mas melhor ainda seria dar qualidade ao ensino fundamental e assegurar a passagem dos egressos ao ensino médio. Se isso ocorresse, a maioria das vagas no mercado de trabalho hoje ocupadas por quem tem diploma universitário poderia ser preenchida por quem tem o nível médio. Estamos transferindo para as universidades, com tremendo gasto de recursos, o ensino que poderia ser oferecido no nível médio.
FOLHA - Quais são os indícios de que a saúde piorou?
SALM - A população nunca reclamou tanto, o que é um indício importante. Não há muitos indicadores de acompanhamento confiáveis, mas alguma coisa existe. A relação entre internações e habitantes, no SUS, vem caindo desde o governo Itamar. Parece uma coisa boa. Só que essa relação aumenta nos hospitais privados. A relação entre exames e consultas não se alterou no sistema público. Já no atendimento privado, aumentou. No Rio, os médicos dizem que as mortes evitáveis nos hospitais vêm aumentando, inclusive nas UPAs (Unidades de Pronto Atendimento, da prefeitura atual), por causa da precariedade das conexões com os hospitais do SUS. Estamos claramente diante de um subfinanciamento do SUS, como diagnostica a médica Lígia Bahia. Só não piorou ainda mais por conta da vinculação dos recursos para a Saúde, com a Emenda 29, iniciativa do Serra. O aumento e a diversificação da oferta dos remédios genéricos estagnou com o Lula, quando a Anvisa foi loteada.
FOLHA - O senhor é filiado a algum partido político? É tucano?
SALM - Nem tucano nem filiado a partido político. Votei no José Serra para presidente em 2002 e colaborei na campanha dele, mas não fiquei triste com a vitória do Lula.
FOLHA - Como o senhor avalia as duas experiências de governo?
SALM - As condições econômicas, especialmente no front externo até a eclosão da crise mundial, foram muito mais favoráveis a Lula que a FHC. O importante para mim é que a onda neoliberal não conseguiu acabar com os avanços social-democratas da Constituição de 88. O principal mérito de ambos, até aqui, é o respeito pela democracia. Na economia, vejo, como os principais problemas dos dois, a facilidade com que permitiram, ou promoveram, a apreciação cambial, os juros mais altos do mundo e o descaso, nos dois períodos, com o investimento público que está num nível baixíssimo, um dos mais baixos do mundo. Nessas áreas a continuidade foi incrível.