domingo, 28 de junho de 2009

O PENSAMENTO DO DIA - Jamin Jahanbegloo

“Com a recusa do establishment político do Irã de reconvocar eleições, mais repressão e violência parecem inevitáveis. No entanto, o que estamos testemunhando, desde as primeiras demonstrações contra os resultados das eleições presidenciais, pode muito bem ser considerado como um grande movimento não-violento ao estilo de Gandhi. Já existe uma evidente similaridade entre o movimento de desobediência civil no Irã de hoje e os bem-sucedidos movimentos liderados por Gandhi na Índia, em 1920-1940, e Martin Luther King nos Estados Unidos, em 1950-1960.”


(Ramin Jahanbegloo, filósofo canadense-iraniano, ensina ciência política na Universidade de Toronto).

Fonte: Dissent.

A voz rouca das ruas

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO

A crise no Senado pode caminhar para uma solução com a saída do senador José Sarney da presidência, mas ele tem a seu favor, além do peso indiscutível junto a seus pares, uma intrincada armação política que leva em conta problemas pessoais e até mesmo a campanha eleitoral que começa no ano que vem. O vice de Sarney é o senador tucano Marconi Perillo, e a última coisa que o Palácio do Planalto quer é que o PSDB assuma o Senado no ano eleitoral. Além do mais, há um problema específico com Perillo, de quem o presidente Lula definitivamente não gosta.

Quando governador de Goiás, na época do mensalão, Marconi Perillo disse que havia alertado cerca de um ano antes o presidente Lula de que estava havendo “mesada” a deputados no seu governo. A revelação trouxe problemas para Lula, que dizia que nada sabia.

Para complicar mais a situação política, Marconi Perillo está em oposição a Henrique Meirelles, que pretende concorrer ao governo do estado ou ao Senado.

Há problemas mais delicados ainda, envolvendo a saúde do vice-presidente José Alencar. No ano que vem, o presidente da Câmara, Michel Temer, será candidato a algum posto — ou à reeleição, ou a vice em alguma chapa, seja do governo, seja da oposição — e não poderá assumir a Presidência caso o vice Alencar não esteja em condições.

O substituto imediato é o presidente do Senado, e Lula quer contar com Sarney nesse papel, para que possa viajar ao exterior sem preocupações com a campanha eleitoral.

Mais ainda, Sarney é o principal apoio ao projeto de Lula dentro do PMDB, e, enfraquecido, já estaria perdendo poder político dentro do partido.

O receio é que essa crise enfraqueça tanto Sarney que o PMDB se volte para o apoio ao candidato do PSDB, o que seria desastroso para a campanha de Dilma Rousseff, que perderia, sobretudo, o tempo de televisão.

Nessa disputa paralela, a reunião da próxima terçafeira da direção nacional do DEM pode enfraquecer ainda mais Sarney.

Embora seja improvável que o partido assuma oficialmente a tese do “fora Sarney”, que já foi encampada pelo senador Demóstenes Torres, é possível que a nota a ser divulgada já não apresente uma defesa tão irrestrita a Sarney, exigindo apurações sobre as negociações que rolam no Senado, inclusive o crédito consignado em que seu neto atua.

O primeiro-secretário Heráclito Fortes pretende, a partir de amanhã, começar a desmontar o esquema de Agaciel Maia, e os gestores dos contratos de compras e terceirizações do Senado serão trocados. Ele tem dito que a crise administrativa será resolvida, mas ele nada pode fazer quanto à crise política.

Outro elemento desestabilizador desse processo é a ação do PSOL, que, embora com apenas um senador, José Nery, do Pará, já ameaçou pedir uma CPI sobre o Senado e, sentindo que não teria receptividade no momento dentro da Casa, resolveu partir para a mobilização nas ruas.

A mobilização começou na sexta-feira no Rio, na Praça Mário Lago (antigo Buraco do Lume), no Centro do Rio, quando foi lançado o abaixo-assinado, em Porto Alegre, em São Luís, e amanhã o partido levará o movimento a São Paulo.

A ideia é “jogar a crise na rua”, na esperança de que, nas palavras do deputado federal Chico Alencar, “a massa popular se interesse, se agite, reverbere”.

Sabedores de que nem a proposta de CPI para a máfia do Senado nem a representação contra Sarney têm chances de prosperar, diz Chico Alencar, “combinamos a ação institucional coerente com a presença nas ruas: a velha ‘agitação e propaganda’ de causas que interessem à sociedade brasileira”.

Na análise do PSOL, “nossas elites são experimentadas em acordos pelo alto, e só aceitam perder, no limite, alguns anéis para manter os dedos. A nós, por concepção política, cabe horizontalizar a cidadania, fazer política no espaço aberto das ruas”.

Ele lamenta que partidos de gênese de esquerd a , com o PT e PC d o B , “têm progressivamente abandonado esta ação militante, burocratizando-se nos confortáveis nichos de poder que a Era Lula oferece com fartura”.

O PSOL, para sobreviver, acha que não tem outro caminho se não o da mobilização, e está acrescentando um dado novo à crise do Senado: ela está sendo levada organizadamente às ruas, com o mote “CPI da Máfia do Senado e Sarney afastado”.

Chico Alencar considera “impressionante” a adesão popular, embora admita que é sublinhada com o travo da descrença, com algumas pessoas dizendo: “Vou assinar, mas essa política não tem mais jeito...

Tira um , vem outro da mesma laia!”.

O PSOL acha que, “com argumentação política, o povo se põe em movimento, a indignação se organiza.

E ninguém aceita a postura do Lula, mesmo aqueles que gostam do cara”, analisa Chico Alencar.

A questão é saber até que ponto a população está realmente mobilizada com essa crise no Senado que parece não ter fim.

Há quem considere que a mobilização política atual é feita muito mais pela internet e pelos novos meios de comunicação, como o twitter e os sites de relacionamento, do que em manifestações de rua.

De qualquer maneira, seja de que jeito for, os senadores que este fim de semana estão em seus redutos eleitorais poderão sentir de perto a reação. Na crise anterior, que culminou com a saída do senador Renan Calheiros da presidência do Senado, ela sempre recrudescia depois do fim de semana.

E os políticos sabem ouvir “ a voz rouca das ruas”, como o ex-deputado Ulysses Guimarães definia a opinião pública.

Jogo dos sete erros

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO


Com mais 50 anos de estrada, quase 80 de vida e dono da mística do último sobrevivente de uma linhagem de políticos astutos, é espantoso que o senador José Sarney não tenha medido os riscos de uma terceira eleição à presidência do Senado e confiado que o cargo lhe proporcionaria o desfecho ideal à sua biografia.

Não há episódio, conhecido pelo menos, em que José Sarney tenha cometido tantos equívocos em tão pouco tempo. São inúmeros, mas, ao molde do antigo passatempo, fiquemos com sete deles.

1. O mais óbvio abre a lista: o erro de não saber a hora de parar. Incapacidade já demonstrada desde a mudança de domicílio eleitoral do Maranhão para o Amapá, onde quase perde a última eleição de senador para uma vereadora de Macapá, Cristina Almeida.

2. Menosprezo ao equilíbrio de forças. Se o PMDB já havia se acertado com o PT para ficar com a presidência da Câmara, era uma evidente imprudência ceder à tentação do acúmulo total de poder no Congresso.

3. Excesso de confiança no argumento de aliados, mais interessados em fazer de Sarney um trampolim para recuperação de prestígio, de que sua figura seria suficiente para abafar outras ambições e conquistar a unanimidade. Renan Calheiros conseguiu fazer de Sarney o sujeito explícito de seus planos de retorno como o operador da política por trás da majestade.

4. Desdém em relação à capacidade de combate do adversário. Em outras ocasiões, Sarney recuou quando percebeu que teria de enfrentar o contraditório. Desta vez, foi em frente e começou a pagar o preço no dia seguinte à eleição.

5. Entregou-se por completo a uma regra cuja validade já se expirou e hoje é apenas uma ilusão. A de que o poder produz mais poder em seu nome exclusivo pode ser exercido porque ao poderoso tudo é permitido. Aqui procurava conseguir, da cadeira da presidência do Senado, administrar dificuldades familiares no campo da política, da Justiça e da polícia.

6. Avaliou mal o jogo do Palácio do Planalto, não levou em conta as arestas partidárias internas, acreditou que o PSDB poderia crer que se o apoiasse levaria em troca o apoio do PMDB na presidencial de 2010.

7. Mas, se houve um erro macro, o chamado erro crasso, foi José Sarney não ter atinado para o quanto sua figura simbolizava a política do passado. Assumiu pela terceira vez um mesmo cargo já com seus créditos de confiança gastos, jogando com peças obsoletas, desprovido da noção de que assumia um Senado questionado pela opinião pública e que sua única chance de êxito era ouvir a demanda vinda de fora.

Fez o oposto e, quando se deu conta de que o atalho não levava ao paraíso, não lhe restava saída. Nem a ruptura, ainda que a personalidade lhe permitisse - o que não é o caso -, pois os compromissos que firmara estavam todos referidos num passado que privilegiava a esperteza em detrimento da transparência.

Difícil solução

Ao contrário de outras e recentes crises envolvendo presidentes do Senado - Jader Barbalho, Antonio Carlos Magalhães e Renan Calheiros -, essa agora não se resolve com a licença ou mesmo a renúncia de José Sarney, embora seja esse o caminho aparentemente inevitável.

A saída não é tão simples. A crise de fato não é do senador Sarney, não obstante ele simbolize o sistema que precisa de mudanças e, por isso, não tem condições de conduzi-las.

Ocorre que as forças dominantes no Senado rezam pela mesma cartilha. Não há uma maioria disposta a patrocinar a ruptura com o velho e liderar a transição para o novo. Então, se Sarney pedir licença ou renunciar à presidência prevalecendo a conjuntura atual, o máximo que se pode esperar é uma troca de seis por meia dúzia.

A licença resultaria na posse do primeiro vice, o senador Marconi Perillo, do PSDB. Ainda que houvesse a remota hipótese de o Palácio do Planalto (de onde saem as regras) concordar em entregar o Senado à oposição, só o faria mediante um acordo conservador de procedimentos.

Quando se examina o teor das conversas sobre a possibilidade da renúncia e a convocação de nova eleição, o que aparece? O nome do ministro das Minas e Energia, Edison Lobão, cujas credenciais na política em nada o diferencia de Sarney.

Ora, se é para Sarney sair e assumir Lobão ou senador equivalente, não se terá mudança alguma. Haverá aquela sensação já familiar de alívio temporário e, em seguida, a volta do mesmo problema.

Alguém em sã consciência consegue imaginar a possibilidade de um Jarbas Vasconcelos vir a assumir a presidência do Senado? Por ora, nem pensar. Jarbas é tido como intolerante, é dissidente no partido detentor da prerrogativa da indicação, repudiado pelo governo, inadequado para a posição.

Se não mudar o pensamento - o que implica improvável ruptura -, a troca do personagem será o tipo do lenitivo fadado a deflagrar uma nova, e mais grave, crise.

Dolorosa decisão

Eliane Cantanhêde
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


BRASÍLIA - José Sarney perdeu a guerra da opinião pública e enfrenta agora outra guerra, em que ele é estrategista há meio século: a política. Trata-se de vida ou morte para este quase octogenário, último grande coronel da política brasileira com a saída de cena de ACM.

Sarney sabe guerrear e tem tropa e armas para evitar a renúncia à presidência. A mais poderosa delas é o apoio de Lula, a quem ele gritou por socorro na última quinta, quando soltou nota dizendo-se vítima de um complô político por (imagine!) ser aliado do governo e de Lula.

Parece piada, ou um contorcionismo esquizofrênico, já que Sarney é apoiado pelo oposicionista DEM e se sente apunhalado pelos petistas Tião Viana e Aloizio Mercadante. Mas é uma clara tentativa de usar Lula para aglutinar PT, esquerdas e aliados em geral no seu exército da salvação.

A segunda grande arma de Sarney é a falta de opções para substituí-lo. Ele próprio foi eleito por eliminação. Não havia outro. E não há. Uma regra na política é nunca deixar o vácuo para o adversário, para o azar, para surpresas. Até Collor só caiu depois de Itamar estar maduro no meio político, na mídia, no empresariado e até na área militar. Primeiro, constrói-se o sucessor. Depois, abre-se a vaga.

A situação, pois, está no seguinte ponto: Sarney não tem condições de ficar, mas quer e tem de ficar, enquanto Lula se move para garantir-lhe sustentação e a dupla PMDB e DEM tenta salvar sua hegemonia de muitos anos no Senado, rezando por uma trégua do "inimigo" invisível que devassa as velhas práticas patrimonialistas dos Sarney. A munição acabou? Improvável.

Se, ao contrário de ACM, Jader e Renan, Sarney resistir, deve saber que mudar o final do filme é mudar também o papel do protagonista. O risco é deixar de ser presidente de fato e se contentar com a constrangedora posição de fantasma rondando a própria cadeira. Com todo o respeito, ele jamais será o mesmo.

Uma visão latino-americana da crise

José Serra
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Conhecida nos anos 80 como o continente das crises, hoje a América Latina está numa posição ímpar, que lembra em alguns aspectos sua situação durante a Grande Depressão. Da mesma forma que 80 anos atrás, e em contraste com episódios mais recentes, nossa região se encontra novamente na condição de vítima, não de causadora da crise econômica. Outra semelhança com os anos 30 é que a maioria das economias latino-americanas vai se recuperar mais rapidamente do que as economias centrais.

Naqueles anos, quase todos os países da América Latina, exceto Chile e Cuba, superaram seu pico real do PIB pré-depressão bem antes dos Estados Unidos: a Colômbia em 1932, o Brasil em 1933, o México em 1934 e a Argentina em 1935.

A explicação básica para o impacto relativamente menor dessa crise na América Latina e na Ásia pode ser encontrada num fato quase ignorado, mas essencial: o canal de contágio. O colapso financeiro das economias centrais se espalhou para os chamados países emergentes não por intermédio de suas causas primárias, mas dos seus efeitos. As mesmas causas - bolhas imobiliárias, pacotes securitizados de hipotecas subprime, desregulamentação financeira excessiva e níveis perigosos de alavancagem - produziram os mesmos resultados catastróficos nos Estados Unidos e onde quer que estivessem presentes, como no Reino Unido, na Irlanda, na Espanha e na Islândia.

Em vez disso, na América Latina em geral, assim como na Ásia, o contágio veio dos subprodutos da crise, principalmente a retração brusca das finanças e do comércio. Não houve colapso de instituições financeiras importantes. As únicas exceções mais sérias foram as perdas em derivativos no México - US$ 4 bilhões no último trimestre de 2008 - e no Brasil - estimadas em US$ 25 bilhões.

Houve, sim, uma acentuada redução na oferta de crédito às atividades produtivas, em decorrência da perda de linhas de crédito estrangeiras. Mas alguns dos aspectos dolorosos da retração econômica poderiam ter sido evitados, não fosse por erros de avaliação sobre a natureza da crise. Tais erros obstaculizaram políticas contracíclicas enérgicas e rápidas em economias que não estavam preparadas para a previsível piora das condições externas.

Uma das lições do gerenciamento da crise na região foi lançar uma nova luz sobre uma questão antiga: tão indispensáveis quanto a correção das respostas políticas são sua clareza, intensidade e velocidade. O caso exemplar de políticas com as qualidades desejáveis foi o Chile, onde, a certa altura, o Banco Central cortou resolutamente a taxa de juro em impressionantes 250 pontos básicos. De um só golpe, e logo no início da crise. Agora mesmo, na terceira semana de junho, acabou de cortar de novo 50 pontos, reduzindo a taxa básica de juro a 0,75%.

Além disso, graças à lucidez e à prudência na criação de um fundo contracíclico, Chile e Peru puderam socorrer suas economias declinantes com um robusto pacote de estímulo fiscal. Cabe notar que tanto o Chile como o Peru eram mais vulneráveis à crise internacional do que o Brasil, pois seus coeficientes de exportação em relação ao PIB são três a quatro vezes superiores ao coeficiente brasileiro, o que eleva o multiplicador negativo da retração do comércio mundial sobre a economia doméstica.

O momento em que as autoridades nacionais deveriam ter enviado um sinal firme e inequívoco para o mercado foi na altura do pânico criado pela falência do Lehman Brothers, em 15 de setembro de 2008. Nesse momento crucial, não havia mais qualquer justificativa para mirar a inflação, em vez da recessão, como o perigo mais claro e presente para a economia. Onde quer que as autoridades não conseguiram responder de forma adequada, a consequência foi a demora da recuperação econômica.

O desempenho na gestão da crise tem sido confuso em alguns países. No Brasil, os primeiros sinais de recuperação puxada pelo consumo começam a aparecer. A recuperação é em grande parte resultado da expansão nos gastos correntes do governo federal com pessoal e de uma variedade de programas de assistência social, bem como das reduções de impostos sobre veículos automotores e eletrodomésticos. Isso provavelmente vai ajudar a estimular o consumo por algum tempo. No entanto, a sustentabilidade da atual taxa de crescimento das despesas, sem aumento adicional dos impostos, dependerá de uma vigorosa retomada do investimento produtivo e da expansão industrial.

Coisas positivas poderiam ser ditas sobre as medidas de política econômica pós-Lehman Brothers no Brasil: redução da exigência de depósito compulsório dos bancos junto ao Banco Central (logo no início), garantias para depósitos bancários a prazo (embora um pouco tardias), aumento dos empréstimos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que tem organizado com agilidade e substância operações para reestruturar empresas afetadas pela crise.

Mesmo assim, não há como negar a evidência: no momento crítico, em setembro-outubro de 2008, a política monetária não deu aos empresários e aos mercados estímulo suficientemente forte e oportuno para evitar uma queda acentuada da produção industrial e do investimento. A taxa real de juros do Brasil, a mais alta do mundo, só começou a ser reduzida, e muito ligeiramente, três meses depois do 15 de setembro. A taxa real brasileira continua a ser a mais alta, levando a moeda nacional a uma excessiva e desnecessária revalorização desde janeiro deste ano, que pode retirar o Brasil do grupo de países que sairão com mais sucesso desta grande crise. Além disso, o investimento público em infraestrutura não atingiu massa crítica suficiente para compensar o investimento privado que despencou.

Por trás de algumas características comuns, a América Latina apresenta uma grande diversidade de condições e de intensidade do impacto da crise, que nos alerta contra qualquer tentativa de simplificar a realidade. Algumas economias menores, principalmente na América Central e no Caribe, são dependentes do turismo ou de remessas de imigrantes e foram particularmente atingidas pela recessão. Outras, como as economias e países dolarizados que concentram uma alta proporção do seu comércio no espaço econômico da América do Norte, acompanham de perto as vicissitudes dos Estados Unidos e terão de esperar mudanças afortunadas na economia americana. Já os países que são principalmente exportadores de produtos derivados de recursos naturais têm tido a sorte de encontrar na China uma fonte sustentada de demanda.

Estou falando da evolução dos acontecimentos no Brasil e na América do Sul, em vez dos problemas financeiros dos Estados Unidos e do mundo, porque quero salientar um fato central a respeito da gestão da crise. Independentemente de atribuir culpas pelas raízes primárias da crise - banqueiros, reguladores e policy makers americanos -, a responsabilidade última por aceitar passivamente ou neutralizar as repercussões dessa crise em outros países depende da adequação das respostas políticas nacionais. A qualidade das políticas nacionais faz a diferença.

Isso me remete ao que devemos esperar das estratégias do governo dos Estados Unidos. A primeira conclusão a tirar da crise é a necessidade de preservar o espaço político nacional. Ou seja, os países devem ser livres para adotar políticas de desenvolvimento de acordo com suas próprias especificidades e interesses.

No passado recente, o setor financeiro dos países desenvolvidos pressionou reiteradamente seus governos a impor aos países em desenvolvimento concessões prematuras e perigosas de liberalização financeira, que beneficiaram principalmente a mesma gente que provocou a atual crise. Demasiadas vezes, essa dimensão internacional da volúpia de Wall Street foi uma precondição para acordos de livre comércio. Até organizações internacionais e bancos oficiais participaram ativamente dessa tentativa insensata de promover um falso conceito de globalização. Não é de modo algum coincidência que os dois países que conseguiram resistir mais à pressão - China e Índia - são as duas economias menos afetadas pelo colapso.

Além disso, devemos esperar que o governo dos Estados Unidos mantenha seu compromisso com um vigoroso pacote de estímulo fiscal pelo tempo necessário para consolidar a recuperação econômica, sem temores prematuros de volta da inflação. Cabe saudar a determinação do presidente Obama de dar prioridade central à criação de empregos e a reverter o aumento da desigualdade ao longo de décadas de fundamentalismo de mercado. Também louvo sua tentativa de vincular a recuperação econômica à prioridade urgente da luta contra o aquecimento global e pelo desenvolvimento de fontes limpas e renováveis de energia.

Ao mesmo tempo, esperamos que o novo governo não adote medidas protecionistas, com dispositivos ao estilo "Buy American". Acima de tudo, desejamos que os Estados Unidos recuperem sua liderança perdida nas negociações comerciais multilaterais, abandonando sua atual dependência de enormes subsídios agrícolas.

Finalmente, algumas palavras sobre o futuro papel do G-20. Esse grupo pode não expressar a fórmula ideal e definitiva para a gestão de um mundo globalizado. Não deve ser visto como um substituto para uma reforma do Conselho de Segurança nem como uma espécie de panaceia para resolver todos os problemas internacionais. É, no entanto, um arranjo prático e razoavelmente representativo para enfrentar desafios onde o tamanho e o peso dos países são importantes.

Para realizar seu potencial, o G-20 tem de cumprir as ambiciosas promessas feitas em Londres sobre a regulamentação e a supervisão financeiras, especialmente quanto à adoção de uma total transparência e abertura dos mercados de derivativos e outros criados pela inovação financeira. O governo norte-americano está dando um exemplo, ao apresentar um plano abrangente para atualizar e revisar a regulamentação e a supervisão financeiras. Mas, como Geithner e Summers declararam num artigo em jornal, as ações nacionais terão pouco efeito se não forem acompanhadas por normas internacionais semelhantes. Por isso, prometeram que os Estados Unidos irão liderar o esforço para melhorar a regulação e a supervisão no mundo inteiro.

É necessário um esforço renovado dos membros do G-20 para honrar seus compromissos de produzir uma significativa reforma do setor financeiro, que o coloque a serviço da promoção da produção e do emprego, e não como um poderoso foco de desestabilização da economia internacional e um fim em si mesmo. Essa tarefa deve ter prioridade total, ou correremos o risco de perder a oportunidade de mudança representada pela crise, permitindo que o esforço de reforma esmoreça à medida que as pessoas relaxem e se deixem iludir por sinais prematuros de uma recuperação superficial.

O G-20 deve manter sua palavra e cumprir o solene compromisso de assegurar uma representação mais equilibrada na direção do FMI e do Banco Mundial, dando mais voz e voto aos países em desenvolvimento. A reforma das instituições de Bretton Woods será vista como um teste decisivo da sinceridade e equanimidade das economias industriais avançadas, pois envolve uma redistribuição do poder e da influência de países sobrerrepresentados, principalmente da Europa, em favor de continentes inteiros como a Ásia, a América Latina e a África.

Em termos imediatos, é imperativo que o FMI receba efetivamente recursos adicionais para apoiar aqueles que necessitam de ajuda especial. Isso vai além da recém-criada Linha Flexível de Crédito (FCL), mecanismo cuja utilidade já foi demonstrada pela concessão de linhas de crédito de US$ 47 bilhões para o México e de US$ 10,5 bilhões para a Colômbia. É igualmente necessário que os países mais vulneráveis, que hoje não se qualificam para a FCL, não fiquem sem assistência adequada.

Gostaria de concluir esta parte deixando aqui uma sugestão prática sobre um tema que é tido como essencial para uma nova ordem mundial. Não mais de 15 países, considerando a União Europeia como uma entidade única, são responsáveis por cerca de 80% de todas as emissões de gás que estão na origem do aquecimento global. Todos eles são membros G-20. O G-20 se tornaria uma instância indispensável da nova ordem internacional se fosse utilizado como fórum de negociação de um compromisso bem-sucedido entre todas as principais economias mundiais - que mereceria ser aprovado na próxima Conferência sobre as Alterações Climáticas de Copenhague. Depois de ter servido como ponto de encontro de perspectivas diferentes, mas convergentes, sobre o risco da crise financeira no presente e no futuro imediato, por que não utilizar o G-20 contra a mais séria ameaça para a civilização humana nos próximos anos?

Finalmente, farei um resumo breve sobre a nova dinâmica de crescimento da economia mundial. A posição relativa dos mercados emergentes - vis-à-vis o mercado mundial - deverá ser fortalecida nos próximos anos, em decorrência de três diferenças: 1) nas taxas de crescimento econômico; 2) nos desequilíbrios de conta corrente; e 3) nos níveis de endividamento público.

A recuperação econômica será liderada pelas economias emergentes, em particular as economias da Ásia e da América Latina, que dispõem de considerável mercado interno. Antes do colapso do Lehman, esses países apresentavam sólida expansão, a despeito do crescimento declinante das economias maduras. O evento Lehman representou uma inflexão, ao encolher a liquidez mundial e afetar profundamente as economias emergentes. Quando as condições de liquidez se normalizarem no mundo, todavia, deve ser retomada a diferenciação nas taxas de crescimento.

A expansão econômica mundial será moderada por algum tempo, mas as diferenças no ritmo de crescimento dos países serão maiores do que antes. Claro, as economias emergentes não podem ser descritas como um bloco: na América Latina, há países com políticas econômicas insustentáveis, como é o caso da Venezuela. Em países da Europa do Leste, os vínculos adversos entre as desvalorizações cambiais e o setor bancário magnificaram a contração da liquidez do choque LB, provocando forte queda da atividade econômica. Na Ásia, algumas economias voltadas às exportações, como a Coreia, têm dificuldades para substituir a demanda externa pela interna. Mas de maneira geral pode-se afirmar que o crescimento das economias emergentes em 2009 e 2010 será superior à expansão nas economias maduras.

A comparação entre ambos os grupos de economias mostra que a conta corrente dos balanços de pagamentos esteve praticamente equilibrada (próxima a zero) até 1998. A partir daí, as economias emergentes foram ampliando superávits, que a crise reduziu (de US$ 438 bilhões em 2007 para aproximadamente US$ 300 bilhões em 2009, conforme estimativas do IIF), mas o desequilíbrio deve aumentar novamente em 2010. O chamado arranjo informal Bretton Woods II não se dissipou e as economias emergentes continuarão sendo credoras.

A ampla adoção de políticas fiscais contracíclicas levará ao aumento da relação dívida/PIB no mundo inteiro, mas o impacto será mais dramático nas economias do G-7. A dívida líquida dos EUA e do Reino Unido, por exemplo, crescerá para 70% até o final de 2010, quase o dobro dos níveis pré-crise. Outras economias maduras serão mais afetadas ainda. Consequentemente, a percepção de risco relativo dos mercados deve se alterar em favor das economias emergentes, pelo menos daquelas cujos governos saibam praticar políticas econômicas inteligentes.

Deve-se esperar, como disse antes, uma redistribuição do poder nas instituições multilaterais como o FMI, além de uma certa apreciação real das moedas nacionais nos mercados emergentes em relação aos países maduros e um aumento do comércio entre economias emergentes. Em alguns casos, isso poderá levar a acordos para o uso das moedas desses países no comércio entre si. Do mesmo modo, deverá haver um aumento dos fluxos financeiros e de investimento entre companhias de economias emergentes, dispensando a intermediação das instituições financeiras das economias maduras.

Quais países, entre os emergentes, se sairão melhor e quais países, entre os de economia madura, não se sairão tão mal? A resposta vai depender de circunstâncias objetivas de sua atual inserção na economia internacional e, sobretudo, da qualidade do aproveitamento das políticas econômicas nacionais para, como já disse acima, promover o desenvolvimento, de acordo com suas especificidades e seus interesses.

* Governador de São Paulo. Artigo baseado em palestra apresentada no dia 18/06 no Simpósio Foresight USA, em Washington

Culpar a mídia virou pandemia

Alberto Dines
DEU NO JORNAL DO COMMERCIO (PE)


Veloz, solerte, letal. Cometido o delito, antes mesmo de esboçar uma estratégia de defesa, os denunciados e encurralados estão aprendendo a servir-se de um recurso mais moderno do que a velha máscara da inocência: acusam a imprensa.

Consideram mais eficaz desqualificar os meios de comunicação num mundo cada vez mais dependente deles do que rebater acusações. O bode expiatório anti-midiático está sendo utilizado neste momento em diferentes quadrantes e a mesma intensidade: no Brasil o agente viral é o senador José Sarney e seu dileto advogado de defesa, o presidente Lula, ambos empenhados em minimizar o turbilhão de escândalos que envolve há cinco meses a figura do ex-presidente da República e tri-presidente da Câmara Alta.

No Irã, são os aiatolás que não reconhecem a fraude a favor do seu candidato, Mahmud Ahmadinejad e culpam a imprensa internacional pela rebelião popular que tomou conta das ruas de Teerã. Na Itália, flagrado numa bacanal, o primeiro-ministro Silvio Berlusconi acusa a mídia européia de esquerdista e conspirar para derrubá-lo.

Desgastado pelo fracasso do socialismo bolivariano, o venezuelano Hugo Chávez tenta liquidar o que restou da imprensa livre no seu país, especialmente a emissora Globovisión. E na Argentina, assustada com um possível avanço da oposição nas eleições legislativas do próximo domingo, a dupla presidencial Kirchner ameaça enviar ao Congresso o projeto de uma nova lei de audiovisual.

Os afetados pela pandemia exibem sintomas comuns – abominam a alternância no poder, só gostam da democracia quando as urnas lhes são simpáticas, só lêem jornais que os elogiam. As diferenças não são apenas geográficas. Algumas vítimas do furor anti-mídia são eles próprios barões da mídia. Caso de Berlusconi, que além de controlar os canais estatais da Itália, é dono de um poderoso conglomerado multimídia que o torna virtual senhor da opinião pública.

Quando se sentiu obrigado a defender-se publicamente, Sarney foi à tribuna do Senado para atacar “grupos econômicos e a mídia radical”. A precária acusação não faz justiça ao notório saber do político maranhense. Grupos econômicos jamais se aliariam à mídia radical. Quem o fustiga, mais encarniçado, é o Estado de S. Paulo, seguido do Globo, ambos mais conservadores do que extremados. Mesmo a Folha de S.Paulo (onde o imortal romancista publica há duas décadas suas platitudes semanais), não cabe no figurino do irredentismo.

Sarney goza de um poderoso salvo-conduto midiático: quando envergou a faixa presidencial, depois da tragédia que se abateu sobre Tancredo Neves, tentou obsessivamente acrescentar mais um ano ao seu mandato. Para isso, encarregou o ministro das Comunicações, ACM (Antônio Carlos Magalhães) de fazer uma farta distribuição de mimos aos congressistas. Assim nasceu a aberração que desqualifica tanto o Congresso como nossa mídia eletrônica ao converter quase duas centenas de parlamentares em concessionários de canais de rádio e TV. Seriam eles os radicais que o atazanam?

Dono de um conglomerado de mídia no seu estado, além de colunista da Folha, Sarney já tentou usar o jornalismo para alavancar a carreira política. Em 1962, algum radical descobriu a manobra e demitiu-o do cargo de correspondente do Jornal do Brasil em São Luiz do Maranhão.

Imperioso reconhecer que a mídia contemporânea enfrenta em diferentes esferas sérios problemas existenciais que a fragilizam e a tornam vulnerável aos surtos viróticos. A pandemia anti-midiática não grassa em ambientes arejados, pluralistas, onde o jornalismo, além de profissão é também encarado como missão. Vacina infalível para qualquer pandemia autoritária.

» Alberto Dines é jornalista

O QUE PENSA A MÍDIA

Editoriais dos principais jornais do Brasil

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A voz de Neda e as conquistas femininas

Carta do diretor de redação Helio Gurovitz
DEU NA REVISTA ÉPOCA

A palavra Neda significa voz, ou chamado, em persa – a língua falada no Irã. Ao longo da semana passada, uma mulher de nome Neda Agha- -Soltan se tornou o mais novo símbolo na luta iraniana pela democracia. Sua voz se fez ouvir por meio de um vídeo, visto por milhões de pessoas, em que o corpo ensanguentado de Neda perde a vida, depois de levar um tiro no peito durante protestos nas ruas de Teerã. O assassinato de Neda, brutal e chocante, trouxe à cena a importância das mulheres nesse combate. Uma das líderes da revolta em Teerã é Zahra Rahnavard, mulher do candidato oposicionista Mir Hossein Mousavi. Por seu perfil político destacado, Zahra chegou a ser comparada a Michelle Obama, a carismática primeira-dama americana.

O século passado foi crucial para as conquistas femininas no mundo todo. É comum, entre mulheres da geração que chegou à idade adulta nos anos 60 e 70, um sentimento de orgulho pela ascensão no mercado de trabalho e até um sentido de rivalidade com os homens pela disputa de espaço na sociedade. Quando olhamos a situação das mulheres em um país como o Irã, onde elas protestam contra, entre tantas coisas, o papel secundário que a lei e os costumes lhes reservam, sentimentos como esses se tornam perfeitamente compreensíveis.

É importante, nessas horas, também reconhecer como o mundo e o Brasil evoluíram na inclusão das mulheres. Quando eu era criança, minha mãe era uma exceção. Ela sempre trabalhou, ganhava mais que meu pai e cuidava das contas da casa. E não havia entre os dois, num casamento que durou 43 anos até a morte do meu pai, nenhum outro sentimento além de amor. Talvez, por isso, eu sempre tenha visto com um grão de ceticismo a revolta militante de algumas mulheres contra o que chamam de “tirania masculina”.

Hoje, homens e mulheres são, felizmente, vistos como iguais na sociedade e na maioria das profissões, mesmo naquelas antes tidas como redutos masculinos. Pego com cada vez mais frequência táxis dirigidos por mulheres. Na semana passada, voei de Brasília a São Paulo num avião comandado por uma mulher. E uma das candidaturas à Presidência da República é da ministra Dilma Rousseff, da Casa Civil. Se ela conseguir vencer o câncer linfático e a extenuante corrida eleitoral, o Brasil poderá ter a primeira presidenta de sua história. A forma como a sociedade encara essa possibilidade é a maior prova de como o Brasil conseguiu superar os estereótipos machistas.

No jornalismo, as mulheres têm há muito tempo papel de destaque. Tivemos uma prova recente disso em ÉPOCA, com o êxito do blog Mulher 7x7, escrito por sete jornalistas mulheres. Desde a estreia, o blog, que trata de temas de interesse feminino, se tornou o segundo na lista de nossos blogs mais acessados. O Mulher 7x7 é feito por três paulistanas, três cariocas e uma limeirense, que ficam em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Com idades de 26 a 54 anos, casadas e solteiras, com filho e sem filho. A diversidade que representam são uma amostra do fascinante universo feminino, e seu sucesso um reflexo das conquistas femininas na sociedade brasileira – conquistas de que um país como o Irã ainda parece distante, como revela o triste exemplo de Neda.

Joao Gilberto e Caetano Veloso - Garota de Ipanema

Vale a pena ver

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Plataformas

Antonio Camou
CENTRO DE INVESTIGACIONES POLÍTICA – Argentina


La decadencia de cualquier género (las postales de verano, el piropo, la serenata) suele aflojar el pudoroso lagrimal de la nostalgia; en algunos casos, además, ofrece algún motivo para la sana preocupación. El asunto viene a cuento por el inocultable declive de un arte menor, la escritura de plataformas.

Digo escritura, y no lectura, porque en ninguna imaginaria edad de oro de la participación política la completa digestión de densos mamotretos partidarios fue objeto de masivo entusiasmo. A lo más, el improbable lector o lectora sobrevolaba el índice, exploraba la introducción, y se concentraba en aquellos asuntos de su particular interés, directo conocimiento o abrasadora actualidad: nuestra posición frente al conflicto limítrofe indio-pakistaní, el plan de acción frente al paludismo, la precisa geografía de las propuestas de alcantarillado, etc.

Todavía en 1989 el Instituto Superior de Conducción Política del Partido Justicialista creyó oportuno publicar en varios volúmenes su Análisis, Lineamientos Doctrinarios y Propuestas para la Acción del Gobierno Justicialista.

Tengo a la mano el tomo I, que se extiende a lo largo de 395 detalladas páginas, donde se desmenuzan, entre otros temas, lo que habría de hacerse con la “regionalización de los servicios de salud”, el abaratamiento de los fletes de “nuestra Flota Mercante”, y la “plena industrialización del Cobalto 60”.

Ignoramos si el entonces candidato Carlos Saúl Menem leyó el documento, pero según es fama fue el propio caudillo riojano quien empezó a herir de muerte al género; lo hizo un día que, muy suelto de cuerpo, señaló en una revista de variedades que “si antes de las elecciones decía lo que iba a hacer, no me votaba nadie”.

Pasados los años, los distinguidos intelectuales kirchneristas reunidos en el espacio Carta Abierta no dejan de lamentar que las decisiones de un gobierno que apoyan carezcan de un cierto marco programático. “No creemos equivocarnos –advierten en su cuarta epístola a los compatriotas- si decimos que falta la elaboración, explicitación y proyección de algo previo a ciertas medidas importantes”. El punto es digno de toda atención porque señalan orfandades escriturarias y doctrinales que constituyen un notorio déficit de la pareja presidencial. Como todos sabemos, Néstor Kirchner es un tribuno de atril enjundioso, pronunciar atolondrado y diccionario angosto, mientras que la actual presidenta –en cambio- es una oradora distinguida y de palabras tomar; pero ambos han discurrido por la política navegando con vivaz bandera de ágrafos. Sin ir muy lejos, la insólita plataforma que el Frente para la Victoria presentó para los comicios presidenciales de octubre de 2007 era un sesudo y agendatario documento enumerativo que insumía la friolera de… tres páginas.

Mientras tanto, se dice por todos lados que “la gente quiere oír propuestas”. Pero salvo honrosas excepciones tal parece que no está dispuesta a “leerlas”; ya sea porque carece de tiempo o de conocimientos para analizarlas, ya sea porque no está muy dispuesta a fundar su juicio electoral en un dificultoso ejercicio de documentación comparada. Con un criterio algo más intuitivo, parecería que “la gente” prefiere invertir sus horas en otros quehaceres y orejear a los candidatos según como vayan apareciendo en “Gran Cuñado”, o en algún otro entrevero televisivo. De este modo, en momentos en donde abundan los cruces judiciales, los sondeos maquillados, las operaciones de prensa o el reparto de plasmas, las viejas plataformas partidarias parecen melancólicos ensayos de borgeana categorización del mundo.

Y sin embargo, hubo un tiempo en que los denostados pero imprescindibles partidos políticos escribían plataformas como una parte habitual de su vida interna y de toda contienda democrática. Se nos dirá, con mucho de razón, que el problema clave es que hoy ya no tenemos partidos; y también que las cicatrices de la ausencia nos llevan a fogonear una idealización mal avenida: las plataformas nunca fueron un contrato inviolable entre representantes y representados, ni una implacable herramienta de responsabilización. Pero al menos cumplían algunas funciones importantes. Por de pronto, tendían a vincular un análisis de la situación actual y una propuesta concreta de resolución de problemas con cierta doctrina, con algún lineamiento estratégico de mediano o largo plazo. Además, en esos documentos se intentaba compatibilizar, a veces al riesgo de la mera mixtura, las visiones tecno-políticas disímiles al interior de una organización partidaria. Y finalmente, el proceso de elaboración de las plataformas oficiaba de espacio de integración, de posicionamiento y de competencia de los expertos que luego podían ocupar estratégicas posiciones de gobierno.

Sea como fuere, para algunos ya es tarde para lamentarse porque hoy los vientos parecen soplar para otros rumbos discursivos; pero otros, en cambio, aún creen que vale la pena rescatar ese género declinante aunque vayamos un poco a contracorriente. Como me confesaba un militante de a pie, defendiéndose por la telegramática brevedad de cierto colorido panfleto repartido en la vía pública: “Si escribimos textos largos, no los lee nadie; y a fin de cuentas, quién se va a acordar después de lo que escribimos”.

Bien mirado, quizá haya algo peor todavía que escribir plataformas para el común olvido, y es olvidar el por qué teníamos que escribirlas.

Gasto público em ritmo eleitoral

Vinicius Torres Freire
DEU NA FOLHA DE S. PAULO


Lula começa a dar primeiros sinais de que governo faz contas públicas pensando nos votos da eleição de 2010

NA SEMANA que passou, Lula provou uma receita de corte de gastos, oferecida por seus ministros. Mandou voltar o prato, com críticas ao cozinheiro, aos ingredientes e ao serviço. O presidente indica, assim, que o gasto do governo entrou em ritmo de eleição. Lula não pretende rever ou adiar o aumento dos servidores públicos.

Por outro lado, não gostou de ouvir que pode ser difícil cumprir a meta já reduzida de superávit primário para este ano. Prefere, pois, cortes de varejo. Porém, deve prorrogar total ou parcialmente a redução de impostos que incentivam o consumo, como os concedidos para a compra de carros, materiais de construção, eletrodomésticos de cozinha e lavanderia ("linha branca") e alguma outra isenção menor, "surpresa".

De resto, as medidas de apoio à indústria de máquinas e equipamentos devem prever um subsídio do Tesouro, que compensaria assim a redução dos juros do BNDES para a compra de bens de capital. Não está claro se haverá algum benefício fiscal para o setor. Pode ser que a TJLP ("juros do BNDES") caia.

O problema não está aí, nesses incentivos. Caso confirmados, os aumentos do funcionalismo terão pleno impacto nas contas públicas de 2010. E, em 2010, há o zunzum de que Lula "não está convencido" de que a meta de superávit primário, reduzida neste ano, deva voltar ao nível de 2008. Se for o caso, até o Fundo Soberano pode entrar na roda a fim de cobrir insuficiências na receita de impostos e evitar, assim, cortes de despesas em ano eleitoral.

No acumulado em 12 meses, o superávit primário do governo federal em abril foi o mais baixo desde 1999. A dívida pública crescerá. Em novembro de 2008, baixara a 35% do PIB, o menor nível desde 1998. Em abril, foi a 38,4% do PIB e deve ter crescido desde então. A dívida crescerá mesmo com a queda da despesa com juros, que o Banco Central estima em 0,9% do PIB em 2009 e outro tanto em 2010, dada a baixa das taxas. Isto é, o governo gasta também a economia com juros. Faz despesas de composição ainda muito ruim (muito gasto corrente, investimento ainda baixo). Quase tudo bem, pois 2009 é um ano de crise. E 2010?

O BC estima que, em dezembro de 2009, a dívida pública terá subido três pontos percentuais. Regrediria no ano seguinte ao nível de 2008, com a volta do crescimento econômico e da receita, desde que, ressalte-se, seja mantida a meta divulgada de superávit fiscal primário, que parece estar em jogo. Mas nada sabemos do PIB e da arrecadação no segundo semestre, que dirá em 2010.

A não ser que o governo enlouqueça, o que é improvável, ou em caso de nova catástrofe econômica mundial, tal aumento da dívida não deve provocar problema crítico. Mas o endividamento extra dificulta outra vez a tarefa de melhorar o prazo/perfil da despesa pública (alongar a dívida e gastar menos com juros), de reduzir mais a taxa de juros ou, quase quimera, reduzir a carga de impostos (ou melhorar a sua distribuição, via reforma tributária). Seriam tarefas mais factíveis se a dívida baixasse à casa dos 30% do PIB.

Sim, parece um assunto tão velho. Que envelhecerá ainda mais, pois aparentemente será empurrado com a barriga, ad aeternum. Ou pelo menos até 2011, quase com certeza.

Lento regresso

Míriam Leitão
DEU EM O GLOBO

Nos últimos três meses o mundo viveu um desafogo. Subiram as bolsas, os preços das commodities.

Caiu a aversão ao risco e despencaram os riscos de países e empresas. O dólar enfraqueceu em relação à maioria das moedas. O crédito começou a voltar. Tudo isso fez muita gente sonhar com o começo do fim da crise, mas os economistas estão divididos entre o V e o W.

Os mais otimistas acham que esse é o começo da recuperação da crise e que a economia mundial chegará ao fim do ano — alguns países mais rapidamente que outros — em ritmo de retomada para um 2010 melhor do que este difícil ano que estamos vivendo. Outros acreditam que pode haver uma segunda queda; é o cenário em W.

O que todos concordam: passou o pânico que quase levou o mundo ao precipício no final de 2008; reduziramse muito os riscos de uma grande depressão como a da crise de 1929; diminuíram os riscos bancários, apesar de os bancos ainda não estarem saneados.

Mas acabam aí os consensos.

A turma do W parece mais consistente. Há incertezas demais e artificialismos demais para se acreditar que este é o momento de retomada sustentada e de saída de uma crise dessa magnitude.

Há um enorme descasamento entre a economia real e o clima de carnaval fora de época do mercado.

Esse descasamento faz o mundo caminhar num fio de navalha: basta um dado ruim para precipitar um período de realização, ou seja, uma nova queda. Novos períodos de volatilidade podem ocorrer. Se não houver a rápida recuperação que está sendo prevista no segundo semestre.

Os excessos monetários e fiscais dos países ricos provocarão uma crise mais adiante. O ano de 2011 está marcado em vermelho em alguns calendários como um ano em que se pode enfrentar uma onda de inflação global. Hoje isso parece ficção, porque as economias maduras mal conseguiram afastar o risco da deflação. Mas com a intensidade do relaxamento fiscal e monetário é difícil escapar dessa onda.

Mas há riscos mais imediatos como uma nova onda de queda de ativos. O economista Nouriel Roubini publicou, em um dos seus últimos relatórios, que a economia chinesa pôs um tal volume de recursos à disposição das estatais que elas, sem conseguir alocar todos os recursos, estão estocando matéria-prima muito além de suas capacidades produtivas.

Os brasileiros que voltaram da reunião mundial da siderurgia, e que eu entrevistei no programa da Globonews, Marco Polo de Mello Lopes, do Instituto Brasileiro de Siderurgia (IBS), e Carlos Loureiro, do Instituto Nacional dos Distribuidores de Aço (Inda), disseram que as avaliações feitas em Nova York eram de que a recuperação do consumo de aço nos países industrializados será lentíssima.

Eles falaram também que alguns analistas estavam avaliando no Steel Survival Strategies (antigamente o S era de Success) que a China pode estar chegando à maturidade em termos de consumo de aço. Pode parecer estranho, porque a China ainda tem milhões de pessoas para incluir no mercado de consumo, mas o que eles dizem é que o país sobreinvestiu em infraestrutura em 2009, e que nos próximos anos vai naturalmente reduzir o ímpeto desse investimento.

— A China saiu de 98 quilos de aço por habitante/ ano, em 1998, para 340 quilos por habitante/ano, agora. O Brasil está há 20 anos estagnado em 100 quilos — explicou Marco Polo.

Loureiro disse que ouviu de alguns analisas que os Estados Unidos não voltarão, num horizonte visível, aos níveis de consumo de aço de 2008.

Os déficits públicos dos dez países mais ricos do mundo podem levar o endividamento global desses países de 78% do PIB em 2007 para 114% do PIB em 2014, disse a revista “Economist” citando economistas do FMI.

Essa é uma crise de longo curso, com etapas e desdobramentos ainda por vir.
Com possíveis surpresas e reviravoltas, por isso a pior coisa que se pode fazer em relação a ela é subestimá-la.

No Brasil, governo e empresas estão confundindo a recuperação da Bolsa, a queda do risco-país, a queda do spread nos bônus lançados pelas empresas como o fim da crise. Não foi só o Brasil que passou por essa recuperação.

Foi uma onda. Este ano, até agora, a Bolsa da China aumentou 60%; a da Índia, 50%; e a do Brasil, 57%. Tudo isso em dólares.

Não é sinal de saúde. A economia da Rússia, que vai ter uma recessão de grandes proporções, este ano teve uma alta na Bolsa de 51,8%.

Num artigo publicado no “Economists’ Voice”, o Nobel Joseph Stiglitz aconselha conter a alegria: “o otimismo voltou com a primavera, mas a economia americana tem um longo caminho a seguir”, disse ele.

Se houver novos períodos de volatilidade, incerteza e queda de ativos, estará mais bem posicionado quem não subestimar o tamanho dos riscos que ainda existem na economia brasileira.

Há setores que vivem intensidades diferentes da crise, mas ela ainda está se desdobrando. Ainda há muita coisa mal resolvida e mal parada na economia mundial e brasileira.

Os Estados Unidos têm como uma de suas estratégias para sair da crise o investimento na transformação da velha economia intensiva em carbono em uma nova economia de baixo carbono.

Na sexta-feira, essa estratégia avançou mais um pouco com a aprovação na Câmara dos Representantes — por estreita margem — da primeira legislação que estabelece a redução de emissões e estimula a produção de energia limpa. Os republicanos acham que ela vai destruir empregos. O presidente Barack Obama acha que ela será um dos motores da retomada econômica.

Lições de Alan Greenspan

Luiz Gonzaga Belluzzo
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

Sem os bancos e os negócios do dinheiro, o capitalismo estaria nos tempos do tílburi e da poupança sob o colchão

EM ARTIGO publicado no "Wall Street Journal" de 19 deste mês, Alan Greenspan ensina: o risco sistêmico é quase exclusivamente um fenômeno das instituições financeiras. "A inadimplência de grandes instituições pode desmantelar o sistema financeiro e com ele o resto da economia, devido às múltiplas e intrincadas relações entre a finança e a atividade econômica." Greenspan diz que os riscos gerados por empresas não financeiras -independentemente de seu tamanho- ficam restritos aos seus credores, fornecedores e clientes. Raramente têm impacto mais amplo.

Greenspan diz o óbvio ou o que deveria ser óbvio para qualquer cidadão razoavelmente informado sobre a natureza da moderna economia monetária e de crédito. Melhor dito: sobre as relações entre crédito, moeda e atividade econômica na economia capitalista contemporânea.

Repito o que já disse nesta coluna: nessa economia com grande concentração de capital fixo e dominância dos bancos na pirâmide de intermediação financeira, a dinâmica de longo prazo está fundada na busca do aumento da produtividade social do trabalho, o que, por sua vez, impulsiona a competição feroz entre grandes empresas pela inovação tecnológica incorporada nas novas gerações de insumos e equipamentos. Essa dinâmica está amparada na capacidade dos bancos de emprestar (criar liquidez), diversificando o risco, um múltiplo dos depósitos à vista escriturados em seus registros.

Os passivos bancários podem ser exigidos pelos depositantes sem pré-aviso e mobilizados por eles como meios de pagamento. Os bancos "criam" moeda. Todas as inovações financeiras são descendentes das técnicas de "alavancagem" e das tentativas de repartir o risco.

Não fossem os bancos e os negócios do dinheiro, o capitalismo estaria resfolegando (se é que estaria) nos tempos do tílburi, do "capitão de indústria" e da poupança escondida, em notas graúdas ou miúdas, sob o colchão. A rede de pagamentos formada pelo sistema bancário é crucial para o funcionamento adequado dos mercados. Ela se constitui na infraestrutura que facilita o "clearing" e a liquidação de operações entre os protagonistas da economia monetária.

Dificuldades nessas instituições, que formam o sistema de provimento de liquidez e de pagamentos, geram inevitavelmente dificuldades para o conjunto da economia. Por isso, a desregulamentação financeira, estimulada e celebrada por Greenspan, abriu as comportas para a "invasão" do risco sistêmico no coração do capitalismo.

Na contramão das regras impostas nos anos 30, os bancos comerciais passaram a operar como supermercados financeiros, valendo-se da "securitização" de créditos, do envolvimento em posições nos mercados de capitais e em operações "fora do balanço" com derivativos.

Os gestores de portfólios -bancos de investimento, seus fundos mútuos e de hedge-, na sofreguidão de bater os concorrentes, trataram de turbinar os resultados mediante a alavancagem financiada pelos bancos comerciais. Os filhotes da desregulamentação empenharam-se em espalhar o risco sistêmico.

Luiz Gonzaga Belluzzo, 66, é professor titular de Economia da Unicamp. Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).

Um segredo de 15 anos

Gustavo Paul
Brasília
DEU EM O GLOBO
Às vésperas do Real, BC estocou 130 milhões de cédulas de R$ 100 temendo inflação

Lançado há 15 anos, em 1º de julho de 1994, o Plano Real entrou para a história como o mais bem sucedido plano brasileiro de estabilização econômica. Mas essa certeza foi sendo forjada apenas ao longo dos anos, no gerenciamento diário das medidas. Antes de ganhar as ruas, o Real era um celeiro de ideias e dúvidas. Durante o período de preparação do plano, o Banco Central comandado por Pedro Malan, temia um fracasso total, com a inflação voltando, em pouco tempo, a disparar.

Para se precaver de um possível aumento da procura por papel-moeda, a direção do BC encomendou, discretamente, a impressão de 130 milhões de cédulas de 100 reais na véspera do lançamento da moeda no mercado, em 1º de julho de 1994.

Segundo revela, uma década e meia depois, o então presidente da Casa da Moeda, Tarcísio Jorge Caldas Pereira, ter cédulas em estoque para colocar na praça foi uma estratégia preventiva, que tinha como base o insucesso de seis planos anteriores: — Para o Banco Central, poderia faltar troco na economia, mas tinha de haver papel-moeda circulando.

Mas os preços não dispararam e por isso, até 2006, o Banco Central não encomendou novas cédulas de R$ 100.

Segundo João Sidney de Figueiredo Lima, atual chefe do Departamento do Meio Circulante do BC, o grande volume de cédulas produzidas, assinadas pelo então ministro da Fazenda, Fernando Henrique, foi suficiente para abastecer o mercado por anos: — As autoridades foram prudentes, pois não se sabia o que podia acontecer. E as cédulas duraram até 2007! Ficamos sem fazer cédulas de R$ 100 por 12 anos.

Mesmo sem ser o titular da Fazenda quando o Real foi lançado — ele passou o cargo a Rubens Ricupero em 30 de março — Fernando Henrique estampava sua assinatura nas notas pois os modelos foram aprovados pelo presidente Itamar Franco quando ele ainda comandava a equipe econômica.

A linha de produção da Casa da Moeda deixou prontas outras levas entre 100 mil e 200 mil notas de R$ 100. Ficaram armazenadas, sem assinaturas.

Por isso, diz Lima, ainda em 1994 foram impressas algumas milhares de notas com a assinatura de Ricupero, que ficou no cargo pouco mais de cinco meses. Malan, ministro a partir de 1995, também assinou alguns milheiros.

O processo de confecção das cédulas começou muito antes do fechamento dos detalhes do plano. Logo no início de dezembro de 1993, quando a Fazenda anunciou ao país os detalhes do plano de estabilização — com a criação da Unidade Real de Valor (URV), que faria a transição entre o cruzeiro real e a nova moeda —, FH encomendou à Casa da Moeda estudos sobre novas moedas e cédulas. Segundo um assessor direto do ex-ministro, ele não chegou a apresentá-los a Itamar e demais membros da equipe, ainda inseguros quanto aos prazos de implantação da nova moeda.

Fernando Henrique queria ter tudo adiantado para pôr o real em circulação o quanto antes. Em janeiro, os esboços da nova família de moedas estavam prontos e foram aprovados. A produção começou em março. Durante os quatro meses seguintes, a equipe da Casa da Moeda trabalhou em dois turnos de 12 horas, para produzir as novas cédulas e moedas e ainda para abastecer o mercado com cruzeiros reais. Faltou até aço inoxidável para dar conta da produção.

— Em cinco meses produzimos o que normalmente faríamos em um ano.

Até funcionários já afastados foram chamados — conta Caldas Pereira.

Assustado com o primeiro prazo colocado pelo governo para o Real — 1º de maio — o BC decidiu reforçar a produção das notas de menor valor e abriu em março uma licitação internacional.

Segundo Lima, empresas de Alemanha, Inglaterra e França produziram 10% das cédulas que circularam no início do real. Até o fim de 1994, 260 milhões de notas de R$ 5, R$ 10 e R$ 50 vieram do exterior. Hoje, são exemplares de colecionador.

Equipe chegou a cogitar chamar real de coroa e URV teve oito opções de nomes

Gustavo Paul
DEU EM O GLOBO

Fernando Henrique bateu o martelo e escolheu Unidade Real de Valor

BRASÍLIA. Em 1993, durante os meses em que a nova moeda brasileira foi sendo desenhada, sua denominação foi um capítulo à parte. De acordo com um dos auxiliares mais próximos ao então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, cogitou-se inicialmente a adoção de nomes tradicionais de moedas, uma delas era coroa. Mas não houve polêmica diante da escolha de real. Era um derivado natural da moeda corrente, o cruzeiro real. Na verdade, a maior discussão foi em torno do que se chamou de “indexador contemporâneo”, que faria a transição do regime monetário anterior para o novo, a Unidade Real de Valor (URV).

Oito nomes foram propostos pela equipe de comunicação da Fazenda. Um memorando enviado no dia 30 de novembro de 1993 pela assessora de Comunicação da pasta, jornalista Ana Tavares, ao então secretárioexecutivo Clovis Carvalho, listava as opções. Fernando Henrique optou por URV. Ele argumentou que o termo trazia a palavra “unidade”, relacionada ao termo técnico “unidade de conta”, usado pelos técnicos e “real”, que faria uma ponte entre a velha e a nova moedas.

BC deu consultoria a UE, Turquia e, agora, Venezuela Depois, de acordo com Clovis Carvalho, outra discussão procurou determinar qual seria o plural de real. Os linguistas mais tradicionais defendiam que se adotasse o termo “réis”, mas este remetia a algo velho — a moeda brasileira do início do século. Dentro do governo, a defesa era por “reais”.

— Essa foi uma discussão entre gramáticos e linguistas, que ocorreu fora da equipe econômica — lembra Carvalho.

O trabalho de distribuição da nova moeda para todos os rincões do país foi um desafio. Em 15 dias, tiveram de mudar 3,4 bilhões de cédulas antigas por 1,5 bilhão de notas de real, além de distribuir três mil toneladas de moedas. De acordo com João Sidney de Figueiredo Lima, atual chefe do Departamento do Meio Circulante do Banco Central (BC), foi a maior troca de moedas já realizada até então, o que levou a instituição a se tornar referência internacional: — Depois demos consultoria à União Europeia (quando o euro entrou em circulação), à Turquia e, recentemente, à Venezuela.

Entre abril e o fim de junho de 1994, o BC distribuiu notas e moedas de real em recipientes lacrados a 42 instituições financeiras em todo o país, e estas se tornaram fiéis depositárias da nova moeda. Apenas para colocar o real em circulação foram 106 viagens aéreas — os voos carregavam até quatro toneladas do novo dinheiro — e 37 terrestres. Até o fim do ano, chegaram a 445 viagens.

Os carros-fortes saíam do prédio do Meio Circulante do BC no Rio escoltados pelo Exército e nos fins de semana de junho, a Avenida Rio Branco chegou a ser vigiada por tanques. E a distribuição foi justamente isso: uma operação de guerra.

— Para evitar falsificações, a orientação era de que os bancos não abrissem as caixas até a véspera do início do plano. Mas o apoio popular ao plano tornou tudo mais fácil — conta Lima.

Metas de inflação: dez anos de resistência

Liana Melo
DEU EM O GLOBO
Sistema sobreviveu a crises, mas analistas pedem mudanças. Werlang, pai do modelo, sugere votos abertos no Copom

O sistema de metas de inflação ainda está longe da maioridade no Brasil. Adotado como âncora da política econômica em 1999 — quando, numa guinada do Plano Real, o país fez uma maxidesvalorização e adotou o câmbio flutuante — o sistema, no entanto, acumulou maturidade nestes dez anos. A prova é que a economia resistiu bravamente à crise financeira global.

E não foi a primeira vez que o modelo foi colocado em xeque: ele já tinha enfrentado turbulências em 2001 e 2003. Só que, mesmo sendo apontado como um dos casos de maior sucesso no rol de 22 países que aderiu ao regime de metas, talvez tenha chegado a hora de refiná-lo.

O economista Sérgio Werlang, considerado o pai do sistema de metas de inflação no país e ex-diretor de Assuntos Econômicos do Banco Central (BC), defende a mudança. Por considerar que o regime hoje está suficientemente amadurecido, Werlang acredita que é preciso mais transparência na aplicação do modelo.

— A Inglaterra já publica seu modelo de previsões desde 1999 — sugere o economista, atualmente vice-presidenteexecutivo do Itaú-Unibanco.

Economista defende volta das reuniões mensais Para dar ainda maior previsibilidade ao mercado, Werlang prega também que as votações disputadas nas reuniões do Comitê de Política Monetária (Copom) sejam abertas e não secretas. No último encontro do Copom, quando a taxa básica de juros Selic foi reduzida para o patamar inédito de 9,25% ao ano, o placar foi rachado: seis diretores do BC optaram pelo corte de um ponto e dois por apenas 0,75 ponto. Werlang também defende a urgência de as reuniões do Copom voltarem a ser mensais e não mais a cada 45 dias, como atualmente.

— Num momento de crise, a periodicidade menor é bem mais conveniente.

Apesar de admitir a necessidade de ajustes, o economista dá de ombros para aqueles que insistem em criticar o Copom por desconsiderar o equilíbrio externo na definição da política monetária: — Não faz nenhum sentido adotar o regime de metas com câmbio controlado.

Críticas à parte, o sistema de metas no país está associado a uma redução da inflação: em 1999, o IPCA fechou em 8,94%, e, no ano passado, em 5,90%. Em ambos os casos, a inflação não estourou os limites da meta, o que acabou ocorrendo entre 2001 e 2003. Alguns economistas chamam a atenção que a perseguição por manter a inflação sob controle acabou levando o país a experimentar redução do crescimento econômico.

O BC já sinalizou que confirmará a meta de 4,5% para 2010, repetindo assim, pela sexta vez, o mesmo percentual. Se o economista Antonio Corrêa de Lacerda, da PUC-São Paulo, tivesse direito a voto no Conselho Monetário Nacional (CMN) ele votaria para uma meta de 4,5% também em 2011: — Ainda que considere o modelo de metas válido, ele não deve engessar a política macroeconômica.

É que, na sua opinião, o modelo ainda convive com distorções, como o fato de a meta ser definida com base na inflação cheia, o IPCA. Isto faz com que, toda vez que há um choque de preços de commodities ou no câmbio, se promova um aperto na política monetária.

A segunda anomalia, continua Lacerda, está no horizonte muito curto de foco do sistema de metas de inflação, que é de 12 meses. O ideal, defende, é um prazo de 24 ou 36 meses. A última crítica do economista diz respeito ao critério de captura das expectativas, que é centrado exclusivamente no mercado financeiro: — Este é um sistema enviesado.

Seria oportuno captar também as expectativas do setor produtivo, da academia e de outros segmentos importantes da sociedade.

Para Paulo Nogueira Batista Júnior, diretor-executivo pelo Brasil e mais oito países no Fundo Monetário Internacional (FMI), o sistema de metas de inflação “não pode ser um estorvo” na política econômica.

No caso do Brasil, ele acha muito difícil que o regime funcione como um entrave, porque o sistema foi pensando com bastante flexibilidade: — As metas de inflação no país operam com um intervalo relativamente grande, uma amplitude de dois pontos percentuais para cima e para baixo.

A Nova Zelândia foi o primeiro país a adotar o regime de metas, em 1990, e serviu de modelo para outros países mundo afora.

'A memória da inflação não foi apagada'

Liana Melo
DEU EM O GLOBO

Uma década de convivência com o regime de metas de inflação ainda não foi suficiente para apagar a memória inflacionária. A afirmação é do diretor de Política Econômica do Banco Central (BC), Mário Mesquita, admitindo que será necessário “mais um par de anos de inflação baixa e estável para que tais práticas caiam em desuso”.

O GLOBO: Depois de uma década usando o regime de metas de inflação, o senhor considera que a memória da inflação foi totalmente apagada?

MÁRIO MESQUITA: Creio que a memória inflacionária certamente diminuiu. A nova geração de brasileiros, nascida desde 1994, não viveu o período de hiperinflação, o que ajuda a sociedade a superar estas incômodas lembranças. Mas a memória inflacionária não foi apagada por completo, em que pese o sucesso do regime de metas para a inflação. A evidência é a persistência de práticas de indexação na economia, como os contratos de aluguel e dos preços de alguns serviços. Aparentemente, serão necessários mais alguns anos de inflação baixa e estável para que tais práticas caiam em desuso.

O regime já está maduro o suficiente ou ainda precisa de aperfeiçoamentos?

MESQUITA: As políticas públicas sempre podem ser aperfeiçoadas. Dito isso, é importante ressaltar que o regime, em seu formato atual, tem sido bem sucedido mesmo em condições nem sempre favoráveis. O modelo atual enfrentou a crise de energia, o estouro da bolha da internet, o choque de commodities e o pânico financeiro de 2008. O desempenho da economia na última década sugere que o desenho básico do regime de metas para a inflação se mostrou adequado.

Eu veria com muita cautela sugestões de mudança que fragilizassem o compromisso com o controle da inflação ou reduzissem a transparência do regime. Como faço parte de um colegiado que tem a incumbência de cumprir as metas estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), não me cabe tecer comentários específicos sobre alterações no arcabouço do regime.

O economista Sérgio Werlang, considerado o pai do regime de metas, defende a volta das reuniões mensais do Copom. O que o senhor acha disso?

MESQUITA: Não acho que seja necessário retornar à frequência mensal de reuniões. O Copom leva em conta a defasagem dos efeitos da política monetária sobre a economia, inclusive no que se refere ao espaço entre reuniões. Não me parece que os resultados da política monetária seriam significativamente diferentes caso as reuniões fossem mensais. Concordo que a transparência é elemento central do regime de metas, e temos avançado nesta linha.

Maria Rita com Quinteto em Branco e Preto - "Num Corpo Só"

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