O Globo
A repórter Cláudia Collucci contou o caso de
Martha Treco, uma senhora de 102 anos que paga R$ 9.300 por mês à Unimed e
recebeu um aviso de que seu plano de saúde foi cancelado. Grotesco, o episódio
foi contornado, mas serve para mostrar a bagunça que vigora nesse mercado,
prejudicando dezenas de milhares de pessoas. Vale recapitulá-lo:
A senhora é freguesa da Unimed desde 2009 e,
no dia 28 de março, recebeu uma carta informando que “apesar de todos os nossos
esforços para a manutenção da sua permanência”, o plano “será cancelado a
partir de 1º de maio de 2024.”
Seu filho procurou a empresa e foi informado de que a Unimed estava no direito de cancelar o contrato. Como a Unimed disse numa nota, a empresa cumpre rigorosamente as leis e as normas da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Essa é a verdade, amparada pela ANS. Se uma senhora de 102 anos paga um plano coletivo ou de adesão desde 2009, ela pode ser cancelada, ponto. Não há nada a negociar, nem se oferecem alternativas. Como se chegou às leis e normas que geram situações como essa, é outra história.
Quando a família da senhora procurou a
imprensa, o jogo virou. As leis e normas da ANS foram às favas e a Unimed
telefonou avisando que o plano de saúde da senhora será mantido. Se a repórter
não tivesse contado o caso, ele iria para baixo do tapete. Lá está boa parte
das 3.848 reclamações contra planos de saúde apresentadas no ano passado à ANS.
Num só escritório de advocacia de São Paulo, nos três primeiros meses do ano,
os litígios com planos passaram de 42 em 2023, para 119. Pudera, outra
operadora, a Hapvida, já foi apanhada desrespeitando até mesmo liminares da
Justiça.
O mercado de operadoras de saúde privadas
está povoado por coitadinhos profissionais. Somando má administração com
excesso de confiança, a gigante americana United Health foi-se embora do
Brasil, reclamando. Do mercado, vem a queixa de que de 2021 a setembro do ano
passado, o setor teve um prejuízo operacional de R$ 18 bilhões e isso resultará
num enxugamento dos serviços. Tudo bem, mas em 2020, as operadoras lucraram R$
18,7 bilhões. Além disso, a Agência Nacional de Saúde informa que em 2023, 74%
das empresas (705 operadoras) tiveram um lucro líquido de R$ 2,9 bilhões.
Quem ficou no prejuízo deveria pesquisar a
gestão da empresa em vez de reclamar, para tungar a clientela. Além disso, todo
o setor padece da ausência adequada de controles de custos, confiando em fontes
de advocacia auricular na ANS, no Congresso e nos escurinhos de Brasília.
Quando a Unimed informa que cancelou o plano
da senhora de 102 anos respeitando as leis, é porque essas leis (e as normas)
são escritas para ferrar a freguesia.
A fundação de Curitiba
Seis anos depois de sua exposição, o
escalafobético acordo da Petrobras com o Ministério Público de Curitiba voltou
para a vitrine, empacotado numa decisão do corregedor Luis Felipe Salomão. Ele
ressuscitou a questão, decidindo afastar a juíza Gabriela Hardt da Vara Federal
de Curitiba, que ratificou o acerto. O Conselho Nacional de Justiça, contudo,
revogou a decisão.
O passado pode ser incerto, mas é sempre o
mesmo. Em setembro de 2018, um primeiro acordo, assinado pela Petrobras com o
Departamento de Justiça americano, estabeleceu que o equivalente a R$ 2,5
bilhões seriam passados a “autoridades brasileiras”. Essa expressão é usada
duas vezes, e o texto não especifica que “autoridades” são essas. Os diretores
de hospitais e de serviços funerários também são “autoridades”.
Poucos meses depois, em janeiro de 2019, 12
procuradores de Curitiba assinaram outro acordo com a Petrobras e transferiram
o ervanário para uma conta da Caixa Econômica Federal de Curitiba, em nome do
Ministério Público Federal. Ninguém se perguntou por que o dinheiro foi parar
lá, e não para a Bolsa da Viúva, no Tesouro Nacional. A juíza Hardt homologou
esse acerto e, em depoimento, disse que decidiu depois de uma mensagem “muito
eventual”, dada a urgência da questão.
Luis Felipe Salomão viu gatos nessa tuba.
Além disso, expôs a “gestão caótica” das finanças da todo-poderosa Vara de
Curitiba. Caberá ao STF e ao CNJ dizer quanto havia de método naquele caos.
A migração dos R$ 2,5 bilhões tramitou numa
papelada protegida pelo mais alto grau de sigilo. A juíza Hardt homologou a
migração esquecendo-se de consultar ou mesmo avisar aos outros agentes
públicos. Isso num caos onde pelo menos uma ação caducou porque o advogado da
parte interessada perdeu um prazo.
O ervanário cairia no cofre de uma fundação
que poderia ser dirigida por um procurador aposentado. Exposta, a manobra
morreu no Supremo Tribunal Federal. Lá, o ministro Alexandre de Moraes condenou
sua moralidade.
A fundação de Curitiba teve outra
particularidade. Enquanto tramitou, esteve protegida pelo sigilo. Depois que
foi exposta à luz do sol, ficou sem pai, mãe ou defensores.
Para o ministro Luís Roberto Barroso, a
criação da fundação foi uma “ideia ruim”. Nesse caso, foi a maior “ideia ruim”
de todos os tempos, valendo R$ 2,5 bilhões.
A bola foi e voltou, mas continua sem
explicação como e por que esse dinheiro foi parar numa conta do MP de Curitiba.
Censura sigilosa
A divulgação, nos Estados Unidos, de decisões
sigilosas do ministro Alexandre de Moraes mandando retirar mensagens das redes
sociais criou uma situação embaraçosa para a Justiça brasileira.
Algumas ordens seguiam um texto padronizado e
diziam:
“Tendo em conta a natureza confidencial
destes processos, devem ser tomadas as medidas necessárias para mantê-los (em
sigilo). Sem mais delongas, aproveito a oportunidade para renovar minhas
expressões de elevada estima e consideração”.
Faltam estima e consideração quando não se
diz por que uma mensagem deve ser cancelada.
O gabinete do ministro informou que as
decisões são fundamentadas. Se há fundamentação, nada impedia que junto com a
proibição, seu link fosse apensado ao ofício.
Durante a ditadura, os censores eram
explícitos. Em 1972, por exemplo, eles determinaram:
“Nenhuma referência, contra ou a favor de Dom
Helder Câmara.”
O sonho das contas
Desde a semana passada, quem duvidar das
previsões do Ministério da Fazenda para o equilíbrio das contas públicas não
pode mais ser acusado de bolsonarismo, vendido ao mercado ou
desmancha-prazeres.
Quem duvida dessas metas é o Fundo Monetário
Internacional.
Em geral, o FMI acredita em lorotas, desde que não se exagere.
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