domingo, 21 de abril de 2024

Elio Gaspari – A bagunça dos planos de saúde

O Globo

A repórter Cláudia Collucci contou o caso de Martha Treco, uma senhora de 102 anos que paga R$ 9.300 por mês à Unimed e recebeu um aviso de que seu plano de saúde foi cancelado. Grotesco, o episódio foi contornado, mas serve para mostrar a bagunça que vigora nesse mercado, prejudicando dezenas de milhares de pessoas. Vale recapitulá-lo:

A senhora é freguesa da Unimed desde 2009 e, no dia 28 de março, recebeu uma carta informando que “apesar de todos os nossos esforços para a manutenção da sua permanência”, o plano “será cancelado a partir de 1º de maio de 2024.”

Seu filho procurou a empresa e foi informado de que a Unimed estava no direito de cancelar o contrato. Como a Unimed disse numa nota, a empresa cumpre rigorosamente as leis e as normas da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Essa é a verdade, amparada pela ANS. Se uma senhora de 102 anos paga um plano coletivo ou de adesão desde 2009, ela pode ser cancelada, ponto. Não há nada a negociar, nem se oferecem alternativas. Como se chegou às leis e normas que geram situações como essa, é outra história.

Quando a família da senhora procurou a imprensa, o jogo virou. As leis e normas da ANS foram às favas e a Unimed telefonou avisando que o plano de saúde da senhora será mantido. Se a repórter não tivesse contado o caso, ele iria para baixo do tapete. Lá está boa parte das 3.848 reclamações contra planos de saúde apresentadas no ano passado à ANS. Num só escritório de advocacia de São Paulo, nos três primeiros meses do ano, os litígios com planos passaram de 42 em 2023, para 119. Pudera, outra operadora, a Hapvida, já foi apanhada desrespeitando até mesmo liminares da Justiça.

O mercado de operadoras de saúde privadas está povoado por coitadinhos profissionais. Somando má administração com excesso de confiança, a gigante americana United Health foi-se embora do Brasil, reclamando. Do mercado, vem a queixa de que de 2021 a setembro do ano passado, o setor teve um prejuízo operacional de R$ 18 bilhões e isso resultará num enxugamento dos serviços. Tudo bem, mas em 2020, as operadoras lucraram R$ 18,7 bilhões. Além disso, a Agência Nacional de Saúde informa que em 2023, 74% das empresas (705 operadoras) tiveram um lucro líquido de R$ 2,9 bilhões.

Quem ficou no prejuízo deveria pesquisar a gestão da empresa em vez de reclamar, para tungar a clientela. Além disso, todo o setor padece da ausência adequada de controles de custos, confiando em fontes de advocacia auricular na ANS, no Congresso e nos escurinhos de Brasília.

Quando a Unimed informa que cancelou o plano da senhora de 102 anos respeitando as leis, é porque essas leis (e as normas) são escritas para ferrar a freguesia.

A fundação de Curitiba

Seis anos depois de sua exposição, o escalafobético acordo da Petrobras com o Ministério Público de Curitiba voltou para a vitrine, empacotado numa decisão do corregedor Luis Felipe Salomão. Ele ressuscitou a questão, decidindo afastar a juíza Gabriela Hardt da Vara Federal de Curitiba, que ratificou o acerto. O Conselho Nacional de Justiça, contudo, revogou a decisão.

O passado pode ser incerto, mas é sempre o mesmo. Em setembro de 2018, um primeiro acordo, assinado pela Petrobras com o Departamento de Justiça americano, estabeleceu que o equivalente a R$ 2,5 bilhões seriam passados a “autoridades brasileiras”. Essa expressão é usada duas vezes, e o texto não especifica que “autoridades” são essas. Os diretores de hospitais e de serviços funerários também são “autoridades”.

Poucos meses depois, em janeiro de 2019, 12 procuradores de Curitiba assinaram outro acordo com a Petrobras e transferiram o ervanário para uma conta da Caixa Econômica Federal de Curitiba, em nome do Ministério Público Federal. Ninguém se perguntou por que o dinheiro foi parar lá, e não para a Bolsa da Viúva, no Tesouro Nacional. A juíza Hardt homologou esse acerto e, em depoimento, disse que decidiu depois de uma mensagem “muito eventual”, dada a urgência da questão.

Luis Felipe Salomão viu gatos nessa tuba. Além disso, expôs a “gestão caótica” das finanças da todo-poderosa Vara de Curitiba. Caberá ao STF e ao CNJ dizer quanto havia de método naquele caos.

A migração dos R$ 2,5 bilhões tramitou numa papelada protegida pelo mais alto grau de sigilo. A juíza Hardt homologou a migração esquecendo-se de consultar ou mesmo avisar aos outros agentes públicos. Isso num caos onde pelo menos uma ação caducou porque o advogado da parte interessada perdeu um prazo.

O ervanário cairia no cofre de uma fundação que poderia ser dirigida por um procurador aposentado. Exposta, a manobra morreu no Supremo Tribunal Federal. Lá, o ministro Alexandre de Moraes condenou sua moralidade.

A fundação de Curitiba teve outra particularidade. Enquanto tramitou, esteve protegida pelo sigilo. Depois que foi exposta à luz do sol, ficou sem pai, mãe ou defensores.

Para o ministro Luís Roberto Barroso, a criação da fundação foi uma “ideia ruim”. Nesse caso, foi a maior “ideia ruim” de todos os tempos, valendo R$ 2,5 bilhões.

A bola foi e voltou, mas continua sem explicação como e por que esse dinheiro foi parar numa conta do MP de Curitiba.

Censura sigilosa

A divulgação, nos Estados Unidos, de decisões sigilosas do ministro Alexandre de Moraes mandando retirar mensagens das redes sociais criou uma situação embaraçosa para a Justiça brasileira.

Algumas ordens seguiam um texto padronizado e diziam:

“Tendo em conta a natureza confidencial destes processos, devem ser tomadas as medidas necessárias para mantê-los (em sigilo). Sem mais delongas, aproveito a oportunidade para renovar minhas expressões de elevada estima e consideração”.

Faltam estima e consideração quando não se diz por que uma mensagem deve ser cancelada.

O gabinete do ministro informou que as decisões são fundamentadas. Se há fundamentação, nada impedia que junto com a proibição, seu link fosse apensado ao ofício.

Durante a ditadura, os censores eram explícitos. Em 1972, por exemplo, eles determinaram:

“Nenhuma referência, contra ou a favor de Dom Helder Câmara.”

O sonho das contas

Desde a semana passada, quem duvidar das previsões do Ministério da Fazenda para o equilíbrio das contas públicas não pode mais ser acusado de bolsonarismo, vendido ao mercado ou desmancha-prazeres.

Quem duvida dessas metas é o Fundo Monetário Internacional.

Em geral, o FMI acredita em lorotas, desde que não se exagere.

Nenhum comentário: