Sergio Lamucci
SÃO PAULO - A política monetária no mundo passa por grandes mudanças e questionamentos, num cenário em que há restrições para a política fiscal estimular a economia e o crescimento dos países desenvolvidos não decola. Adotado hoje pelo Brasil e por outros 26 países, o regime de metas de inflação, tido antes da crise por muitos analistas como o melhor sistema para a condução da política monetária, tem sido alvo de críticas.
O sistema chega a ser apontado como um dos culpados pela eclosão da crise global em 2007 e 2008, por induzir a um foco exclusivo no comportamento dos preços ao consumidor, o que teria permitido a formação de bolhas de ativos, como dos preços de imóveis.
Nesse quadro, começa a ganhar algum destaque a ideia de se adotar metas para o Produto Interno Bruto (PIB) nominal, mas a discussão está longe de um consenso. Para alguns analistas, mirar o PIB nominal (o valor em moeda corrente de tudo o que se produz) seria apenas uma opção de emergência, quando a economia está em situação crítica.
Esses debates têm como pano de fundo um cenário em que ocorrem mudanças importantes na forma de atuação dos bancos centrais dos países desenvolvidos, diz o ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga. "O Fed [Federal Reserve, banco central americano] tem sido um líder nesse processo, com uma atuação agressiva e criativa", afirma Arminio, sócio da Gávea Investimentos.
Em dezembro, o Fed anunciou que as taxas ficarão em níveis excepcionalmente baixos enquanto o desemprego não cair abaixo de 6,5%, e a inflação projetada para o médio prazo não superar 2,5%, explicitando parâmetros que vão condicionar sua atuação. Além disso, as injeções de dinheiro no mercado pelo BC americano somam US$ 85 bilhões por mês, entre compras de papéis lastreados em hipotecas e títulos de longo prazo.
No Japão, o sisudo banco central do país cedeu às pressões do novo primeiro-ministro do país, Shinzo Abe, e elevou a meta de inflação de longo prazo de 1% para 2%, além de ter prorrogado o programa de títulos de curto prazo por tempo indefinido.
Para Arminio, essas são "respostas à grande crise que ainda vivemos". É uma situação de emergência, em que os juros nos países desenvolvidos já estão no chão e há amarras para usar novos estímulos fiscais. Seria precipitado, com isso, apostar em mudanças definitivas na maneira como se conduz a política monetária no mundo, diz Arminio, para quem o desmonte das medidas mais ousadas adotadas hoje pelos BCs poderá ser mais complexo do que se imagina.
Professor da Universidade de Harvard (EUA) e ex-membro do Conselho de Assessores Econômicos do então presidente Bill Clinton, Jeffrey Frankel escreveu no ano passado um bem humorado "obituário" do regime de metas de inflação, e tem defendido a adoção de metas para o PIB nominal.
Em entrevista ao Valor, Frankel disse que o sistema de metas de inflação foi útil por um período, principalmente para alguns mercados emergentes como o Brasil, ao estabilizar as expectativas de inflação, mesmo depois das crises do fim dos anos 90, que forçaram vários países a abandonar as suas âncoras cambiais, como fez o Brasil em janeiro de 1999.
"Talvez o regime não tenha produzido nenhum grande dano até 2008, quando uma alta dos preços de petróleo levou alguns bancos centrais que adotavam metas de inflação a elevar os juros, num momento em que a recessão global se aproximava", afirma ele. "Mesmo antes disso, pode ser atribuída alguma responsabilidade ao sistema pela bolha anterior, por encorajar as autoridades monetárias a não prestar atenção à forte alta dos preços de ativos."
Arminio combate a ideia de que o regime de metas foi um dos culpados pela mais recente crise global. Para ele, alguns bancos centrais "comeram mosca" na questão da supervisão, mas o problema não se deveu às características do regime de metas. É perfeitamente possível, segundo Arminio, conciliar o sistema com uma supervisão mais rigorosa, em que haja preocupações prudenciais adequadas. Para ele, o regime vai continuar a existir nos próximos anos. Tem a simplicidade como um trunfo importante, baseando-se numa meta transparente, para a qual os BC tentam fazer a inflação convergir.
No entanto, num quadro de estagnação econômica e desemprego elevado, a definição de metas para o PIB nominal tem ganhado apoios. O presidente do BC do Canadá, Mark Carney, escolhido para comandar o BC do Reino Unido a partir de julho, disse em dezembro que, em certas circunstâncias, em que mais estímulos à economia sejam necessários, as autoridades poderiam passar a mirar o PIB nominal. O Reino Unido segue o regime de metas de inflação.
Ao propor a adoção pelo Fed de metas para o PIB nominal num artigo publicado no fim de 2011, a economista Christina Romer explicou o sistema de modo didático. Ex-chefe do Conselho de Assessores Econômicos do presidente Barack Obama e professora da Universidade da Califórnia, em Berkeley, Christina diz que "o PIB nominal é apenas o termo técnico para o valor em dólares de tudo o que produzimos. É o produto total (o PIB real) multiplicado pelos preços correntes". Para os EUA, uma meta razoável seria algo como 4,5%, considerando 2,5% como um crescimento "normal" para a economia americana e 2% para a inflação, o nível que o Fed considera apropriado para o longo prazo.
Segundo a proposta de Christina, o Fed tomaria como base um ano em que a economia teve desempenho normal, como 2007, e diria que o PIB nominal deveria ter crescido 4,5% ao ano desde então, ritmo que continuaria a ser perseguido nos anos seguintes. "Por causa da recessão e da inflação muito baixa de 2009 e 2010, o PIB nominal está hoje [no fim de 2011, data do artigo] 10% abaixo daquela trajetória. Ao adotar meta para o PIB nominal, o Fed se compromete a eliminar esse intervalo." Essa mudança ajudaria a melhorar a confiança e as expectativas de consumidores e empresários, levando-os a gastar mais no presente.
Frankel diz que as metas para o PIB nominal são mais adequadas para enfrentar choques de oferta ou nos termos de troca (a relação entre preços de exportação e de importação). Se tivesse um alvo para o PIB nominal, o Banco Central Europeu (BCE) poderia ter evitado o erro cometido em julho de 2008, quando elevou os juros para combater o efeito da alta do petróleo sobre os preços ao consumidor, embora a economia caminhasse para a recessão, diz Frankel, em artigo publicado em dezembro. Para ele, o sistema poderia ter ajudado a impedir que o Fed mantivesse uma política monetária excessivamente frouxa entre 2004 e 2006, quando o PIB nominal cresceu mais de 6%, ainda que a inflação estivesse comportada.
Arminio não mostra simpatia pelo regime. "Não é sustentável no longo prazo." Um risco existente é o de que, num momento em que o PIB nominal crescer com força, a uma taxa superior à meta definida para esse indicador, o BC pode ser levado a que apertar a política monetária, mesmo se houver uma combinação saudável de crescimento forte e inflação baixa.
Para Carlos Viana de Carvalho, professor da PUC-Rio e sócio da Kyros Investimentos, essa ideia só faz sentido como resposta a situações muito difíceis, como em 2009, quando havia risco de depressão em virtude da deterioração da crise provocada pela quebra do Lehman Brothers, no ano anterior. Carvalho, ex-economista-sênior do Fed de Nova York, nota ainda que podem surgir problemas por causa da dificuldade em definir o crescimento potencial da economia (que não provoca pressões inflacionárias). Se o PIB potencial for superestimado, o BC pode passar a tolerar uma inflação mais alta do que seria desejável para chegar ao alvo para o PIB nominal.
No caso do Brasil, Arminio e Carvalho consideram que o regime de metas de inflação continua a ser o mais adequado. O país, por exemplo, não enfrenta uma situação delicada, como as economias desenvolvidas.
Ao analisar a política monetária brasileira recente, Arminio diz que o BC brasileiro acertou ao começar a reduzir os juros em agosto de 2011, quando antecipou o agravamento da crise europeia. Para ele, contudo, as ações do BC passaram a fazer menos sentido quando ficou claro que a economia se aproximava do pleno emprego com inflação ainda alta.
Arminio diz que o incomoda o fato de as projeções para o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), tanto dos analistas quanto as embutidas em títulos públicos corrigidos pelo indicador, apontarem inflação bem acima do centro da meta, de 4,5%, "meta que já era um pouco alta". Isso tudo é ruim num país com um histórico de inflação elevada e indexação, afirma o ex-presidente do BC.
Fonte: Valor Econômico