No círculo midiático de hoje, a reflexão e a assunção sopesada de convicções individuais, bem como o silêncio e a solidão, cederam passo a uma saraivada contínua de comunicações. Reage-se a esta prevalência do virtual de forma passiva ou com manifestações apressadas de cunho emocional. Neste mundo de inter-relações imediatas, vive-se com a mídia e pela mídia, segundo Manuel Castells, para quem, com as redes sociais se instala uma virtualidade real.
"Todos são iguais perante o Facebook", eis o novo direito fundamental. Diversos enredados na rede social expõem a si próprios e cada qual passa a ter acesso ao mundo do outro. Se a televisão, o principal meio de comunicação em nosso país, está presente em todos os instantes, a criar, de um lado, o monólogo e, de outro, a audiência preguiçosa, com as crescentes redes sociais se torna viável que o enredado possa manifestar-se sem a preocupação de ser razoável.
Esse fenômeno carrega contraposições.
A primeira, relativa à minimização do valor da intimidade e da vida privada, um dos direitos da personalidade consagrados nas modernas Constituições democráticas, mas violado pelo descaso com que muitos dos enredados tratam sua própria área de exclusividade, em compulsão pelo compartilhamento de cada instante de sua vida.
No inciso X do artigo 5.º da Constituição federal, no capítulo Dos Direitos e Garantias Fundamentais, consagra-se que "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra, a imagem das pessoas (...)". O direito à privacidade constitui atributo da personalidade, requisito essencial à realização da pessoa humana, instaurando a expectativa de respeito à própria singularidade. A Constituição distingue entre intimidade e vida privada, estabelecendo dois campos: um de grande reserva e interioridade, ligada às próprias convicções e expressões de pensamento, bem como relativamente ao que se passa entre quatro paredes; outro, menos restrito, relativo à vida doméstica, aos hábitos cotidianos, acessível a pessoas próximas nas quais se confia.
Para Hannah Arendt, há uma zona de exclusividade onde sem cuidados se desenvolve a própria existência, definida por Judith Martins Costa como a especial esfera da vida em relação à qual é garantida a imunidade ao próprio modo de ser da pessoa, defesa a interferência alheia, pois é o locus, material e espiritual, em que cada qual fixa sua singularidade, seus gostos particulares a serem usufruídos reservadamente. Há uma diferença no grau de intensidade de exclusividade: a intimidade diz respeito ao modo de ser singular que cada qual tem no campo nuclear de sua existência, aos dados de foro o mais restrito, enquanto a vida privada diz respeito a formas de pensar e agir a serem sabidas apenas por poucos.
Vê-se agora, todavia, que a inserção numa rede social faz muitos dos fisgados desprezarem os limites quer da vida privada, de acesso limitado aos mais chegados, quer também do próprio núcleo mais fechado da vida íntima, como se viver só tivesse sentido ao se compartilhar e socializar com muitos outros, pela rede, todas as sensações e vivências, devendo-se divulgar aos demais todos os acontecimentos da existência. De um lado, franqueia-se a intimidade, de outro, instala-se um "voyeurismo" compulsivo: deixar-se ver e ver os outros.
A segunda contraposição decorre de ser o internauta alvo de comunicações em série, mas ao mesmo tempo ter a possibilidade de se manifestar livremente, sobre tudo e sobre todos, jorrando, sem compromisso, opiniões que vão do elogio apaixonado à agressividade desmedida, em aplauso ou crítica ao comportamento de alguém ou de algum grupo de pessoas.
A liberdade de manifestação de pensamento constitui gênero de primeira necessidade na vida democrática, condição essencial de desenvolvimento dos cidadãos, pois areja, alimenta a multiplicidade de opiniões, garante a difusão de pensamentos e a participação pelo conhecimento e pela crítica dos fatos. A amplitude da liberdade de manifestação, estatuída no artigo 220 da Constituição, exige, todavia, a observância da composição com outros valores, em especial a dignidade sexual, a honra e a vida privada, a não discriminação. Veem-se, contudo, em comentários de internautas, novatos no exercício da liberdade de pensamento, excessos, com violação da honra alheia, de sua intimidade ou incitando o ódio e a discriminação das mais variadas espécies. Só o tempo consertará tais exageros.
Por fim, a última contraposição surge da ilusão de que a plena possibilidade de manifestação de pensamento iguale o valor das diversas perspectivas. Não se deve, porém, confundir o direito de se exprimir com atribuir a mesma validade às diversas visões manifestadas, em inaceitável relativismo. A pessoa humana, enquanto titular dos direitos de não ser discriminada, de manter a integridade física e psíquica, de não ter violada sua honra ou intimidade, de exercer liberdade religiosa, constitui valor conquistado arduamente no processo histórico do Ocidente, a prevalecer como fonte nuclear de outros direitos fundamentais.
A maior intensidade valorativa da dignidade da pessoa humana não impede que se garanta a liberdade de opinar contra a liberdade religiosa, ou de imprensa, ou em favor do comandante Schettino (do Costa Concordia). O vertiginoso crescimento dos meios de manifestação, no entanto, traz o risco do relativismo que iguala o diferente e nega a prevalência de valores essenciais obtidos ao longo da História. A multiplicidade de opiniões exigiria avaliá-las criteriosamente e não dar a todas o mesmo peso.
Cabe, ao final, realçar: essas perplexidades não retiram os benefícios propiciados pelas redes sociais por aproximar pessoas e ventilar questões de interesse geral. Mas fica sempre o desafio de entender os valores dominantes nestes tempos de urgência, de exposição e interação contínuas.
FONTE: O ESTADO DE S. PAULO