- O Estado de S.Paulo
Berlinguer, morto há 35 anos, continua a ser uma referência e merece ser lembrado
Em 11 de junho de 1984 morria Enrico Berlinguer, aos 62 anos, secretário-geral do Partido Comunista Italiano (PCI) por mais de uma década. Por que recordar agora esse fato ocorrido há 35 anos, referente a um político que poucos brasileiros conhecem, líder de um partido que já não mais existe, ligado a uma história que, para o bem e para o mal, parece enterrada no passado?
Recordo sua morte porque Berlinguer, num período crítico para a Europa e para o seu país, deu mostras de virtudes que hoje nos fazem tanta falta, num mundo com impulsos retrógrados e sem lideranças à altura dos desafios que enfrenta: coragem política, capacidade de unir teoria e prática na revisão crítica de dogmas estabelecidos e senso de responsabilidade histórica.
Sob sua liderança produziu-se o afastamento e, finalmente, a ruptura do PCI com a União Soviética, quando esta ainda não dava sinais exteriores de declínio. É difícil para as novas gerações aquilatarem a coragem necessária para, ainda em meio à guerra fria, afrouxar e depois romper laços tangíveis e intangíveis com aquela que foi a pátria-mãe do socialismo realmente existente. Berlinguer liderou esse processo com extraordinárias determinação e habilidade. É verdade que se beneficiou do legado de Palmiro Togliatti, dirigente histórico do PCI, que desde os anos 50 sustentava, nas pegadas de Gramsci, a via italiana para o socialismo, cada vez mais distante do modelo bolchevique. Mas foi Berlinguer quem pegou o urso à unha.
É válida a crítica de que o PCI, o maior partido comunista do Ocidente, demorou a romper com a União Soviética. Embora o afastamento se tenha iniciado ainda no final da década de 60, quando Berlinguer ainda não era secretário-geral, a ruptura só se consumou no começo da década de 80, quase 30 anos depois da revelação dos crimes do stalinismo e 13 após a supressão da Primavera de Praga em 1968, quando pela primeira vez o partido veio a público para criticar a União Soviética. Divórcio, mesmo, só depois que Moscou impôs decretação de lei marcial na Polônia em 1981.
Sob a liderança de Berlinguer, porém, a partir de 1972 o PCI acelerou o passo da mudança. Avançou no aggiornamento dos seus referenciais teóricos e ideológicos, em particular na valorização da democracia representativa como bem comum a ser preservado e aprimorado, em contraste cada vez mais nítido com a visão marxista-leninista de que a democracia seria mero instrumento para chegar ao socialismo pela via revolucionária. Ao mesmo tempo, ganhou terreno eleitoral alcançando mais de 30% dos votos nas eleições locais e parlamentares na primeira metade dos anos 70 e elegeu prefeitos em grandes cidades, como Bologna, nas quais se mostrou capaz de governar.
A atualização teórica e ideológica do PCI gerou efeitos positivos além das fronteiras italianas, contribuindo, por exemplo, para que o Partido Comunista Espanhol desempenhasse papel construtivo na transição democrática naquele país. Contribuiu, também, na revisão crítica que a esquerda chilena fez da desastrosa experiência do governo Allende, passo importante para o sucesso dos governos da Concertación anos depois. No Brasil, o aggiornamento liderado por Berlinguer impulsionou os setores democráticos e intelectualmente mais abertos e lúcidos do PCB. Contudo, seus efeitos sob a esquerda em geral foram mais limitados, por razões que escapam aos limites deste artigo.
Além da revisão crítica do marxismo-leninismo e da ruptura com a União Soviética, Berlinguer deixou sua marca na história do século 20 pela defesa do chamado “compromisso histórico” com a Democracia Cristã. O secretário-geral do PCI convenceu seu partido a propor o compromisso em meio à mais grave crise vivida pela Itália. Temia que o antagonismo entre a esquerda e os democratas-cristãos pudesse resultar em sacrifício da democracia, à semelhança do que ocorrera no Chile.