(Texto apresentado ao 19º Congresso da SBS)
Não é a primeira vez que temos a desventura de nos encontrar numa situação como esta que aí está. Com o Estado Novo de 1937 que se prolonga até 1945 tem início este ciclo infernal, que, com interrupções provocadas por movimentos democráticos – embora mesmo nesses momentos tenha permanecido de modo latente na vida institucional e política como se manifestou na tentativa do golpe militar para impedir a posse do presidente eleito JK. Inaugura-se outro ciclo com a intervenção militar de 1964, especialmente após a imposição do AI-5, em 1968, que derrogou o que havia de democrático na Carta de 1946. Mais uma vez por força da resistência da sociedade, em 1985 a democracia ganhou nova oportunidade, apesar de sua volta não ter importado ruptura com o regime autocrático que até então vigia sob a institucionalidade do AI-5. Como se sabe, o caminho adotado foi o da transição política que abriu caminho para uma assembleia nacional constituinte, restaurando-se as liberdades civis e públicas que o regime anterior tinha expurgado da política.
A Carta de 1988 teve a pretensão de sepultar as possibilidades de retorno do autoritarismo político afirmando uma forte adesão ao liberalismo e ao sistema da representação, e robustecendo de modo inédito o poder judicial por meio de novos institutos como o mandato de injunção, e com a recriação do papel do Ministério Público que será deslocado do eixo estatal, conforme antiga tradição, para o da sociedade civil, a quem foi confiado, entre outras, a missão de defesa da ordem jurídica e do regime democrático, figura inexistente no direito comparado
Com a ressalva do PT, já um importante partido, influente no sindicalismo e com a auréola portada por seus dirigentes de ter conduzido greves vitoriosas no regime militar, a nova Carta encontrou recepção positiva na sociedade. Estava aberta uma via real para a internalização da democracia política entre nós. As instituições eram propícias e o cenário internacional favorável, faltava a ação humana capaz de portar uma política que soubesse se aproveitar dos bons ventos da fortuna que a tinham levado a seus êxitos contra o regime militar. Vargas Llosa, nas primeiras páginas de Conversa na Catedral, clássico da literatura latino-americana, indaga, amargando a história do seu país, o Peru, quando foi que ele se ha hodido. No nosso caso talvez resposta a uma questão desse tipo esteja no momento em que se abre a conjuntura da primeira sucessão presidencial do novo regime democrático institucionalizado com a Carta de 88. Aqui o que faltou não foi a fortuna, que nos sorria, mas o ator que, com suas ações desastradas malbaratou as oportunidades de que dispunha.
Findo o governo de transição, que foi o de Sarney, estava aberta a primeira sucessão presidencial sob a égide da nova Constituição. É aí, nesse momento de importância capital que os atores políticos abandonam suas práticas de alianças tão bem-sucedidas na hora da resistência ao regime militar e dos trabalhos constituintes, particularmente entre a esquerda e os liberais, e passam a procurar caminhos solitários. Vale lembrar que o hoje extinto PCB apresentou à sucessão uma candidatura própria, refugando apoio à candidatura de Ulisses Guimarães, a maior liderança surgida nas lutas pela democratização do país, comportamento que se reiterou no PT. Selou-se, então, a fratura entre o campo do social e das forças políticas liberais, fatal para o transcurso do processo que se segue.