Juan Carlos Portantiero
Tradução: Josimar Teixeira
Fonte: Gramsci e o Brasil
“O caráter fundamental do Príncipe é o de não ser um tratado sistemático, mas um livro ‘vivo’, no qual a ideologia política e a ciência política fundem-se na forma dramática do ‘mito’” [1].
Assim começam as Breves notas sobre a política de Maquiavel, que Antonio Gramsci escreve no cárcere entre 1932 e 1934 e que constituem o essencial das suas reflexões sobre Maquiavel.
Algum tempo antes, em março de 1927, pouco depois do seu encarceramento pela ditadura mussoliniana, Gramsci detalhava numa carta sua vontade de encetar uma série de estudos für ewig, “para sempre”, que pudessem absorver e centralizar sua vida intelectual diante do desgaste moral que implicava a longa condenação pedida pelos promotores fascistas. Este plano, que nutre os 33 cadernos que redigiria na prisão, incluía um estudo sobre a função cosmopolita dos intelectuais italianos, de que a análise da figura de Maquiavel constituiria um capítulo central. Gramsci leria Maquiavel com olhos de político, não de acadêmico; com os olhos de quem é o fundador de um partido que assume tarefas de transformação revolucionária da sociedade e quer ser protagonista da fundação de um novo Estado. Por isso, o Maquiavel gramsciano será, sobretudo, o de O príncipe e de A arte da guerra, não o pensador republicano dos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, marcando uma cisão que significaria — segundo Gramsci — “uma dissidência trágica” em Maquiavel, que não pode se separar do ideal republicano, mas, ao mesmo tempo, compreende que só a monarquia absoluta pode resolver os problemas da sua época: a fundação de um Estado numa sociedade corrompida.
O príncipe, o que interessa a Gramsci dentro do marco de reflexão que escolheu? A explicação do fracasso na constituição do Estado nacional italiano por causa daquilo que qualifica como “o caráter cosmopolita dos intelectuais” e da função universal (e, portanto, não nacional) que o papado vai cumprir neste processo histórico. Assim assinala nos Cadernos: “A razão dos sucessivos fracassos das tentativas de criar uma vontade coletiva
nacional-popular deve ser procurada na existência de determinados grupos sociais que se formam a partir da dissolução da burguesia comunal, no caráter particular de outros grupos que refletem a função internacional da Itália como sede da Igreja e depositária do Sacro Império Romano, etc. Esta função e a consequente posição determinam uma situação interna que pode ser chamada de
‘econômico-corporativa’, isto é, no plano político, a pior das formas de sociedade feudal, a forma menos progressista e mais estacionária: nunca se formou, e não poderia formar-se, uma força jacobina eficiente, precisamente aquela força que, nas outras nações, criou e organizou a vontade coletiva nacional-popular e fundou os Estados modernos”.
O fracasso do Maquiavel de O príncipe, o fato de que suas prescrições não encontraram um chefe capaz de realizá-las foi o que levou ao atraso secular da constituição do Estado nacional italiano. Já o jovem Hegel, o primeiro grande apologista do pensador florentino, tinha visto Maquiavel como “[...] uma séria cabeça política no sentido maior e mais nobre”, capaz de formular uma solução para o mesmo problema de fragmentação que sofria então a Alemanha. “Na época da sua desgraça — escreve —, quando a Itália se precipitou na sua miséria [...], um homem de Estado italiano, profundamente comovido por esta situação de miséria geral, de ódio, de desordem, de cegueira, concebeu com fria serenidade a necessária ideia de salvar a Itália mediante sua unificação num Estado [...]” [2].
Essa ideia da fundação de um novo Estado é a que Gramsci recolhe das prescrições de Maquiavel; por isso, sua preocupação quase exclusiva com O príncipe como expoente do que chama de “as questões de grande política: criação de novos Estados, conservação e defesa de estruturas orgânicas em seu conjunto; questões de ditadura e de hegemonia em ampla escala, isto é, em toda a área estatal”. Mas esta preferência pelos temas de O príncipe não coloca este texto, na opinião de Gramsci, em contraposição absoluta aos Discursos: concordando com um comentarista de Maquiavel, Luigi Russo, o qual assinala que O príncipe é o tratado da ditadura (momento da autoridade e do indivíduo), e os Discursos, o da hegemonia (momento do universal e da liberdade), Gramsci escreve: “A observação de Russo é exata, embora também no Príncipe não faltem referências ao momento da hegemonia ou do consenso, ao lado daquele da autoridade ou da força. Assim, é justa a observação de que não há oposição de princípio entre principado e república, mas se trata sobretudo da hipóstase dos dois momentos de autoridade e universalidade”.
Então, o que interessa a Gramsci é O príncipe como “livro vivo” no qual ideologia e ciência se fundem na forma do mito. Para Gramsci (como para Sorel, em quem se inspirava para fazer estas considerações), a possibilidade de transformar um pensamento sobre a política em ação política decorria da capacidade de constituir uma ideologia-mito, “uma ideologia política que se apresenta não como fria utopia nem como raciocínio doutrinário, mas como uma criação da fantasia concreta que atua sobre um povo disperso e pulverizado para despertar e organizar sua vontade coletiva”.
Por isso, O príncipe é um “manifesto político”, o que se revelaria claramente no seu dramático e retórico epílogo, exortando a se apoderar da Itália e a libertá-la dos bárbaros. O príncipe não era uma realidade histórica, mas sim uma abstração doutrinária, “o símbolo do líder, do condottiero ideal”, que quer conduzir seu povo para a fundação de um novo Estado. Mas, nas condições modernas, qual deveria ser o caráter do príncipe? Responder a esta pergunta significa, para Gramsci, recuperar para seu presente as preocupações de Maquiavel e adaptá-las a outra realidade. O Príncipe moderno já não pode ser uma pessoa concreta, mas um elemento de uma sociedade complexa no qual comece a concretizar-se uma vontade coletiva. Este organismo é o partido político, “a primeira célula na qual se sintetizam germes de vontade coletiva que tendem a se tornar universais e totais [...]”.
A função do partido político, do
Príncipe moderno, será então a de germe de uma nova vontade coletiva nacional-popular, além de organizador de uma reforma intelectual e moral capaz de gerar uma nova concepção do mundo. Neste sentido, o precedente de Maquiavel, para Gramsci, é decisivo: tanto O príncipe, como personagem, quanto os jacobinos de séculos depois (sua “encarnação categórica”) tentaram expressar ambas as dimensões, ainda que fracassassem em seu tempo. “Qualquer formação de uma vontade coletiva nacional-popular é impossível se as grandes massas dos camponeses cultivadores não irrompem simultaneamente na vida política. Isso é o que Maquiavel pretendia através da reforma da milícia, isso é o que os jacobinos fizeram na Revolução Francesa [...]”.
Para Gramsci, como assinalei, O príncipe é um manifesto de partido e não um tratado de teoria política, de modo que não valem para sua análise “interpretações moralistas”. Maquiavel funda a autonomia da política, com princípios e leis diferentes da religião e da moral, e este é um ponto fundamental porque inova toda a concepção de mundo. Portanto, não se pode julgar a política a partir das categorias da moral, sobretudo de uma moral influenciada decisivamente pela religião: a política deve gerar seus próprios códigos e, por isso, os processos fundacionais implicam uma reforma intelectual e moral. Num amplo parágrafo dos Cadernos, Gramsci reflete sobre estas relações: “Um conflito é ‘imoral’ quando torna o fim mais distante ou não cria condições que tornem o fim mais próximo (ou seja, não cria meios mais adequados à conquista do fim), mas não é ‘imoral’ de outros pontos de vista ‘moralistas’. Desse modo, não se pode julgar o político por ser ele honesto ou não, mas por cumprir ou não seus compromissos (e neste cumprimento pode estar compreendido ‘ser honesto’, isto é, ser honesto pode ser um fator político necessário, e em geral o é, mas o juízo é político e não moral). Ele é julgado não pelo fato de atuar com equidade, mas pelo fato de obter ou não resultados positivos, ou evitar um resultado negativo, e nisto pode ser necessário ‘atuar com equidade’, mas como meio político e não como juízo moral”.
Neste plano, a linha de recuperação que Gramsci faz de Maquiavel é conhecida. Mas o que o primeiro se propõe é o problema dos fins que o segundo se propunha, ao escrever O príncipe.
Para Benedetto Croce, sendo o maquiavelismo uma ciência, serve tanto para reacionários quanto para democratas, assim como a arte da esgrima serve aos senhores e aos bandidos tanto para se defenderem quanto para assassinarem. Suas regras implicariam técnicas eticamente neutras.
Mas a pergunta gramsciana vai mais além: a quem Maquiavel sugere o uso destas regras? E responde que Maquiavel tem em vista não aqueles grupos e pessoas que “já sabem”, mas os que “não sabem”: “a classe revolucionária da época, o ‘povo’ e a ‘nação’ italiana, a democracia urbana”. E acrescenta: “Pode-se supor que Maquiavel pretenda convencer estas forças da necessidade de ter um ‘líder’ que saiba o que quer e como obter quer, e de aceitá-lo com entusiasmo, ainda que suas ações possam estar ou parecer estar em contradição com a ideologia difusa da época, a religião”.
Maquiavel, como homem do seu tempo, desenvolve uma filosofia que tende à organização das monarquias nacionais absolutas como forma política que facilite um desenvolvimento ulterior da burguesia. “O Príncipe — diz Gramsci — deve pôr fim à anarquia feudal, [...] apoiando-se nas classes produtoras, comerciantes e camponeses”. E acrescenta: “se as classes urbanas pretendem pôr fim à desordem interna e à anarquia externa, devem apoiar-se nos camponeses como massa [...]”. Este jacobinismo avant la lettre do escritor florentino expressar-se-ia, segundo Gramsci, na vinculação teórica que une A arte da guerra ao Príncipe: a ênfase na superioridade dos exércitos de camponeses mobilizados como milícia sobre as companhias de mercenários. E conclui Gramsci: “Pode-se dizer que a concepção essencialmente política é de tal forma dominante em Maquiavel que o leva a cometer erros de caráter militar: ele pensa especialmente na infantaria, cujas massas podem ser recrutadas com uma ação política e, por isso, desconhece o significado da artilharia”.
Por fim, na inspiração de Maquiavel sobre Gramsci restam duas linhas significativas. Uma, a que se refere à “dupla perspectiva” na ação política, “correspondente à natureza dúplice do Centauro maquiavélico, ferina e humana, da força e do consenso, da autoridade e da hegemonia, da violência e da civilidade, do momento individual e daquele universal (da ‘Igreja’ e do ‘Estado’), da agitação e da propaganda, da tática e da estratégia, etc.”. Não é difícil perceber até que ponto esta proposição é utilizada por Gramsci para fundar a relação entre violência e consenso que constrói a hegemonia, uma das chaves do seu complexo discurso sobre a política.
A outra linha de Maquiavel que volta em Gramsci é a que tematiza o “realismo excessivo” na política, o qual leva a interessar-se não pelo dever ser, mas pelo ser, um erro que faz com que se considere Guicciardini, um contemporâneo de Maquiavel, como “o político verdadeiro”. O dilema obriga a distinguir entre o diplomata e o político. O primeiro se move na “realidade efetiva”, porque sua atividade não tende a gerar novos equilíbrios, mas a conservá-los. O segundo, representado por Maquiavel, quer, por definição, criar novas relações de força e, portanto, deve ocupar-se do “dever ser”. Mas, na visão gramsciana, a questão não deveria ser formulada nestes termos antagônicos: trata-se de analisar se o “dever ser” é um ato arbitrário ou um ato necessário. É certo que o político não deve mover-se só na “realidade efetiva”, mas também no “dever ser” que orienta a ação sobre a mudança da sociedade. Mas haveria duas formas deste “dever ser”: uma, a abstrata e difusa de Savonarola (o “profeta desarmado”), e outra, a realista de Maquiavel, nem determinista nem voluntarista, mas definida como interpretação objetiva e como indicadora de linhas de ação, embora não se tenha transformado em realidade imediata.
E Gramsci, cheio de admiração, culmina sua análise com estas palavras: “O limite e a estreiteza de Maquiavel consistem apenas no fato de ter sido ele uma ‘pessoa privada’, um escritor, e não o chefe de um Estado ou de um exército, que é também uma pessoa singular, mas tem à sua disposição as forças de um Estado ou de um exército, e não somente exércitos de palavras. Nem por isso se pode dizer que Maquiavel tenha sido também ele um ‘profeta desarmado’ [...]. Maquiavel jamais diz que pensa em, ou se propõe ele mesmo, mudar a realidade, mas visa apenas e concretamente a mostrar como deveriam operar as forças históricas para se tornarem eficientes [...]”.
Juan Carlos Portantiero (1934-2007), sociólogo argentino, escreveu, entre outros, Los usos de Gramsci. Este texto foi publicado originalmente em VV.AA. Fortuna y virtud en la república democrática. Estudios sobre Maquiavelo. Buenos Aires: Clacso, 2000. Traduzido sem finalidades comerciais por Josimar Teixeira.
Notas[1] Todas as citações deste estudo encontram-se em Gramsci, Antonio. Quaderni del Carcere. Turim: Einaudi, 1975, t. III [Cadernos do cárcere. V. 3: “Maquiavel. Notas sobre o Estado e a política”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000].
[2] Hegel, G. W. F. La Constitución de Alemania. Madri: Aguilar, 1972.