Poeta lança livro ilustrado com colagens ‘descontroladas’, enquanto obras marcantes de sua carreira, como ‘Poema sujo’, ganham nova roupagem
Pedro Sprejer
Nos últimos anos, Ferreira Gullar resolveu aceitar a desordem como parceira em sua criação. É assim que o poeta maranhense elucida o processo de composição de seus últimos livros. Ilustrado com desenhos e colagens feitas pelo próprio Gullar, o singelo “A menina Cláudia e o rinoceronte” (Editora José Olympio, 50 páginas, R$ 38) é o mais recente produto dessa parceria. Uma obra que é, antes de mais nada, o resultado de um dos passatempos preferidos do autor de 82 anos.
— Para mim fazer essas colagens é uma brincadeira, como eu não tenho compromisso, eu faço me divertindo. É diferente de fazer poema. Poema é um negócio esquisito — diz o poeta.
Gullar também enxerga vestígios da desordem em sua mais recente obra poética, “Em alguma parte alguma”. Vencedor do Prêmio Jabuti de 2011, o livro está sendo relançado pela José Olympio, com novo projeto gráfico, ao lado de “Muitas vozes” e “Poema sujo”. As edições trazem textos de apresentação de Marco Lucchesi, Marcos Pasche e Antonio Carlos Secchin. Até o final do ano outros quatro títulos chegarão renovados às livrarias, entre eles “A luta corporal”.
— Desde “A luta corporal”, meu primeiro livro, eu escrevia poemas a partir do início. Já no último, “Em alguma parte alguma”, passei a começar do meio, do fim, de qualquer ponto. Eu escrevia um verso e sabia que aquilo não podia ser o início. As coisas agora acontecem de uma forma mais imprevisível do que antes — conta Gullar, que lançará “A menina Cláudia e o rinoceronte” e as novas edições na próxima quinta-feira, às 19h30m, na Livraria da Travessa do Leblon.
No caso das ilustrações, o que o poeta define como “uma chance ao acaso” tem uma origem curiosa. Um dia, Gullar fazia uma de suas colagens com recortes em forma de bules, garrafas e cálices quando se levantou para atender o telefone. Ao voltar, alguns minutos depois, encontrou os recortes fora de ordem, espalhados aleatoriamente e, ao lado, o indiferente autor da obra: seu gato — que atendia pelo nome “Gatinho”.
— Ele deve ter dado um tapa no papel e desarrumou os recortes todos. O resultado foi um desenho principal por cima e uma grande desordem por baixo. Achei bonito e colei daquela maneira. E desde então passei a incluir o acaso, o incontrolável, nas colagens.
Em 2000, Gullar homenageou e narrou em versos algumas histórias do já falecido bichano-artista em “Um gato chamado Gatinho” (Salamandra). Embora não tenha sido concebido exatamente como um livro para o público infantojuvenil, a obra acabou abrindo para Gullar as portas do gênero. Em seguida viriam “O rei que mora no mar” (Global) — adaptação de um poema inédito escrito nos anos 60 —; “Dr. Urubu e outras fábulas” (José Olympio); “Zoologia bizarra” (Casa da Palavra) — contemplado com o prêmio infantojuvenil da Academia Brasileira de Letras, em 2011 — e “Bichos do lixo” (Casa da Palavra), também de colagens e lançado neste ano.
A inspiração para o novo livro, que narra a história de uma menina que “de tanto brincar com papéis coloridos que recortava, inventou um rinoceronte”, nasceu de um relato de Cláudia Ahimsa, companheira do poeta. Em uma viagem pela África, ela se deparou, cara a cara, com um exemplar do imponente mamífero, ficando assustada e maravilhada:
— A ideia não era fazer um livro para crianças. A inspiração nasceu do fascínio da Cláudia por esse animal realmente incrível que é o rinoceronte e sua forma singular.
A espera tranquila pelo poema
Desde que terminou “Em alguma parte alguma”, publicado em 2010, Gullar não escreveu um poema sequer. Não se trata de bloqueio criativo. A espera tranquila pelo verso faz parte da rotina, que tem no poema um momento de exceção desencadeado misteriosamente. Como uma espécie de longa latência da qual, após um dia ou cinco anos, desabrocha a poesia:
— Costumo dizer que só faço poesia se me espanto. Não tomo a decisão de escrever um livro de poemas, não sou capaz. Eu não decido, vem aquele estalo. Aí, então, começo a trabalhar e assumo o controle do poema. Mas não forço a barra: se não vier, eu não escrevo.
Publicado em 1976 e tido como um dos grandes acontecimentos da poesia brasileira, “Poema sujo” foi uma exceção dentro do processo criativo de Gullar. Exilado em Buenos Aires, onde conseguiu uma vaga de professor universitário, o poeta sentia sua vida em risco, com a iminência de um golpe de Estado no país. Sem passaporte, vencido e cancelado pela embaixada brasileira, ele decidiu escrever “aqueles que podiam ser os meus últimos versos”. Logo no início, redigiu uma carta para o amigo Leandro Konder, em que dava tons de certeza a uma intuição: “comecei um poema que vai ter de 70 a 100 páginas”.
— Não sei como, mas eu já sabia. Pretendia dizer tudo o que me restava dizer — lembra Gullar, que enxerga uma identidade entre os sentimentos evocados pelo poema e a onda de protestos que tomou o país em junho. — Como o poema envolve questões muito amplas, políticas, existenciais, poéticas e estéticas, é uma coisa que pode, quem sabe, motivar a pessoa a levar adiante essa luta. Não tenho certeza disso, mas afinidade com esse momento atual que o país vive, é evidente que tem.
“Poema sujo” resgata uma série de lembranças da infância do autor em São Luís do Maranhão, tema que retorna muitas vezes em sua obra. Criado em “uma casa sem livros”, o poeta cresceu lendo histórias em quadrinhos do Tarzan e outros heróis e contos policiais da revista “Detetive”, leitura preferida do pai. Monteiro Lobato, La Fontaine (de quem traduziu parte da obra) e outros clássicos infantojuvenis só apareceriam em sua vida a partir da adolescência:
— No fundo, o que faz a gente ser poeta e ser artista é a criança que sobra, que sobrevive. Um lado de fantasia, de busca da maravilha, do sonho, que vai se perdendo no adulto. No caso, eu, com as minhas colagens, brinco mais ainda. É uma coisa fora do controle.
Fonte: Prosa / O Globo