quarta-feira, 24 de junho de 2009

O PENSAMENTO DO DIA

“Todo dia, na redação, não sabemos se haverá um amanhã. Para nós, é um desejo inalcançável envelhecer trabalhando como jornalistas. Talvez possamos envelhecer. Talvez morramos na nossa redação”.

(Mohammad Gouchani, diretor de Etemad, preso em 20 de junho, em Teerã).
Fonte: L'Unità, 23 junho 2009
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A grande política e pequena política

Antonio Gramsci

Grande política (alta política) - pequena política (política do dia-a-dia, política parlamentar, de corredor, de intrigas). A grande política compreende as quest6es ligadas à fundação de novos Estados, a luta pela destruição, pela defesa, pela conservação de determinadas estruturas orgânicas economico-sociais. A pequena política com­preende as quest6es parciais e cotidianas que se apresentam no inte­rior de uma estrutura já estabelecida em decorrência de lutas pela predominância entre as diversas frações de uma mesma classe política. Portanto, a grande política tentar excluir a grande política do âmbito interno da vida estatal e reduzir tudo a pequena política (Giolitti, baixando 0 nível das lutas internas, fazia grande política; mas seus súcubos, objeto de grande política, faziam pequena política).

Ao contrario, é coisa de diletantes pôr as questões de modo tal que cada elemento de pequena política deva necessariamente tornar-se questão grande política, de reorganização radical do Estado. Os mesmos termos se apresentam na política internacional: 1) a grande política questões relacionadas com a estatura relativa de cada Estado nos confrontos recíprocos; 2) a pequena política nas questões diplomáticas que surgem no interior de um equilíbrio já constituído e que não tentam superar aquele equilíbrio para criar novas relações.

Maquiavel examina sobretudo as questões de grande política: criação de novos Estados, conservação e defesa de estruturas orgânicas em seu conjunto; questões de ditadura e de hegemonia em ampla escala, isto e, em toda a área estatal. Russo, nos Prolegomeni, faz do Príncipe 0 tratado da ditadura (momento da autoridade e do individuo) e, dos Discorsi, 0 tratado da hegemonia (momento do universal e da liberdade).

A observação de Russo é exata, embora também no Príncipe não faltem referencias ao momento da hegemonia ou do consenso, ao lado daquele da autoridade ou da força. Assim, é justa a observação de que não há oposição de principio entre principado e republica, mas se trata sobretudo da hipóstase dos dois momentos de autoridade e universalidade.

(Gramsci, Antonio – Cadernos do Cárcere, volume 3, págs. 21-21 – Civilização Brasileira, 2007)

Habermas, 80 anos

DEU NA REVISTA CULT

Em 18 de junho, comemora-se o 80º aniversário daquele que é considerado o maior filósofo alemão vivo, Jürgen Habermas. Representante da "segunda geração" da Escola de Frankfurt (grupo que reuniu teóricos como Walter Benjamin, Max Horkheimer, Theodor Adorno e Herbert Marcuse), Habermas é autor de livros que propõem articulações inovadoras no campo das teorias do direito, da moral e da educação. S egundo o sociólogo Jessé de Souza, o pensamento habermasiano permite a nós brasileiros "perceber nossa própria sociedade de um modo mais crítico e menos auto-indulgente e superficial".

Leia a seguir dois artigos presentes na edição de junho da CULT. O primeiro, de Luiz Bernardo Leite Araújo, comenta a presença de Habermas no debate contemporâneo.O último, de Jessé de Souza, apresenta a aplicabilidade do pensamento habermasiano no Brasil. Confira também depoimento da professora de Sociologia da UnB, Bárbara Freitag em homenagem aos 80 anos de Habermas.

Um pensador da razão pública

"Considerado o filósofo vivo mais importante da Alemanha, Jürgen Habermas completa 80 anos. Saiba mais sobre seu período de formação, sobre sua "revolução linguística" na Teoria Crítica (base da "Escola de Frankfurt"), e sua presença no debate contemporâneo"

Luiz Bernardo Leite Araújo

Jürgen Habermas (Düsseldorf, 18 de Junho 1929) é um dos mais importantes e influentes pensadores da atualidade, tendo se notabilizado pela destreza em transitar por diversas áreas do conhecimento sem perder a visão de conjunto própria do saber filosófico. Trata-se de um teórico interdisciplinar, cujos trabalhos transcendem as rígidas fronteiras entre as disciplinas acadêmicas, e de um escritor prolífico, com mais de quarenta obras publicadas ao longo dos últimos cinquenta anos, além de um intelectual público que discute as principais controvérsias políticas, morais, científicas e culturais de nosso tempo, contribuindo inclusive com intervenções em revistas e jornais de prestígio, como a Der Spiegel e o Die Zeit de sua Alemanha natal.

Ele mesmo considera a 'esfera pública', entendida como espaço do trato comunicativo e racional entre as pessoas, o tema que o persegue a vida toda. Sua existência foi marcada, na infância, pela experiência traumática de intervenções cirúrgicas numa fissura labiopalatal; na adolescência, pelo nazismo e a Segunda Guerra Mundial - apesar da "sorte de ter nascido mais tarde", já que, aos dezesseis anos, testemunhou a derrocada do regime nazista sem ter participado das atrocidades reveladas após 1945 nos processos contra criminosos de guerra -, e no decorrer de sua vida adulta pelas inquietações ligadas aos destinos da sociedade alemã do pós-guerra, tanto na abertura cultural para o Ocidente quanto na reeducação política sob impulso democrático.

Habermas é um filósofo rigoroso e suas análises meticulosas requerem do leitor não apenas paciência conceitual, mas também vasto conhecimento da história das ideias

Formação

Habermas fez seus estudos universitários em Zurich, Göttingen e Bonn. Do ponto de vista acadêmico, formou-se no contexto provinciano da filosofia alemã da época, sob a forma de um neokantismo declinante, da fenomenologia e também da antropologia filosófica, defendendo em 1954 uma tese de doutorado sobre Schelling. Dois anos depois, com apenas 27 anos, tornou-se assistente de Theodor W. Adorno na Universidade de Frankfurt, onde trabalhou até o final da década. Neste período, demonstrou vários interesses, seja por pesquisas empíricas sobre comunicação de massa e sociologia política, seja por estudos acerca do marxismo, da Escola de Frankfurt e dos clássicos das ciências sociais. Os dois primeiros livros de Habermas - Mudança estrutural da esfera pública (1962) e Teoria e prática (1963) - cristalizam o que considera uma tentativa de prosseguir o marxismo hegeliano e weberiano dos anos 1920 com outros meios, tentativa que lhe rendeu abertura para horizontes de experiência diferentes e decididamente mais largos, ou seja, livres do provincianismo e do idealismo. O primeiro livro é resultado de uma tese de livre-docência em Sociologia defendida na Universidade de Marburgo.

De 1961 a 1964, Habermas trabalhou como professor de Filosofia em Heidelberg, regressando então a Frankfurt para ocupar a cadeira de Filosofia e Sociologia pertencente a Max Horkheimer. Naqueles anos 1960, as intervenções acadêmicas e políticas se multiplicaram. Ao lado de uma efetiva participação no nascente e acalorado movimento estudantil, Habermas reencontrou seu caminho filosófico pelas vias da hermenêutica, do pragmatismo e da filosofia da linguagem, o que demonstra sua dívida com a obra de Hans-Georg Gadamer e as sugestões de seu amigo Karl-Otto Apel. Por outro lado, Habermas engajou-se na querela sobre o positivismo e concentrou boa parte de seus esforços teóricos em questões de ordem epistemológica, visando fornecer bases metodológicas mais sólidas para uma teoria crítica da sociedade. As obras de referência do período são as conhecidas Técnica e ciência como 'ideologia' e Conhecimento e interesse, ambas de 1968, bem como a menos comentada, mas não menos importante, Sobre a lógica das ciências sociais, de 1970. A distância de cerca de 15 anos permitirá a Habermas afirmar que desde o princípio seus interesses teóricos estiveram fundamentalmente determinados pelos problemas filosóficos e socioteóricos emergentes do movimento de pensamento que vai de Kant a Marx, contribuindo sobretudo para o projeto de renovação da teoria da sociedade fundada na tradição do marxismo ocidental.

"Giro linguístico"

Na década de 1970, que representou uma etapa de elaboração e sistematização de seu contributo teórico, culminando com a publicação de sua obra mais reputada - a volumosa Teoria do agir comunicativo (1981) -, Habermas trabalhou como diretor do Instituto Max Planck, em Starnberg, perto de Munique. Nessa obra fica patente o 'giro linguístico' produzido pelo autor na teoria crítica da sociedade, fruto da capacidade em adicionar e integrar novas perspectivas ao seu projeto teórico originário. Com efeito, os escritos dos anos 70, posteriormente reunidos em Estudos preliminares e complementos à teoria do agir comunicativo (1984), correspondem à montagem da teoria habermasiana da comunicação, da qual obras como A crise de legitimação no capitalismo tardio (1973) e Para a reconstrução do materialismo histórico (1976) fazem uso concreto de certos elementos.

A intuição central de que na comunicação linguística está implícita a busca pelo entendimento recíproco, ideia que conduziu Habermas aos princípios filosóficos que destacam a constituição intersubjetiva do espírito humano, é tratada à luz das teorias: (a) do agir comunicativo, tecendo um conceito constitutivo de ação social orientada à intercompreensão; (b) da racionalidade, elaborando uma noção mais englobante de razão com a consequente superação da perspectiva monológica da filosofia do sujeito; (c) da sociedade, desenvolvendo um conceito de sociedade que integra a teoria dos sistemas com a teoria da ação, de modo a distinguir e a conjugar as esferas do sistema e do mundo da vida; (d) da modernidade, propondo uma releitura da dialética da racionalização, pela qual se possa discernir seus fenômenos patológicos a fim de contribuir para um redirecionamento, ao invés do mero abandono, do projeto da modernidade. E tudo isto com base na tese fundamental segundo a qual nós nos encontramos preliminarmente no elemento da linguagem, que existe, antes e acima de tudo, para a comunicação entre as pessoas sobre algo no mundo, e em cujo processo cada um pode tomar posição pelo 'sim' ou pelo 'não' perante as pretensões de validade de um outro.

Para Habermas, a educação deve ser compreendida no sentido mais abrangente possível, abrigando formação social, cultural e científica

Escritor prolífico

Excluídos alguns cursos em universidades fora da Alemanha, Habermas manteve-se cerca de uma década afastado do meio acadêmico, integralmente dedicado às pesquisas, e retomando, a partir de inícios dos anos 1980, o magistério na Universidade de Frankfurt, de onde retirou-se em 1993, embora siga atuando como professor visitante em universidades americanas, tais como a Northwestern, em Chicago, e a New School, em Nova York. Tendo atingido a sua maturidade intelectual, Habermas passou a ampliar consideravelmente os campos de aplicação da teoria do agir comunicativo, quer na fundação da chamada Ética do Discurso - Consciência moral e agir comunicativo (1983) e Comentários à ética do discurso (1991) -, na explicitação das premissas filosóficas da modernidade (O discurso filosófico da modernidade: 1985), na compreensão do novo papel desempenhado pelo saber filosófico no contexto da guinada linguística - Pensamento pós-metafísico (1988) -, na elaboração da teoria discursiva do direito e da democracia - Direito e democracia (1992) - e do conteúdo universalista dos princípios republicanos - A inclusão do outro (1996) -, quer ainda nas intervenções sobre temáticas atuais, quase sempre reunidas sob a forma de escritos políticos sucessivos, que somam a impressionante marca de 11 volumes até o ano de 2008.

Habermas também tratou da relação entre teoria e prática a partir da questão ontológica do naturalismo e da questão epistemológica do realismo, ambas fundamentais no âmbito da filosofia teórica ( Verdade e justificação: 1999), reatando com problemas deixados em segundo plano nas décadas de 1980 e 90, nas quais claramente predominaram os temas de filosofia prática. Recentemente envolveu-se na área da bioética, particularmente na discussão desencadeada pelas técnicas genéticas - O futuro da natureza humana (2001) -, e, para surpresa de muitos, interessa-se progressivamente pela questão da religião, seja em virtude do desafio cognitivo representado pela persistência desse fenômeno num ambiente secularizado - Fé e saber (2002) -, seja pelo significado e o papel da religião na esfera política pública - Entre naturalismo e religião (2005).

O mote habermasiano de que as questões práticas são passíveis de argumentação racional constitui - em minha opinião - o principal atrativo de seu pensamento. Numa época marcada por tendências favoráveis ao relativismo e ao perspectivismo, com a resultante celebração acrítica de tudo que é (ou parece) diferente, é notável o empenho do pensador alemão em esgaravatar, como ele diz, um pouco aqui, um pouco acolá, à procura dos vestígios de uma razão que reconduza, sem apagar as distâncias, que una, sem reduzir o que é distinto ao mesmo denominador, que entre estranhos torne reconhecível o que é comum, mas deixe ao outro a sua alteridade. Esse traço de uma razão comunicativa cética, porém não derrotista, é encontrado nas diversas facetas do pensamento de Habermas, notadamente nas contribuições nos campos da moral, do direito e da política. Um ponto que ilustra sobremaneira tal perspectiva é a ideia discursiva segundo a qual o reconhecimento dos indivíduos como pessoas responsáveis consiste em tomá-las seriamente como agentes que podem e devem ter voz na validação de normas e leis às quais eles próprios estão sujeitos. Daí o princípio do discurso inerente ao uso da linguagem, cuja formulação é a seguinte: "São válidas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais".

A introdução do princípio discursivo permite a Habermas defender a relação interna entre autonomia privada e autonomia pública, proporcionando uma justificação do Estado democrático de direito na qual os direitos humanos e a soberania popular desempenham papéis distintos, irredutíveis, porém complementares. E sua formulação torna evidente que a pedra de toque de toda justificação normativa reside num acordo fundado em razões publicamente acessíveis, de tal modo que os princípios políticos respeitosos da diversidade das opiniões filosóficas, morais e religiosas entre as pessoas devem ser sustentados mediante o critério da aceitabilidade racional. Habermas adota, pois, uma concepção procedimental de 'justiça', segundo a qual a validade das normas é estabelecida num procedimento argumentativo representativo da racionalidade prática dos próprios concernidos, e um modelo deliberativo de 'democracia', que se refere à ideia de que a normatização legítima procede da deliberação pública dos cidadãos. É como pensador da razão pública, original e fecundo, que Habermas ocupa posição de destaque na alvorada do século.

Ambivalência moral e política do mundo moderno

"No Brasil, onde o debate acadêmico ainda imagina um país dominado pelo "jeitinho", a teoria habermasiana pode ser ricamente aproveitada"

Jessé de Souza

Um grande pensador como Habermas pode ser compreendido de muitas maneiras e sua obra permite várias possibilidades de introdução. Escolho meu caminho elegendo a questão da "esfera pública" e, consequentemente, a questão da ambiguidade e positividade moral do Ocidente, como a questão mais relevante e mais atual deste pensador contemporâneo tão importante e influente.

Apesar da enorme divergência com relação ao quadro de referência teórico, existe um ponto em comum, na visão de todos os grandes clássicos das ciências sociais, acerca da peculiaridade da moderna sociedade capitalista: Estado racional burocratizado e mercado competitivo capitalista são percebidos como as instituições estruturantes do novo sistema social nascente. Para Karl Marx e Max Weber, por exemplo, as patologias do mundo moderno e capitalista têm a ver com os efeitos dessas instituições combinadas tanto na perversão da formação da vontade política quanto na fragmentação da consciência e da autonomia individual em todas as dimensões da vida.

As primeiras gerações da Escola de Frankfurt, à qual Habermas pertence como rebento tardio, haviam, precisamente, conseguido juntar a força combinada desses clássicos para mostrar a ubiquidade e a nova opacidade da dominação capitalista tardia: homens e mulheres escravizados por uma lógica mesquinha e impessoal ao mesmo tempo em que se imaginavam livres e senhores do próprio destino.

"Terceira" instituição

Habermas não iria negar a validade desse diagnóstico. Mas ele iria dedicar toda sua vida para matizá-lo e torná-lo mais complexo. Habermas é o pensador de uma "terceira" instituição típica do moderno mundo capitalista, além de mercado e Estado, que ele chama de "esfera pública". Essa me parece sua grande novidade como pensador crítico. Sem negar a lógica heterônoma que habita Estado e mercado, Habermas defende que a modernidade é "ambígua", ou melhor, "ambivalente", na medida em que possibilitou, também, processos de aprendizados coletivos, ancorados institucionalmente no que ele chama de esfera pública.

Desse modo, a comparação entre sociedades modernas concretas pode e deve se dar, não apenas se aferindo a eficácia diferencial do mercado e do Estado em cada uma delas, mas, também, a partir da maneira mais ou menos consequente na qual uma esfera pública plural e democrática logrou se institucionalizar.

O conceito de esfera pública já é o tema principal da tese de livre docência de Habermas de 1962, no início de sua carreira, denominada "Mudança estrutural da esfera pública". Neste livro, Habermas percebe a formação histórica de uma instituição singular, especificamente "moderna".

"Moderna" não apenas porque começa a se delinear historicamente na segunda metade do século 18, mas porque pressupõe "estímulos" modernos como o aumento da troca de mercadorias implicando também a troca de informações e ideias ou a institucionalização da liberdade de confissão engendrando, pela primeira vez, a possibilidade de construção de uma esfera "privada", apartada do público e de sua vigilância.

Afinal, é precisamente uma recém estabelecida esfera privada fundada na autocrítica e na prática reflexiva da vida individual e de suas escolhas - possibilitada por novos meios como, dentre outros, o romance psicológico moderno - que irá possibilitar a transposição da lógica de uma nova racionalidade privada também para os assuntos públicos da coletividade.

É a partir daí que o poder político passa a necessitar, para sua legitimação, de "justificar-se" perante um público de pessoas cultas. Habermas percebe aqui o nascimento de algo qualitativamente novo, ainda que no livro de 1962 a entrada da grande imprensa e da indústria cultural, que se impõem a partir do final do século 19, seja percebida, muito ao gosto dos "velhos frankfurtianos", como uma história unilateral de decadência e de empobrecimento do espírito público.

Ainda assim, ninguém havia percebido antes dele, com tanta clareza, o ganho histórico tanto social quanto político, propiciado pela reflexão e pela possibilidade de autocrítica seja na dimensão privada seja na dimensão pública. Mais ainda, esse potencial crítico é percebido por Habermas como "inscrito na própria ordem social" sendo, portanto, passível de verificação empírica.

Em outros livros seminais como o Técnica e ciência como ideologia, (1969), e na sua obra magna A teoria do agir comunicativo (1981), Habermas retoma sua senda original armado da ambição científica de tentar demonstrar a existência empírica de uma racionalidade "comunicativa" que não se confundiria com a racionalidade instrumental e sistêmica de Estado e mercado.

O contexto histórico que lhe confere plausibilidade é a expansão inaudita, depois da Segunda Guerra Mundial, da social-democracia europeia e suas conquistas como boa educação ao alcance de todos. Em vez de apenas cego consumismo e domínio absoluto de necessidades materiais, temos, nessa época, a discussão pública de vários temas como expansão dos direitos sociais, libertação feminina e, finalmente, mudanças importantes na forma de perceber a autoridade e o poder político.

Para Habermas, esses "avanços" refletem precisamente possibilidades importantes de "aprendizado moral e político" da modernidade capitalista, sem que isso implique desconhecer os efeitos "colonizadores" da lógica do poder e do dinheiro. Captar essa "ambiguidade tensa" entre dominação opaca e imperceptível, por um lado, e novas possibilidades de aprendizado coletivo, por outro lado, foi o grande desiderato da vida desse pensador.

O conceito de "ação comunicativa" é central nessa empreitada. Ele serve para mostrar, na dimensão da ação social concreta, que o comportamento efetivo dos indivíduos pressupõe uma relação interna com valores morais e políticos que foi, historicamente, tornada possível, pela expansão do horizonte reflexivo possibilitado pela capacidade, historicamente recente, de se autocriticar como indivíduo e como sociedade.

Habermas no Brasil: "jeitinho" e "mal misterioso"

No Brasil, onde um velho debate acadêmico ainda imagina o país dominado pelo "jeitinho" ou por "relações pessoais pré-modernas" - como se aqui um "mal de origem" misterioso tivesse impedido que mercado e Estado (apenas no Brasil, dentre todos os países do globo) deixasse de desenvolver as virtualidades de uma sociedade moderna e impessoal - a teoria habermasiana pode ser ricamente aproveitada.

Habermas é o pensador de uma "terceira" intituição do mundo capitalista, além de mercado e Estado, a "esfera pública"

Num registro "habermasiano", os problemas sociais brasileiros parecem decorrentes de uma "colonização" quase absoluta dos interesses do mercado e do dinheiro sobre todas as outras esferas sociais. Como aqui não se desenvolveu uma esfera pública crítica - a não ser episodicamente - não se desenvolveu também consensos morais e políticos capazes de se opor ao simples uso indiscriminado de tudo e de todos com o fito de lucro.

A permanência e a naturalização da abissal desigualdade social brasileira em todas as dimensões advêm, portanto, não de um "jeitinho" corrupto que é sempre do Estado (demonizado) e nunca do mercado (divinizado) - como na visão de nosso liberalismo dominante que é conservador e pseudocrítico - mas da falta de capacidade de autocrítica que perpassa toda a sociedade.

Pensadores críticos, como Habermas, não devem ser usados apenas como meio de "distinção erudita", como mero "adorno da inteligência", como um fim em si, como é tão comum entre nós. Eles são uma "arma prática" para se perceber nossa própria sociedade de outro modo, mais crítico e menos autoindulgente e superficial como nos acostumamos a nos perceber.

Santo de casa

Merval Pereira
DEU EM O GLOBO


Quanto mais os senadores tentam entender e explicar o que está acontecendo no Senado, mais fica exposta a verdadeira bagunça administrativa que domina a burocracia da Casa, facilitando as mais diversas tramoias que, ao que tudo indica, tinham a aceitação de um grupo de senadores. A solução mais simplista, e nem por isso mentirosa, é atribuir ao ex-todo-poderoso diretor-geral Agaciel Maia a culpa por todas as falcatruas efetuadas, e não há dúvida de que ele tem muita culpa no cartório. O senador Demóstenes Torres tem a prova cabal de um crime cometido por ele, a nomeação, sem o seu conhecimento e através de ato secreto, de uma funcionária para seu gabinete.

É muito provável que a burocracia que dominou o Senado nos últimos quinze anos tenha montado esquemas semelhantes em diversos gabinetes, ou mesmo tenha criado, entre os mais de dez mil funcionários, vários "fantasmas" que recebiam como laranjas de altos burocratas, sem que ninguém se desse conta do que estava acontecendo.

Também na Câmara descobriu-se recentemente que havia sido montado pela burocracia, com a conivência de deputados e assessores, um mercado negro de passagens de avião com as cotas mensais, que até agora não foi devidamente esclarecido.

A sindicância acusou o ex-diretor Agaciel Maia de "deliberada falta de publicidade dos atos". Mas entre os 663 supostos atos secretos identificados por uma comissão de sindicância nomeada pela Mesa do Senado para fazer essa varredura, vários foram identificados pelos senadores como perfeitamente legítimos, publicados devidamente nos órgãos oficiais.

Não há explicação para que atos legítimos tenham sido colocados como secretos em uma investigação oficial, a não ser a intenção de atrapalhar as investigações. De qualquer maneira, a demissão do diretor-geral, Alexandre Gazineo, e do diretor de Recursos Humanos, Ralph Siqueira, anunciadas ontem, além de medidas profiláticas com a eliminação de folhas suplementares de pagamento; a realização de auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) nos contratos realizados pelo Senado; a revogação de atos e, sobretudo, a aprovação do Portal Transparência, mostram caminhos para um começo de reerguimento do Senado.

Mas nada se conseguirá se não mudarem a mentalidade de certos políticos, que ainda tentam jogar a culpa no mensageiro, no caso os meios de comunicação que denunciam os desmandos, ou em terríveis conspirações contra a instituição do Senado, fingindo não entender que quem desmoraliza o Senado são os atos impróprios cometidos por senadores e burocratas, e não sua denúncia.

Os que tentam se colocar acima dessas "pequenezas", e se recusam a participar de uma necessária faxina na Casa, são os responsáveis pela transferência do controle do poder para os burocratas, que passaram a comandar as ações.

Os que tentam se passar para a opinião pública como grandes estadistas, mais preocupados com os assuntos nobres da política do que com as mazelas administrativas, tentam reduzir a importância dos escândalos aumentando sua própria importância.

Essa visão distorcida da situação não é apenas do presidente do Senado, José Sarney, que se respalda no aval do presidente Lula para tentar ficar acima de qualquer suspeita.

Muitos senadores passaram o dia de ontem a denunciar conspirações, a apelar ao corporativismo, a falar das nobres funções de um senador, fingindo esquecer que as tarefas mais nobres não podem ser exercidas em um ambiente apodrecido.

O mais preocupante é que muitos dos senadores que enfrentam com coragem a onda de desvios da Casa, também eles possuem casos de difícil explicação em seus gabinetes, como o senador Demóstenes Torres, que colocou em seu gabinete um parente do ex-diretor de Recursos Humanos João Carlos Zogbhi a pedido de outro senador, o hoje ministro Edison Lobão.

Zogbhi foi demitido do cargo por manipulações com o crédito consignado dos funcionários do Senado.

A situação no Senado está, portanto, longe de ser resolvida, ainda mais depois que foi nomeada para um dos cargos mais importantes, nessa suposta renovação, uma funcionária que já fora chefe de gabinete da senadora Roseana Sarney, o que sugere a continuidade da influência do presidente do Senado sobre quem deverá apurar as irregularidades.

O senador Heráclito Fortes assumiu a responsabilidade pela nomeação, ressaltando que Sarney se opôs a ela. O senador Heráclito Fortes, portanto, assumiu uma nomeação frágil do ponto de vista político aparentemente sem necessidade.

Andei vendo recentemente episódios de um seriado da BBC sobre a dinastia Tudor da Inglaterra, e dia 22 passado foi o Dia de São Thomas Morus, canonizado em 1935 e, desde 2000, por decisão do papa João Paulo II, celebrado como padroeiro dos homens públicos, dos políticos.

No Parlamento inglês, o autor de "Utopia" exerceu vários mandatos a partir de 1504. Advogado, humanista e literato, Morus teve quatro filhos, que educava nos preceitos da solidariedade e do despojamento.

Morus fazia questão de manter hábitos de vida rigorosos e austeros, o que atraía e ao mesmo tempo perturbava Henrique VIII, a quem serviu e com quem rompeu, por questão de princípios.
Recentemente, na Inglaterra, um escândalo sobre uso indevido de verbas parlamentares levou à renúncia do presidente da Câmara dos Lordes, o que não acontecia há mais de 300 anos.

Quantos dos parlamentares do Brasil e da Inglaterra podem ter hoje São Thomas Morus como seu padroeiro e exemplo?

O que não tem remédio

Dora Kramer
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

O senador José Sarney pode ser um político de métodos ultrapassados, uma personalidade datada, incapaz de fazer frente às demandas da atualidade. Mas mantém intacta a capacidade de bem descrever uma situação.

"Julguei que fosse eleito presidente para presidir politicamente a Casa e não para ficar submetido a cuidar da despensa da Casa ou para limpar as lixeiras da Casa".

Numa frase, dita em meio ao improviso para tentar responder às cobranças que lhe fazia da tribuna o senador Arthur Virgílio nesta segunda-feira, Sarney expôs o tamanho exato do equívoco que foi sua eleição à presidência do Senado e não deixou a menor dúvida.

É o homem errado, eleito de maneira extemporânea para um posto inadequado em relação às suas expectativas e, principalmente, frente às suas possibilidades.

"Presidir politicamente a Casa" na concepção de José Sarney significa postar-se sobranceiro na cadeira de presidente e, de lá, receber todas as homenagens, exercitar os rituais, desfrutar do lado benfazejo do poder ao modo das majestades.

"Não ficar submetido a cuidar da despensa da Casa ou para limpar as lixeiras da Casa" quer dizer delegar o funcionamento da instituição a prepostos de confiança sem se importar com os métodos utilizados para isso, desde que assegurem a satisfação necessária para manter em paz a corporação.

Mal comparando, as atribuições políticas seriam missões da Casa Grande e as tarefas administrativas, coisa da Senzala.

Foi o próprio senador José Sarney quem assim explicitou sua visão do posto que ocupa pela terceira vez.

Para ele, o zelo aos meios e modos aplicados à administração do Senado é pormenor, algo que não lhe merece a atenção.

Deixa isso claro quando traduz por "lixeiras" e "despensas" assuntos como pagamentos indevidos, contratações irregulares, nepotismo, fisiologismo, desvio de funções, distribuição de privilégios, inchaço da máquina, abuso de autoridade, negligência funcional e desrespeito à Constituição no tocante à publicidade de atos oficiais.

Já havia dado um mau sinal quando quis ser presidente do Senado sustentando sua postulação numa mentira: a negativa reiterada da candidatura.

O mesmo tipo de atitude que adotou em relação às denúncias. Enquanto pôde, negou tudo: a impropriedade do uso de seguranças do Senado na vigilância de suas propriedades no Maranhão, a contratação de parentes e agregados, o recebimento indevido do auxílio-moradia, a existência de atos secretos.

E, enquanto pode, continua a negar velocidade e firmeza na reação, não obstante isso só faça com que a crise se agrave e dê margem a manobras escusas da banda podre, visando a, mais uma vez, buscar abrigo no velho truque da socialização dos prejuízos entre o maior número possível de senadores, a fim de neutralizar a responsabilidade dos culpados.

Até a semana passada, quando do primeiro e claudicante discurso do presidente do Senado dizendo-se acima de julgamentos, só havia sido possível perceber que Sarney não era um homem à altura da solução requerida pela crise.

À medida que o tempo passa, vai ficando muito claro que Sarney não conseguirá se desincumbir a contento do restante do seu mandato.

Perde apoio entre os senadores, tergiversa, manifesta-se de forma cada vez mais tíbia, trata do problema com sofismas e toda sorte de escapismos, dá seguidas demonstrações de que carece de condições, não para gerir a crise, mas para conduzir o Senado.

O que se cobra dele, Sarney não pode dar: velocidade, firmeza, ruptura com os esquemas das velhas estruturas.

Se pudesse dar essa virada, já teria acenado para o grupo que agora se dispõe a iniciar um processo de recuperação do Senado.

Não acenou nem acenará com rupturas porque só chegou três vezes à presidência do Senado por obra e graça da obsolescência das estruturas.

Patropi

O Senado sangra, boa parte dos senadores clama pela recuperação moral da Casa, a bancada do PT se associa ao bom combate e como se pronuncia o presidente da República?

Como um legítimo conservador: criticando a "predileção" da imprensa por divulgar as "desgraças" do Senado, cobrando destaque a fatos positivos como o crescimento do emprego, em última análise, defendendo o statu quo. Mesmo quando nefasto.

Mundo virado

Que a correção ética deixou de ser objeto de admiração, não resta dúvida. Agora, o que se nota e causa espécie é que a conduta moralmente correta começa a ser alvo de condenação.

É de se temer a proximidade do dia em que a virtude entrará no índex dos temas politicamente incorretos e será coisa de gente desconectada das imposições do pragmatismo dos tempos modernos.

O que tranquiliza um pouco é a remota hipótese de a ignomínia vir a se tornar obrigatória.

Impasse na oposição

Rosângela Bittar
DEU NO VALOR ECONÔMICO

Os cenários políticos atuais, a um ano do início das campanhas eleitorais legais, levam a crer que, enquanto não definir os pilares da política econômica que pretende colocar em execução caso eleja o Presidente da República, a oposição continuará a ter dificuldades extremas para atuar. Os partidos se sentem amarrados porque veem, na política econômica executada pelo PT, nos dois mandatos do presidente Lula, cópia daquela praticada no governo Fernando Henrique Cardoso.

E as políticas sociais, inclusive as assistencialistas, constituem uma continuidade do que foi feito anteriormente, acrescido de uma notável expansão na sua abrangência.

Esta realidade criou um impasse ainda hoje insuperável para a oposição e possivelmente é o que explica porque, entre PSDB, DEM e PPS, apenas o último, o PPS, parece fazer oposição de fato e está sempre saindo à frente nas questões polêmicas que criam embaraços à ação das outras legendas contrárias.

Mais do que impressão, é fato que o PPS tem aparecido à frente de tucanos e demistas para romper situações de constrangimento que têm paralisado a oposição. O partido apareceu em destaque e na frente na contestação da proposta do governo Lula para taxar a poupança popular como forma de evitar a debandada de investimentos em fundos para as cadernetas, além de assumir a liderança contra a emenda do terceiro mandato consecutivo para o atual presidente e na conduta política diante da criação da CPI da Petrobras.

Aproveitando a coincidência da medida da poupança com seu período de propaganda partidária em televisão, o PPS transformou o projeto governista em tema central e combateu-o politicamente, puxando o cordão de uma atônita oposição que, até aquele momento, não havia aproveitado a hesitação do governo que temia, e ainda teme, o impacto político da medida sobre a popularidade do presidente.

Foi o PPS que também liderou a oposição na atuação política contra a emenda que institui o terceiro mandato para Lula e que, agora, o PT promete arquivar em votação de comissão antes de chegar a ser submetida ao crivo geral do plenário. Parlamentares do PSDB e do DEM assinaram a emenda, apoiando a iniciativa. Quando o presidente dos tucanos, Sergio Guerra, ainda ensaiava os primeiros passos para pedir a retirada do apoio dos tucanos, ameaçando com desligamento, e o presidente do DEM, Rodrigo Maia, passava a mão na cabeça dos parlamentares da legenda que assinaram a emenda do terceiro mandato, o PPS tratava de botar a boca no trombone para ressaltar a agressão à democracia ali contida, oficializando em nota seu protesto.

Há muito o PPS, de uma forma pouco percebida, vem dando o tom da oposição, mas esta é uma impressão com que o presidente do partido, Roberto Freire, não concorda. Ele não vê o PPS como maestro, mas credita este desempenho ao fato de ser um partido menor, o que facilita a coesão e a agilidade. "O fato de ser um partido homegêneo facilita até a minha atividade como presidente", afirma. No contraponto, partidos maiores, heterogêneos, divididos em facções, teriam maiores dificuldades para adotar posições rapidamente.

Freire toca, ainda, no ponto que parece fundamental hoje para explicar as razões de o PSDB e o DEM ainda enfrentarem dificuldades para uma ação política de oposição: a política econômica. Segundo Freire, o PPS foi contra esta política desde o governo Fernando Henrique, passando pelo rompimento do partido com o governo Lula, em 2004, e até hoje a ela se opõe.

PSDB e DEM, ao contrário, tiveram sempre dificuldades de fazer oposição ao governo Lula no que seria fundamental, a política econômica, porque viram na política executada pelo PT a cópia do seu próprio projeto de governo. E não foram capazes, ainda, de construir uma nova proposta. São poucas as razões para uma atitude tão reticente, mais ainda quando se sabe que, pelo menos um dos potenciais candidatos da oposição, o governador José Serra, desde o governo tucano diverge da política econômica em execução há pelo menos 15 anos.

O PPS criticava estes partidos, quando se somou a eles na oposição, por defenderem mais o Antonio Palocci, ex-ministro da Fazenda do governo Lula, por exemplo, do que o próprio PT o fazia. E o antigo partidão havia chegado à oposição depois de uma ruptura com o governo Lula, de que participava com um cargo de Ministro, em protesto por não haver mudado a política econômica anterior. "Rompemos não porque era um governo corrupto - na época, de corrupção, só tinha o primeiro sinal, o Waldomiro Diniz -, mas com um documento de crítica à condução da política econômica", assinala Freire, referindo-se ao trabalho, elaborado pelo partido em 2004, sob o título "Sem mudança não há esperança". Ainda é esta a bandeira do PPS.

"Ainda estávamos no governo e Lula nem nos concedeu audiência para conhecer o documento do partido. Vimos que ele não queria saber de nada, rompemos. Isso ajudou o PPS a fazer uma oposição de uma forma mais compacta, de conteúdo", explica.

O fato de, quando era governo, a oposição ter agido como muitas vezes faz hoje o governo Lula, não é empecilho, segundo Freire, para a ação de oposição. "Não temos que ficar discutindo se Fernando Henrique fez ou não. Naquela época, aprovou-se uma reeleição, por exemplo, que existe nos regimes presidencialistas. O que não se aceita é o uso do cargo para perenizar-se no poder. O argumento da popularidade para dar o terceiro, o quarto ou o quinto mandato, por exemplo, cria uma questão muito bem analisada pelo ministro Ayres Brito, do TSE. Quando for um governo impopular, a gente reduz o mandato? É brincadeira".

Para Freire, fica tudo realmente mais fácil para o PPS, que é um partido coeso, que ficou contra a reeleição e a política econômica do governo anterior. Mas não é impossível para os demais.

Tudo ficaria mais fácil, porém, se houvesse logo uma política econômica a ser contraposta à vigente.

Rosângela Bittar é chefe da Redação, em Brasília. Escreve às quartas-feiras

Coluna em pedaços: o problema da pessoa comum no Brasil

Roberto DaMatta
DEU EM O GLOBO


"Sarney tem uma história suficiente para não ser tratado como um pessoa comum".
Presidente Lula (2009)

"A primeira coisa que um político de lá (de Bruzundanga) pensa, quando se guinda às altas posições, é supor que é de carne e sangue diferente do resto da população".
Lima Barreto (1923)

Incrível semana. O Supremo Tribunal Federal acaba com as implicações legais do diploma de jornalista e desfere um golpe de morte no velho corporativismo hierárquico dos diplomas oficiais já denunciado por Lima Barreto como inventores de "castas doutorais". Eis uma decisão modernizadora, do lado da igualdade e da liberdade que vai promover uma maior responsabilização do mercado no sentido de separar diploma de capacidade profissional, coisa que - nesta mesma semana - foi confundida pelos presidentes Sarney e Lula que defenderam o velho componente hierárquico-aristocrático do Brasil.

De um lado, uma vértebra aberta; do outro, o ideal da imobilidade que ronda o poder à brasileira.
No STF, a medida que reconhece a igualdade e a liberdade como valores centrais da atividade jornalística, pois o papel do jornal não é embrulhar peixe, mas transformar o chamado "real" numa criatura domesticável, compreensível e, tanto quanto possível, bela, verdadeira e suportável. Uma coisa - diz o STF - é o curso de jornalismo; uma outra é a exclusão de quem não tem diploma de exercer o jornalismo.

Na nossa mania tordesilheana de regulamentar o mundo, nosso horror às fronteiras e a nossa obsessão de resolver a realidade com a lei, inventamos diplomas com efeitos legais que dão direitos exclusivos, garantem aumento de salário e livram a pessoa da prisão. Neste sentido, o "canudo" tira o cidadão de condição de pessoa comum, dando-lhe sangue azul ou, como diz Sarney, uma "biografia".

O discurso de Sarney estarrece pela dissociação entre o orador e a instituição que preside. A crise é do Senado, não é dele, Como, se ele é senador e presidente? A esquizofrenia impede responsabilização e justifica as hipocrisias. Não dá mais para pensar que uma coisa é a lei e outra é a policia ou quem cometeu o crime. Ou as regras produzem efeitos ou elas não têm valor. É o zelo pelas normas que garante a legitimidade institucional. Se um jogador de futebol não honra e internaliza as regras do jogo e diz não é dele, mas do futebol, adeus esporte. Como é possível um motorista que nada tem a ver com o trânsito? Ou um prefeito que nada tem a ver com o ilegal?

A capacidade de dissociar-se das responsabilidades inscritas nos cargos é uma característica dos sistemas de éticas dúplices, como, aliás, digo em "Carnavais, malandros e heróis". Neles, quem é especial não se sujeita às mesmas regras dos comuns. Um Lula-presidente percebeu o problema.
Quando metalúrgico, denunciava mais portentosamente do que os jornais; como presidente e pessoa incomum e com "biografia", acusa a mídia. A perspectiva hierárquica está convencida que ninguém pode se orgulhar de ser uma pessoa comum - esse ponto crucial das democracias liberais e do republicanismo. Eis um belo exemplo de como conceito igualitário de cidadania é reinterpretado hierarquicamente pelo senador e pelo presidente quando observam que, dependendo da "biografia", o sujeito está isento de dar satisfações e de ser cobrado pelo que deve ao país que lhe paga o ordenado e mordomias.

Pela angulo da vertente hierárquica, o sonho é ser um "brâmane" ou nobre - ou ambos! Faz tempo eu sugeri que o papel de renunciante do mundo tem também um lugar importante na política nacional, um universo no qual se entra jurando fazer todos os sacrifícios em nome dos famintos e dos pobres e fica-se imensamente rico justamente por causa disso. Pertencer as "altas esferas" e aninhar-se em alguma "boca" - um emprego sem trabalho - ainda é um projeto.
Emprego público é uma contradição em termos porque os funcionários - com as exceções de sempre - não são do público e o sistema opera ao contrario: é o público que lhes deve boa vontade e respeito. Igualzinho ao discurso de Sarney (e a sua defesa por Lula) que, no fundo, é uma rara e importante peça reveladora de como os políticos profissionais brasileiros (no poder) pensam-se a si mesmos. O sistema é duplo. Há uma ética para o cargo e outra para a pessoa que o ocupa. Os cargos criam aristocracias ou "castas". Mas com uma diferença crucial pois, pela brasilianização do sistema de castas que, na Índia, não contempla o individualismo existente entre nós, quanto mais em cima, menos é preciso cumprir as leis. Na Índia, entretanto, ocorre o exato oposto. Lá, um brâmane justamente por ser mais puro (e não mais poderoso) é obrigado a seguir todas as regras e a dar o exemplo. Aqui, porém, como temos uma hierarquização com igualdade, sem interdependências morais, de modo que só as "castas" mais baixas são obrigados a obedecer as leis. Os "brâmanes", sendo pessoas excepcionais e tendo biografias, estão acima das leis que, um outro pedaço do sistema (que se define - eis o problema - como republicano e igualitário) diz que valem para todos.

É justo este dilema que despedaça a coluna. Pelo menos a minha que, depois de um mês de férias e justo tratamento, só vai voltar em agosto.

Roberto Da Matta é antropólogo.

Lula critica imprensa e volta a defender Sarney

Flávio Freire
DEU EM O GLOBO
O CONGRESSO MOSTRA SUAS ENTRANHAS: Presidente diz que Legislativo não pode parar pelo que ocorre "há 40, 50 anos"

SÃO PAULO. O presidente Lula criticou ontem a cobertura da imprensa sobre a crise no Senado, argumentando que o "denuncismo" pode levar a sociedade "a desacreditar de tudo". Frisou que não se pode criar um processo que leve à paralisia do Legislativo por conta de algo que, segundo ele, "acontece há 40, 50 anos". Para Lula, basta que as pessoas que cometeram erros peçam desculpas à sociedade, que os erros sejam corrigidos, que "está resolvido".

- Se houve alguém no Senado que cometeu o erro de contratar uma pessoa indevidamente, essa pessoa é dispensada, pede-se desculpas à sociedade, mudam-se as normas de contratação e está resolvido. O que não pode é estabelecer processo de paralisia da atuação do Legislativo por conta de uma coisa que acontece há 40, 50 anos - disse à Rádio Capital, em São Paulo.

Lula voltou a defender o presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP), dizendo que ele merece respeito pelo seu passado.

- Minha solidariedade é porque o Sarney já foi presidente, tem responsabilidade, tem passado que lhe garante muitas coisas. Está fazendo uma investigação e, se for provado que houve erro, pune-se quem errou, e a vida continua. O que não pode é paralisar o país.

- O problema é que às vezes a gente se esquece de discutir as coisas mais importantes do país e fica discutindo as secundárias - disse ele, que retomou a defesa da reforma política:

- É preciso que a gente faça reforma política para reforçar os partidos e sonhar com uma política um pouco mais nobre.

A diferença entre servir à Pátria e servir-se dela

José Nêumanne
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Esses escândalos no Senado propiciam uma ótima oportunidade para "passar o País a limpo" e "mudar tudo o que está aí", como pregava o PT de Lula quando se fingia de PV (um partido de vestais). A existência de decisões secretas que produzem gastos públicos para pagar privilégios privados caracteriza a traição do princípio elementar da transparência, sem o qual é impossível o cidadão saber como o Estado usa o dinheiro que lhe toma na forma de impostos. A clandestinidade é uma maneira aceitável de desafiar a lei se acoberta grupos políticos que combatem alguma tirania, mas inaceitável se ocorre numa instituição republicana, que exerce um poder de representação da cidadania. No caso, o benefício da clandestinidade aprofunda a crise da representatividade, passando o Congresso de clube privado a bando mafioso.

Dois episódios recentes ilustram a malsã confusão vigente - na Monarquia e nas Nova e Velha Repúblicas, no Estado Novo e na democracia liberal de 1946, na ditadura militar e na atual gestão petista - entre a coisa pública e a vida privada. Ao se defender, da tribuna do Senado, com voz tatibitate e trêmula (favor não confundir com embargada), o presidente da Casa (e ex da República) disse que a crise não era dele mesmo, mas da instituição. E cobrou mais respeito por tudo quanto teria feito pela Pátria.

Suas frases gaguejadas encontraram eco na voz rouca e solícita do "absolvedor-geral da República", o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que se arvorou a subverter o conceito basilar sobre o qual está erigida a nossa e qualquer outra ordem institucional democrática que se preze - o de que "todos são iguais perante a lei". Como o Senado não é uma vaga entidade, mas uma instituição representativa da sociedade, composta por membros eleitos pela cidadania, a crise que o atinge é de todos os brasileiros, em particular dos senadores e, mais em particular ainda, de quem o preside. Se nem isso Sarney conseguiu aprender em tantos anos de "serviço" público, a coisa pode ser mais grave do que parece.

Mas absurdo maior que tentar fugir da responsabilidade de enfrentar a crise é se pretender acima da lei, como Sarney disse ser, da tribuna. E Lula avalizou, direto do Casaquistão, onde foi fotografado envergando um bizarro traje que trouxe à lembrança fantasias carnavalescas do Baile do Municipal, quando havia. Não há ninguém acima da lei: não estava, por exemplo, o heroico garoto que impediu a inundação dos Países Baixos pondo o dedo no buraco do dique. Isso não evita que este redator banque o advogado do diabo e pergunte ao presidente do Senado a que serviços ele se referiu quando avocou a inimputabilidade: os que prestou à ditadura militar, presidindo o partido por meio do qual ela pretendeu se legitimar, ou ao doce constrangimento com que assumiu o cargo máximo no lugar do presidente morto da dita Nova República?

Lula, sim, pode-se gabar de ter sido herói da Pátria quando ajudou a derrubar a longa noite dos porões, comandando operários em greve que desmancharam a frágil ordem legal vigente do regime dos quartéis. Nem isso lhe dá, contudo, o direito de se conceder ou transferir a outrem a condição de inimputável, que no império da lei simplesmente inexiste.

Na condição de conciliador das elites dos bacharéis e patriarcas de antanho com as elites de ex-guerrilheiros e sindicalistas de hoje, e principal beneficiário de seu pacto solidário - como demonstrou, com invulgar brilho, o cientista político Leôncio Martins Rodrigues, neste jornal, anteontem (pág. D2) -, o presidente nada de braçadas nesse incidente. Pois tira proveito da desmoralização do Legislativo, da qual se beneficia legislando em seu lugar, ao mesmo tempo que socorre seus maiorais para continuar tendo-os a seu serviço e sob seu cutelo magnânimo.

Mais que as palavras do pecador irredutível e de seu caprichoso absolvedor, trouxe notícia recente a evidência que não faltava da mistureba de público e privado que a aliança da porteira do curral de votos com a porta de fábrica fortalece neste nosso Brasil varonil. A governadora do Maranhão, Roseana Sarney, herdeira do patriarca, dar ao contribuinte a subida honra de pagar o salário de seu mordomo é a prova mais deslavada de que, para seu clã, prestar serviços à Pátria é permitir que os patriotas lhe paguem os serviçais.

Nesta rede de termos que se cruzam e se explicam entre si, é significativo que o cargo exercido pelo servidor na casa da governadora maranhense em Brasília seja o de mordomo - raiz etimológica do neologismo mordomia, usado para designar os privilégios das castas política e burocrática em série de reportagens de Ricardo Kotscho publicada neste jornal em plena ditadura. Como nas comédias de erros (de Shakespeare aos humorísticos populares de televisão) - e que não se perca a piada pela própria designação do gênero teatral -, o mordomo Amaury de Jesus Machado atende pela alcunha de Secreta, de "secretário", mas também denominação aplicada aos atos clandestinos que permitem esse e outros tipos de abusos.

Secreta recebe, na condição de motorista "noturno" do Senado (que nem sequer funciona tanto assim à luz do dia), R$ 12 mil por mês. Lembro-me de que, quando constituinte, Lula me confidenciou, em tom de espanto, que a "companheira" que servia café em seu gabinete ganhava mais que os mais qualificados metalúrgicos do ABC, seus liderados. Hoje, porém, estando em sua mão o timão do pacto dos patriarcas dos grotões com os hierarcas dos sindicatos, que governa o País, já não se espanta com o fato de o povo pobre pagar ao motorista e mordomo salários com os quais sonham em vão médicos, professores e outros servidores públicos menos votados.

Por que político nenhum, dentro ou fora do Congresso, fica indignado com isso?

José Nêumanne, jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde

No andar de baixo

Clóvis Rossi
DEU NA FOLHA DE S. PAULO

FRANKFURT - Esqueça um pouquinho todo o alarido em torno de Brasil emergente, de Brics e futuras potências. Não que o Brasil não possa ser potência em algum ponto do futuro, próximo ou remoto.

O alarido só ajuda a esconder o presente: o país é ainda do andar de baixo, diria Elio Gaspari.Fato: a renda per capita média do planeta é de US$ 9.316 (pouco mais de R$ 18 mil). A do Brasil é de US$ 8.949, conforme os dados do mais recente Índice de Desenvolvimento Humano.

O andar de baixo (da média mundial) tem uma vastíssima população, aliás: 74,7% dos terráqueos vivem nesses países (ou 5 bilhões de 6,71 bilhões).

Não adianta muito, portanto, gabar-se de que o Brasil é a décima economia do mundo se a renda de cada um de seus cidadãos está na parte inferior da tabela. Assim mesmo porque se trata de média. Se se tomassem apenas os 20% mais pobres, o padrão seria mais africano que brasileiro.

Ah, já que o presidente Lula acha que a mídia deveria divulgar apenas notícias boas, como o aumento do emprego, em vez de se preocupar com "desgraças", vamos falar um pouco de emprego. E fazer de conta que a aula de jornalismo não é apenas mais uma bobagem da já longa lista recente que sai da boca do presidente.

Entre janeiro e setembro de 2008, a geração líquida de empregos formais alcançava, em média, 180 mil por mês, o ritmo mais forte já observado, escreveu Fernando Sampaio, um dos ótimos colunistas desta Folha.

Muito bem: um certo Luiz Inácio Lula da Silva dizia, quando candidato em 2002, que seria preciso criar 10 milhões de empregos nos quatro anos seguintes, o que dá 2,5 milhões por ano e, arredondando para baixo, 200 mil por mês. Se o melhor resultado (180 mil/mês) não chegou lá, também em matéria de criação de empregos estamos no andar de baixo.

O QUE PENSA A MÍDIA

Editoriais dos principais jornais do Brasil

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Clima frio

Míriam Leitão
DEU EM O GLOBO


As oscilações de humor são da natureza das crises. Na segunda-feira, o relatório do Banco Mundial revendo para baixo o crescimento do Brasil derrubou a bolsa. O Banco não tem uma equipe de sábios; trabalha com dados enviados pelos países, portanto o motivo da queda não é a nova previsão. O que há é desconfiança de que os investidores podem ter sido otimistas demais nos últimos tempos.

Essa é a visão do economista José Márcio Camargo, da PUC-Rio e da Opus Gestão de Recursos. Ele acha que o mercado ficou otimista nos últimos tempos sem base em dados concretos da economia mundial.

- O que houve foi uma certa recuperação das expectativas em relação às economias americana e europeia, mas os dados dessas mesmas economias continuam ruins. Agora, o mercado está se dando conta de que os números da realidade não corroboram as expectativas e começa a mudar de humor - disse.

Um fato qualquer pode mudar a direção do vento e do humor, como acontece em momentos de alta volatilidade. Não há substância nem nos movimentos de recuperação, nem nos de queda. A economia mundial está encolhendo e a brasileira também, a despeito de pequenos sinais positivos que surgem nos indicadores.

No caso da economia internacional, há incertezas presentes e futuras.

- Há uma grande desconfiança sobre se o Fed (banco central americano) vai conseguir enxugar a liquidez excessiva da economia. Ele, ao fazer isso, pode assumir perdas para o Tesouro - disse José Márcio.

O economista registra também que houve uma recuperação rápida do preço das commodities que não tem muita base nos dados.

- Os preços voltaram a 2006, quando a economia crescia a uma taxa de 4% ao ano, e agora o mundo está encolhendo cerca de 2%, mas os preços estão nos mesmos níveis, o que é uma contradição. Como as taxas de juros estão muito baixas, as commodities acabaram virando ativos financeiros - afirmou.

A alta das commodities, entendida, inicialmente, como sinal de retomada do crescimento no mundo, pode ser mais reflexo de especulação e fuga para algum ativo que tenha rendimento. Isso significa que essa alta pode não ser sustentável.

Os dados do consumo de energia no Brasil divulgados ontem mostram uma queda forte, principalmente da indústria. O consumo está 14% mais baixo do que há um ano. Em relação ao mercado de trabalho no país, que teve em maio seu melhor mês pelos dados do Caged - estatística dos empregos formais controlada pelo Ministério do Trabalho - o economista acha que os números ainda dão sinais de fraqueza:

- A indústria está destruindo emprego, o setor agropecuário cria emprego, mas temporário. Maio foi bem melhor que abril, mas quando comparado com a média dos empregos criados nos últimos 10 anos, fica bem abaixo. Se for dessazonalizado, o resultado é negativo.

A grande dúvida, segundo José Márcio Camargo, é se a queda do emprego vai abater o consumo e enfraquecer mais a economia brasileira, ou se o consumo, que veio ligeiramente positivo no último dado do PIB, do primeiro trimestre, será forte o suficiente para manter a economia aquecida e incentivar a criação de vagas.

- Pode ser que o quadro fraco do emprego afete em algum momento o consumo. Se a trajetória continuar como está, a PME do IBGE pode indicar alta do desemprego - alertou.

Os dados do acumulado em 12 meses mostram a crise no mercado de trabalho. Em setembro passado, nessa mesma base de comparação, o país tinha criado dois milhões de empregos, agora, a conta nesse mesmo período murchou para 680 mil vagas.

A queda do emprego se dá principalmente na indústria e é fruto da redução forte dos investimentos, como os dados do PIB mostraram. A queda foi de 14%. A diminuição das importações é até maior do que a das exportações, mostrando que o mercado interno está fraco e refletindo a interrupção de compra de máquinas e equipamentos, ou seja, dos investimentos.

No próprio governo, a indecisão nos últimos meses sobre dar ou não um incentivo fiscal ao setor de máquinas e equipamentos estava baseada no fato de que, como ninguém estava investindo mesmo, o incentivo seria praticamente inútil. Pode ser que agora, os técnicos do governo estejam vendo alguma possibilidade de recuperação no setor.

O quadro é de uma economia fria, em recessão, e com uma ligeira recuperação neste segundo trimestre em relação ao primeiro. A alta será pequena e não recupera o terreno perdido. O segundo semestre deve ser melhor, mas não a ponto de fazer com que o ano termine com a conta do PIB no positivo. José Márcio diz que continua com a previsão entre meio e um ponto percentual de retração do PIB de 2009:

- Mas mais para -1% do que para -0,5%.

Foi nessa direção que o Banco Mundial foi com suas previsões, revendo a queda de 0,5% para queda de 1,1%. Nada que o Brasil não soubesse. O mercado continua no reino da volatilidade e como subiu muito - apesar de a economia estar em recessão - pode ter novos períodos de queda pela frente.

- O que tem ajudado o consumo são as transferências de renda, as aposentadorias e o aumento do salário mínimo. Basta ver os dados regionais - explicou José Márcio Camargo.

Para um crescimento sustentado é preciso que, além disso, as empresas invistam, empreguem, e o consumo cresça em todas as faixas de renda.

Para os pobres

Celso Ming
DEU EM O ESTADO DE S. PAULO

Ontem, o presidente Lula fez uma dessas declarações que deixam as pessoas sem saber se é ou não para levá-las a sério.

Disse que, em vez de baixar impostos para incentivar as vendas, é melhor distribuir de uma vez o dinheiro entre os pobres. Eles decidirão em que gastar - e não será com automóveis e provavelmente também não com geladeira nova.

A declaração lembra a de economistas ortodoxos, avessos a tudo quanto lembre política industrial, que é eleger os setores que devem receber prioritariamente recursos públicos.

Diante de qualquer dificuldade, empresários, sindicalistas e políticos estão acostumados a recorrer ao governo. Entendem sempre que um superpai deve socorrê-los, em nome do interesse nacional ou da preservação de empregos. Eles sempre arranjam um enfeite argumentativo destinado a encobrir incompetências administrativas.

O setor de brinquedos, por exemplo, como não pode sustentar tratar-se de um setor estratégico, defende que precisa de benefícios públicos. Não protegê-lo, segundo seus cartolas, é distribuir dinheiro fácil para os produtores da Barbie (Mattel) ou para os irritantes chineses, que jogam sujo no mercado e tal.

Nesta crise, os Estados Unidos e os países ricos da Europa fizeram bem mais do que simplesmente cortar impostos. A decisão foi salvar bancos, seguradoras, sociedades de crédito imobiliário e até mesmo fundos de investimento - desta vez atendendo ao princípio de que não se deve brincar com instituições cuja quebra possa colocar em risco todo o sistema financeiro.

Mas essa decisão de salvar grandes interesses não se limitou às instituições financeiras. O resgate dos detroitossauros (para ficar com a expressão da revista Economist) não teve nada a ver com o sistema financeiro. A crise das grandes montadoras americanas não aconteceu porque estourou a bolha imobiliária. Foi o resultado de uma longa história de erros, omissões e decadência administrativa... que agora ganha um prêmio.

Aqui no Brasil, a decisão do governo - que o presidente Lula agora parece lamentar - também foi estimular as vendas das montadoras e das empresas de aparelhos domésticos, em nome da preservação de empregos. Os demais setores da economia foram ignorados. Tudo se passou como se o emprego proporcionado por uma montadora ou uma indústria de autopeças valesse socialmente mais do que um emprego no setor de serviços ou nos 2,2 milhões de pequenas e médias empresas, o segmento que garante hoje cerca de 17 milhões de postos de trabalho no Brasil.

Enfim, a decisão de preservar o que existe, com os problemas que carrega, é conservadora e dificilmente é a melhor. A redução do IPI para as montadoras guarda um viés sindicalista que tem a ver com a própria história do PT.

Além disso, intervenções desse tipo, especialmente as decididas pelos países ricos, impedem o funcionamento do princípio da destruição criativa, evocado pelo economista Joseph Schumpeter, que é a lei de que os incapazes devem dar lugar aos mais criativos e mais eficientes.

Em todo o caso, o presidente Lula não deve ter pensado em nada disso quando disse que é melhor repassar para os pobres a dinheirama da renúncia fiscal, que ele próprio decidiu.

Para Obama, Lula se ajustou ao mercado

Gilberto Scofield Jr
DEU EM O GLOBO

Obama elogia "o cara" de novo

WASHINGTON. O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, voltou ontem a elogiar o presidente Lula, em entrevista na Casa Branca. Ao falar sobre as relações dos EUA com a América Latina, afirmou que o Brasil e o Chile - o americano se encontrou ontem com a presidente Michelle Bachelet - estão liderando pelo exemplo. E destacou a política de pragmatismo dos dois países. Disse que os EUA podem aprender com seus vizinhos de continente.

Obama - que já afirmara que Lula é "o cara" e "o político mais popular do planeta" - disse que, em tese ("no papel", foi a expressão usada), Lula parece ser difícil de lidar, mas se revelou um líder pragmático, que conversa com todos os países da região, independentemente de suas orientações políticas:

- O presidente Lula chegou através do movimento sindical. Era percebido como um esquerdista radical. Acabou que tem sido uma pessoa bastante prática, que mantém relações por todo o espectro político da América Latina. Ele realizou todo o tipo de reformas de mercado que fizeram o Brasil próspero.

Lula defende impostos altos

Luiz Ernesto Magalhães
DEU EM O GLOBO


Para presidente, carga tributária elevada é necessária para Estado ajudar os mais pobres
Depois de defender, na última semana, a legitimidade da eleição iraniana, as irregularidades no Senado e a legalidade do desmatamento, ontem foi a vez de o presidente Lula justificar a alta carga de impostos do Brasil, uma das maiores do mundo. "Um país que tem uma carga tributária de 10% não tem Estado", disse, ao participar do lançamento da Zona Portuária do Rio. Ele acusou os empresários de não repassarem o corte de impostos, como IPI, para preços. "É melhor pegar esse dinheiro e dar para os pobres", disse.

Direto no bolso?

CARGA PESADA

Lula defende peso dos impostos e critica empresários que não repassam desonerações

LULA ABRAÇA o governador Sérgio Cabral: "Eu às vezes desonero e vocês (os empresários) não repassam para o produto"

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva defendeu ontem no Rio o atual nível da carga tributária no país para beneficiar a população mais pobre. Segundo o presidente, é melhor pegar esse dinheiro e distribuir entre os pobres do que diminuir os impostos cobrados. Num momento em que a equipe econômica estuda prorrogar a redução no Imposto sobre Produtos Industriais (IPI) para automóveis e eletrodomésticos da linha branca, Lula criticou empresários que, segundo ele, muitas vezes são beneficiados por desonerações tributárias e não repassam isso para o consumidor:

- Esses dias eu tive uma reunião com o ministro da Fazenda e muitos empresários. Falei para eles: em vez de a gente ficar desonerando o que a gente está desonerando, é melhor pegar esse dinheiro e dar para os pobres. Eu às vezes desonero e vocês não repassam para o custo do produto - disse Lula, durante o lançamento do projeto de revitalização da Zona Portuária do Rio.

O presidente prosseguiu:

- Nós já desoneramos, neste meu mandato, R$100 bilhões. Imagine R$100 bilhões na mão do povo brasileiro, como essa gente ia comer.

Segundo Lula, cargas tributárias menores inviabilizam o Estado como executor de políticas públicas. Quando Lula assumiu seu primeiro mandato, em 2003, a carga tributária era de 31,4% do Produto Interno Bruto (PIB, conjunto de bens e serviços produzidos no país). No ano passado, segundo estimativas do economista Amir Khair, a carga foi de 35,1% do PIB.

- Sabe qual é a carga tributária da América Central? Em torno de 9%, 11%, 10%. Um país que tem uma carga tributária de 10% não tem Estado. O Estado não existe, não pode nada.

Para Lula, ao investir na área social, o governo sabe que este dinheiro não vai acabar em aplicações financeiras:

- Cada real que você der na mão de uma pessoa pobre volta automaticamente para o comércio, para o consumo e reativa a economia. Muitas vezes você dá R$1 milhão para uma pessoa, que coloca no banco, não faz nada. Só ele vai ganhar dinheiro. Na hora que você dá R$100 para cada pobre em meia hora volta para o comércio. Nem que ele vá para um boteco tomar uma canjebrina (termo nordestino para cachaça). Não fica no banco, não vai para derivativos.

Lula acrescentou que o fim da CPMF, que fez a União perder R$40 bilhões em arrecadação, não levou a uma redução nos preços para o consumidor.

- Perdemos R$40 bilhões da Saúde e não vimos ninguém abater do preço esse 0,38% da CPMF. A gente queria levar médico e dentistas nas escolas. Mas aí disseram: "Não, se a gente deixar R$40 bilhões por ano na mão do Lula, ele vai ganhar as eleições". Ganhei, e vamos ganhar outra vez.

Em entrevista coletiva após a cerimônia no porto, Lula afirmou que o governo concede desonerações onde tem certeza de que isso representará um aumento no consumo. E citou como exemplo a redução do IPI para eletrodomésticos da linha branca, cujo prazo termina dia 30. Lula não informou se o prazo será prorrogado.

À tarde, em São Paulo, Lula afirmou que o país não pode "gastar o que não tem" para sediar a Copa do Mundo, em 2014, lembrando que o campeonato acontece apenas por 30 dias.

Prelude Op. 28, No. 15 - Chopin

Valentina Igoshina
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