Para o historiador José Murilo de Carvalho, tutela do Exército pode ser usada contra o presidente
Por Malu Delgado | Valor Econômico
SÃO PAULO - A tutela do Exército pode ser usada contra o presidente Jair Bolsonaro “caso ele leve o país a situação de grave instabilidade”, avalia o historiador José Murilo de Carvalho, em entrevista ao Valor. Observador atento do papel das Forças Militares na república brasileira e em especial na conjuntura atual, José Murilo concordou em responder a perguntas por e-mail, sua forma recorrente de comunicação, mesmo antes da quarentena.
“Imagino que os militares que embarcaram na canoa furada do governo se veem em um dilema: ou caem fora, ou arriscam fazer as Forças Armadas pagarem o custo dos erros do presidente”, enfatizou, numa resposta enviada dias antes de o ministro da Defesa, Fernando Azevedo, divulgar, na segunda-feira, o documento que enfatiza exatamente o papel constitucional dos militares, como reflete o historiador. “Não creio que a corporação militar esteja disposta a pôr em perigo sua reputação entre a população para defender um presidente que não está à altura do cargo”, disse ao Valor.
Na reedição revista e ampliada de seu livro “Forças Armadas e política no Brasil”, da Editora Todavia, José Murilo já enfatizava ter uma “nova, e mais pessimista, interpretação do papel das Forças Armadas na história de nossa República e na construção de nossa ainda claudicante democracia”. A atuação dos militares, explica ele, merece seu olhar atento desde os tempos em que o jovem universitário, militante da Ação Popular, assistiu perplexo ao golpe de 1964. Nesta revisão, José Murilo dedicou um capítulo exclusivo a 2019, intitulado “Uma república tutelada”.
Além de relembrar o histórico tuíte de abril de 2018, do general Eduardo Villas Bôas - que o historiador classifica como agressão à Constituição pelo fato de pressionar um outro Poder, o Supremo Tribunal Federal, a rejeitar o habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva - José Murilo escreve que já havia “nuvens políticas turvando os céus bem antes”. Em 2015, pontua, o general que comandava a Secretaria de Economia e Finanças do Exército, Hamilton Mourão, já dava fortes declarações sem a usual contenção de militares para se meter em assuntos políticos.
“Não se pode deduzir do fato da inédita presença de militares no governo [Bolsonaro] a existência de um governo militar que se pareça com o que vigeu entre 1964 e 1985”, explica o historiador em seu livro. Mais explicitamente, os militares do governo Bolsonaro não representam as corporações e em uma eventual militarização do governo Bolsonaro, o presidente não teria adesão total das três Forças.
A pandemia serviu para ressaltar dramaticamente o problema de nossa desigualdade social”
Em outro ponto de reflexão que não poderia estar mais atual, José Murilo já salientava em sua obra que a Constituição de 88 manteve o papel de poder moderador das Forças Armadas, no seu artigo 142 (como na Constituição de 1824). É sintomático, continua ele, que não tenha havido “sequer uma tentativa de mudança em 39 anos de governos civis”, como se a república brasileira precisasse dessa bengala para sobreviver. “Cria-se, desse modo, um círculo vicioso: as Forças Armadas intervêm em nome da garantia da estabilidade do sistema político; as intervenções, por sua vez, dificultam a consolidação das práticas democráticas”, escreveu.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: O senhor já havia feito análises minuciosas sobre o papel político dos militares do Brasil, antes e depois da ditadura. Considerando a noção de “intervencionismo tutelar” das Forças Armadas, no Estado Novo, o senhor considera que a tutela militar ainda é característica preponderante do governo Bolsonaro agora, neste atual cenário de política agravada pela pandemia da covid-19?