“Discordantes sobre outros pontos, os intelectuais de oposição reconhecem, quase com unanimidade, que a ruptura política é o resultado do esgotamento do modelo de crescimento e que o governo militar, sob ortodoxia econômica, faz apenas uma tentativa de devolver a primazia aos setores tradicionais. Daí uma conclusão, ao mesmo tempo pessimista e otimista: o Brasil corre o risco de ser condenado à estagnação, mas o momento só pode ser um intervalo, já que o governo mergulha num impasse” - Daniel Pécaut
O título e a epígrafe extraídos do livro de Daniel Pécaut, Os intelectuais e a política no Brasil. Entre o povo e a nação (1990), chamam atenção para uma questão por demais atual nestes dias de inúmeros eventos relativos aos 50 anos do golpe do 1964. Trata-se da abstração da história política nas interpretações da destituição do presidente João Goulart divulgadas nos anos imediatos ao golpe de Estado. Os seus autores, intelectuais de oposição, viam a deposição de Jango - e a nova circunstância pós-64 - como uma decorrência de processos estruturais. Nessa ótica, o governo reformista não passava de uma ilusão, tendo que chegar àquele desfecho, e o novo governo, por suas orientações recessivas, levaria a economia brasileira a dificuldades e contradições insalváveis e não iria muito longe.
A ocasião é oportuna para ser relembrada, pois hoje a luta democrática e a derrota do regime de 1964 são descritas em não poucas narrativas como uma espécie de história sem todos os protagonistas visíveis, em que orientações políticas e atores responsáveis pela conquista do Estado democrático de Direito aparecem esmaecidos.
No seu livro, Daniel Pécaut mostra o clima intelectual à volta daqueles intérpretes, apresentando duas linhas de argumentos, influentes nas esquerdas da época: 1) a dos que se centram no tema da estagnação a que estava condenado o país, e veem a situação ditatorial como um intervalo, pois a ditadura logo caminharia para o impasse; e 2) a das visões que pensam a relação entre economia e política igualmente sobredeterminada pelo econômico (Pécault, 1990, p. 222), o que implicaria, como será referido mais adiante, desconsiderar a política como meio eficaz de resistência ao regime de 1964.
Sublinhemos na apresentação de Pécaut alguns traços de cada um desses tipos de pensamento.
O autor toma como referências emblemáticas da primeira linha das argumentações textos de Celso Furtado e de Hélio Jaguaribe, intelectuais já gravitantes na segunda metade da década de 1950 e nos primeiros anos 1960. Furtado, um manheimiano que esteve à frente da Sudene e depois foi ministro do planejamento de João Goulart, considerava, naqueles anos cepalinos, viável encaminhar no Brasil um processo de superação do subdesenvolvimento por meio de reformas capitalistas e nos marcos do Estado democrático (Furtado, 1962). E Jaguaribe, um quadro antigo do Iseb, que já era conhecido polemista nos debates públicos sobre o desenvolvimento do capitalismo nacional e sobre a reforma do Estado (Jaguaribe, 1958){1} .
Em textos de 1967-1968, Furtado retoma e radicaliza - Pécaut marca esta referência - a tese do esgotamento do modelo de crescimento por meio da substituição das importações, anunciada em 1963 por Maria da Conceição Tavares no seu artigo “Ascensão e declínio do processo de substituição das importações”, publicado em 1964 (uma “ilustração das teorizações sobre os bloqueios estruturais, desenvolvidas por outros autores nos anos seguintes”, cf. Pécaut, op. cit., p. 222). Pécaut observa que Furtado se volta não só para os “entraves” ao desenvolvimento brasileiro, sobretudo a perpetuação da solidariedade entre industriais e proprietários das terras (“contrariamente ao tipo ‘clássico’ de desenvolvimento capitalista”), e a fraqueza do movimento sindical por causa dos salários operários “relativamente elevados” (Furtado, citado de texto de 1967; as expressões entre aspas são suas; ibid., p. 223). O economista menciona também o “espectro da estagnação”: “mesmo as decisões racionais, explica Pécaut, não permitem escapar das distorções estruturais que acompanham a industrialização” (idem); “é nesse sentido que se pode atribuir ao problema da estagnação latino-americana um caráter estrutural” (expressão de Furtado em Dependência e estagnação na América Latina: uma abordagem estruturalista, de 1968, originariamente citado por Francisco de Oliveira no seu livro Celso Furtado, de 1983; idem).
A esse diagnóstico dos “bloqueios estruturais", escreve o autor de Os intelectuais e a política no Brasil, acrescenta-se a condenação das orientações econômicas dos novos governos “que levam direto à catástrofe” (idem). Pécaut registra que, em artigo de 1967, Furtado diz que essas orientações visavam a “ruralização do Brasil”, buscando eliminar “a atração exercida pelas cidades, reduzindo os investimentos públicos e privados nas regiões urbanas [de modo que] a economia tenderia a estender-se, horizontalmente, isto é, com modificações mínimas nas formas de produção.” (Furtado, citado de outro artigo de 1967; idem). Caso esse projeto se realizasse, avalia Furtado, “o Brasil talvez alcançasse ilusória paz social”, mas ficaria afastado da “revolução tecnológica”, e os “enormes recursos naturais do país, em especial as terras abundantes, teriam sido utilizados contra o seu próprio desenvolvimento.” (Idem).
Hélio Jaguaribe também procura mostrar o caráter recessivo da ditadura. Pécaut frisa este traço marcante do pensamento do isebiano nessa época, dizendo que Jaguaribe acentua as consequências da abertura incondicional da economia brasileira aos investimentos estrangeiros que levariam o país “para uma insuportável concentração de riqueza e para a estagnação” (expressão de Jaguaribe, citado de artigo de 1967; ibid, p. 224). Para Jaguaribe, estas implicações “revelam 'contradições' que minam o modelo” (idem). A primeira, diz ele, "decorre da impossibilidade classicamente formulada por Marx de manter, por muito tempo um processo de concentração econômica” (idem). A segunda, explica Pécaut, resulta de que, “na ausência de transformações sociais, os investimentos estrangeiros não têm mercado interno que possa atraí-los” (idem). O ponto de Jaguaribe consiste em que nessa abertura se estabelece uma relação “colonial-fascista” entre os EUA e o Brasil, o que provocaria “uma redução da ajuda à economia brasileira e bloquearia o desenvolvimento autônomo e endógeno”. (Jaguaribe citado por Pécaut; idem).
Pécaut assim sintetiza sua apresentação do primeiro tipo de pensamento: “esgotamento da substituição das importações”, “obstáculos ao desenvolvimento”, “contradições ‘explosivas’”: o conjuntural desaparece por trás do ‘estrutural’” (ibid., p. 225). O autor complementa esta sua proposição com observações de Albert O. Hirschman sobre os economistas, em texto de 1971. Pécaut anuncia a primeira desse modo: “A súbita mudança na apreensão das tendências econômicas não pode ser compreendida sem que se introduza a mediação nos modos de percepção. Na fase do desenvolvimentismo, os economistas subscreveram a visão de uma racionalidade sem falhas, concretizada no planejamento” (idem). Outra observação de Hirschman é apresentada nestes termos: os economistas “alimentaram também esperanças de uma ‘homogeneização’ progressiva da sociedade à medida que avançasse o desenvolvimento. O próprio Celso Furtado anuncia que o Brasil havia ‘conseguido os seus centros de decisão e escapado da sua condição periférica’. A interpretação do desenvolvimento era indissociável dessa ideologia.” (A última expressão entre aspas é de Hirschman, citado do texto de 1971; idem). E assim: “Bastaria surgirem uma inflação e restrições à capacidade de importações para que a ideologia voasse aos pedaços. Iniciam-se a pesquisa das causas ‘estruturais’ do ‘fracasso’ e a busca de soluções não menos ‘estruturais’” (idem).
Para o tema da conjuntura, o autor também se vale de Hirschman: “Tudo se passa como se a inflação do nível de preços tivesse produzido, dento do domínio econômico, uma inflação na definição dos ‘remédios fundamentais’” (Hirschman citado de texto de 1979; idem). Pécaut contextualiza sua proposição, no registro da economia: “De uma ideologia passa-se à outra: a do desenvolvimento bloqueado e fadado a auto-alimentar suas distorções, a menos que passe por uma completa reorientação no sentido de uma lógica ‘endógena’. Contra as medidas de rigor do novo governo, defendem-se investimentos maciços nos setores-chaves. Desta forma o economista continua a colocar-se (imaginariamente, pois está afastado do poder) na perspectiva da restauração de uma racionalidade perfeitamente controlada” (idem).
Quanto à questão da relação entre economia e política, Pécaut continua recorrendo ao tema do posicionamento dos economistas, os quais, no período desenvolvimentista, haviam adquirido “uma autoridade de primeiro plano”. Citemos três passagens do autor: 1) (Os economistas) “eles mesmos se encarregavam de anunciar certas correlações entre economia e política” (idem); 2) “A difusão do marxismo acentua-a (a autoridade de ‘primeiro plano’ -- RS) ainda mais: já não há análise do social que possa dispensar as premissas econômicas” (idem); e 3) “Os sociólogos também enveredam por esse caminho e, atrás deles, todos os intelectuais de oposição. O que os economistas propõem é retomado, muitas vezes de forma abrupta, pelos vulgarizadores, tentados pelos modelos explicativos gerais” (idem).
Pécaut observa que “dos ‘bloqueios econômicos’ ao ‘autoritarismo estrutural’, a consequência parece adequada. Os economistas, porém, mostram prudência para efetuar o salto de um a outro. Sem dúvida, Celso Furtado sugere, desde antes de 1964, que o impasse econômico [no tempo do governo de Jango – RS] pode levar ‘à ruptura do atual equilíbrio de forças e à superação dos métodos políticos convencionais’” (esta expressão entre aspas é do próprio Furtado - RS) e que “claramente se entende que as opções econômicas do regime supõem recurso à violência: o retrocesso, o arrocho salarial e o rompimento com o nacionalismo econômico só podem se realizar a esse preço” (ibid., p. 226). No entanto, há “uma grande distância entre esta argumentação e a que prevalecerá após 1968 e que fará do ‘Estado autoritário’ um componente funcional e necessário ao modo de desenvolvimento: o plano político será então totalmente reduzido ao plano econômico” (idem).
Estão aí, muito resumidamente, alguns traços da apresentação de Pécaut de uma “etapa da utilização da ‘causalidade estrutural’”, como ele chama, pois mais um passo será dado com a difusão da teoria do “desenvolvimento do subdesenvolvimento”, elaborada por André Gunter Frank com base na sua interpretação das relações entre economias periféricas e o capitalismo mundial (idem). Pécaut observa que, a partir de 1965-1967, esta fórmula se expande como um “rastilho de pólvora” (ibid, p. 228), e também recebe complementações, como a da tese de Rui Mauro Marini segundo a qual “a integração do Brasil na órbita do imperialismo conduz ao agravamento da lei geral da acumulação capitalista, isto é, a absolutização da tendência ao pauperismo, levando ao estrangulamento da própria capacidade de produção do sistema” (Marini, citado de texto de 1969; idem).
Para Pécaut, entre 1967-68, era a vez da teoria da dependência. Ela devia circular entre o público intelectual “como uma condensação cômoda de todos os temas precedentes: bloqueios estruturais, subdesenvolvimento acompanhando o desenvolvimento imperialista e o pauperismo” (idem).
Visto do plano das estratégias, o espaço público político se divide. Pécaut indica as duas perspectivas da esquerda intelectual dessa época: “Foi só depois de 1968 que o ‘estrutural’ se apoderou também da esfera política. A proclamação do AI-5 influiu nisso, porém houve dois acontecimentos intelectuais não menos importantes. O primeiro, a difusão da ‘teoria da dependência’, que não só condensa temas esparsos como permite uma articulação estreita e ‘estrutural’ entre economia e política. A partir daí, a ditadura se separa de suas origens: a memória da polarização de forças sob Goulart vai se apagando e assume o aspecto da expressão política da dependência” (ibid., p. 229). Pécaut aponta o outro acontecimento intelectual: “Em seguida, a descoberta de que a economia não estava condenada à estagnação. Duas obras impedem, entretanto, que se fechem os olhos para ela. A primeira é o livro de Cardoso e Faletto, Dependência e desenvolvimento na América Latina, publicado em 1969. Suas últimas páginas admitem que pode haver crescimento no contexto de um ‘desenvolvimento associado’. A segunda é o artigo dos economistas Maria da Conceição Tavares e José Serra, com o eloquente título: “Além da estagnação: uma discussão sobre o estilo de desenvolvimento recente no Brasil” (texto apresentado em seminário da Unesco e da Flacso (Faculdade Latino-americana de ciências sociais), em 1970; publicado em 1972, em Buenos Aires; ibid., p. 230). Pécaut recorda os temas do texto: a interpelação à teoria da estagnação, o crescimento acelerado desde 1968, o papel dos setores de ponta e da incorporação tecnológica, o reconhecimento de que a integração à economia internacional não leva necessariamente ao subdesenvolvimento (idem) .
A abertura analítica, “lenta, difícil e polêmica”, no dizer de Pécaut, não supera o dogma da estagnação: “O fato de haver crescimento não constitui um ‘obstáculo’ para a leitura ‘estrutural’ do plano político. Ao contrário, para muitos intelectuais, é um convite para ver no Estado e no regime político simples engrenagens do processo de acumulação” (idem). Esta perspectiva teria desdobramentos no plano das estratégias das oposições à ditadura.
O clima intelectual descrito por Pécaut levava à denúncia da estratégia de frente única não só no tempo de Jango, mas também no imediato pós-64, quando se estruturava a resistência ao novo governo e, mais grave ainda, durante a situação dramática dos anos de chumbo. Ele ainda levava à previsão do fim da ditadura no curto termo, e não contribuía para evitar a radicalização das esquerdas, particularmente da militância jovem, ao induzir a não se ver saída que não fosse o confronto direto com a ditadura, o que teria trágicas consequências.
A resistência política ao regime de 1964
As interpretações de esquemas explicativos gerais descreviam o mundo brasileiro como uma totalidade que abstraía da análise a vida nacional diversificada e dinâmica. O campo da luta contra a ditadura era visto como um terreno sem possibilidades de mobilização da política{2} . Essa abstração levava a pensar a luta antiditatorial como revolução diruptiva e, usando a expressão de Pécaut, “oportunidade de um nova ‘organização’ do poder’” (Pécaut, op. cit., p. 229), em modelo oposto à democracia representativa, tida por não poucos autores como democracia burguesa e formal.
Noutro campo, correntes e grupos partidários derrotados em 1964 permaneceram justamente na esfera da política, buscando se reativar e atrair contingentes atingidos pelo novo regime. Como um dos artífices dessa estratégia unitária, já em maio de 1965, a esquerda pecebista insistia em colocar as liberdades democráticas no centro da resistência à ditadura (PCB, 1965){3} . Nesse campo da oposição, a partir da luta política, se desenvolveria uma mobilização que se expandirá a outros âmbitos sociais e da cultura, como testemunha a história política do período.
Não resulta do acaso que, em outubro de 1965, o novo governo fosse derrotado pelos candidatos da oposição nos estados da Guanabara (Negrão de Lima) e Minas Gerais (Israel Pinheiro), nas eleições para governador. Ainda em 1965, começam as articulações visando criar o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) como ponto de convergência das oposições.
Neste contexto, iria se expandir - nos anos 1966, 1967 até 13 de dezembro de 1968 – um movimento de opinião pública ativado pela resistência política ao governo, pelas iniciativas de intelectuais, revistas de opinião política e jornalistas, por áreas da cultura e ambientes universitários, pelo associativismo, particularmente sindical e outros setores animados pela recuperação das suas entidades representativas. Eram anos de crescente vida intelectual e política, cujo ponto alto foi a passeata dos 100 mil no Rio de Janeiro.
Ante essa incipiente movimentação (ampliada, no plano político, pela aproximação entre Juscelino, Jango e Lacerda, em 1966 na Frente Ampla), a ditadura impôs o Ato-5 em 13/12/68. Fechou o Congresso Nacional, cassou mandatos e suspendeu direitos políticos, aumentou a perseguição aos oposicionistas, espalhando a espionagem em muitas direções. Silenciou aquela ativação politico-cultural e estudantil, extremou a repressão aos grupos de esquerda, levando o pais a um tempo sombrio.
Durante os anos de chumbo (1969-75), a tortura passou a ter uso sistemático nas prisões, um grande número de opositores desapareceram e os exílios aumentaram em grande proporção, se comparados aos do tempo subsequente ao golpe. Cada vez mais o Estado brasileiro assumia traços de um estado policial (MDB, 1974; 1975). Parecia que o governo era comandado por um ente invisível chamado “Sistema” (cf. Castelo Branco, 1969-71; 1979).
O endurecimento do regime revelava que a destituição de Jango não fora um mero golpe de estado. A ditadura fora se convertendo no que então se chamou o “regime de 1964”, em alusão ao fato de que em abril de 1964 começara a alterar-se a forma da dominação estatal. Esta conceituação levava a dois pontos de referência: a circunstância era de derrota e as oposições operavam na defensiva, com isso afastando da luta antiditatorial tanto a aposta em catástrofe econômica que esgotasse o regime no curto termo, como a ilusão da derrubada da ditadura por meio de confrontos.
Em oposição àquelas interpretações, o PCB não se desobrigou da responsabilidade ante o seu momento, e por isso poria as vistas justamente nas conjunturas, vale dizer, nos processos reais e complexos da situação que estava posta; e também iria ser dos primeiros a reconhecer o crescimento sob o autoritarismo{4} . O analista de conjuntura do PCB, Armênio Guedes, via as questões econômicas de um ponto de vista oposto à ótica do catastrofismo estrutural, procurando examiná-las sob o prisma da sua incidência na vida da população e nas reações dos atores. Ele se concentrou na conjuntura pós-AI-5, buscando perspectivas para a resistência ao regime de 1964 por meio da política, terreno onde os protagonistas, com todas as restrições que lhes eram impostas, poderiam mover-se no âmbito das iniciativas por meio das quais se tornava possível ativar um campo oposicionista tendente a crescer. Armênio Guedes procura pontos de referência para seu partido e através dele para as correntes diversificadas das oposições atuarem nos anos mais violentos do regime de 1964. O analista observa, em 1970, no primeiro ano do governo Médici, que a tendência reacionária ainda podia aumentar, no entanto, vista em perspectiva, atentando para a caracterização da ditadura, ela podia ser barrada. Examinando as marchas e as contramarchas do regime, dizia que a radicalização de dezembro de 1968 abria uma perspectiva (“estou otimista”, afirmava em pleno 1970, no tempo do “Brasil, ame-o ou deixe-o”).
Armênio Guedes põe atenção nas áreas de conflito que, segundo ele, ampliavam-se com a exacerbação da natureza do regime em várias direções (liberdades, instituições políticas, economia nacional, intelectualidade e cultura, estudantes, e assim por diante). O publicista via nos “males do regime” possibilidades de oposição, quer seja contestação manifesta, de caráter parcial (em relação a um ou a mais aspectos da ação do regime), quer seja descontentamento latente. Atento aos movimentos da conjuntura, ele observa que, à medida que avançava a tendência fascistizante, crescia a insatisfação e o regime perdia apoios no mundo político, o que era um dado dos mais importantes para o seu isolamento.
Ai estão o perfil e o sentido das ações da frente democrática liderada pelo MDB.
O PCB foi um defensor intransigente da estratégia de resistência de desenvolvimento progressivo, assim nesta ordem: resistência, isolamento e derrota da ditadura.
Depois, a história política mostra como áreas ativas do MDB, aglutinadas desde 1965 (quando da sua criação) iriam suscitar uma mobilização que cresce até tornar-se um movimento nacional. Animada pela anistia de 1979, a "rebeldia nacional" (expressão da resolução do PCB de 1970, já citada) se expande, como se viu em eleições, nas Diretas Já e nas mobilizações e greves trabalhistas urbanas e rurais, até derrotar o regime ditatorial quando foi eleito em 1985, no Colégio Eleitoral, uma presidência civil (Tancredo-Sarney). A Carta Cidadã de Ulisses Guimarães viria, em 1988, consolidar a forma democrática de vida dos brasileiros e assegurar marcos programáticos para as mudanças.
Os eventos ora em curso sobre 1964 são por demais oportunos para firmar a cultura democrática nestes tempos de desvalorização da política e da democracia representativa e suas instituições. A ida aos tempos de João Goulart e do regime de 1964 revive a história política do período, recorda a repressão política, nos anos de chumbo, dura e violenta; e traz até nossos dias um padrão de agir das esquerdas por meio da política referido ao conjunto da sociedade brasileira, cujos marcos se desenvolveram no contexto da frente democrática de resistência ao regime de 1964.
* Professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ.
{1}A propósito do sentido da teorização de Jaguaribe sobre o “Estado cartorial”, ver Prado Jr., 1977; 1978).
(2}O tempo do AI-5 foi visto como autocratização completa do sistema político brasileiro, o que punha em dúvida a própria efetividade da resistência democrática. (Santos, 2012, in Guedes, 2012).
{3} O PCB receberia influxos da vivência na longa resistência democrática no seu próprio modo de pensar. Os pecebistas tentariam redimensionar suas concepções de mudança social sob hegemonia de classe, particularmente entre 1976 e os primeiros anos 1980.
{4} Diz a Resolução do Comitê Estadual do PCB do estado da Guanabara (março de 1970), escrita por Armênio Guedes: “O crescimento é um fato, e seria uma estultícia negá-lo. Um dos elementos essenciais da política do Partido é dado pela análise dos fatos. Há muito que ele se esforça para superar aquele tipo de primarismo que vê as esperanças do êxito de uma política revolucionária unicamente no caos e na catástrofe da política econômica das classes dominantes.” (PCB, 1970)
Referências bibliográficas
CASTELO BRANCO, Carlos. Os militares no poder, vol. 3 (1969-1971). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.
FURTADO, Celso. Reflexões sobre a pré-revolução brasileira, in Revista Ciências Sociais, II, n. 1, março de 1962.
JAGUARIBE, Hélio. O nacionalismo na atualidade brasileira, Iseb, Rio de Janeiro, 1958.
MDB, “Le MDB face a la conjuncture politique eleitorale (les lignes du programme)”, texto divulgado pelo MDB gaúcho em 1974, in Études Brésiliennes (revista pecebista editada em Paris) n. 1, janeiro de 1975.
PCB. Resolução política do Comitê Estadual do PCB da Guanabara (março de 1970), in Guedes, Armênio. O marxismo político de Armênio Guedes. Brasília/Rio de Janeiro: FAP-Contraponto, dezembro de 2012.
PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil. Entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990.
PRADO JR., Caio. Perspectivas em 1977, in Prado Jr., Caio. A revolução brasileira (1966). São Paulo: Brasiliense, 6ª. edição 1978.
SANTOS, Raimundo. Ensaio introdutório a O marxismo político de Armênio Guedes. Brasília/Rio de Janeiro: FAP-Contraponto, dezembro de 2012.
[Este texto faz parte da coletânea As armas da política contra a ditadura, Fundação Astrojildo Pereira, no prelo].