- O Estado de S. Paulo
O referendo na Bolívia, que sepultou a possibilidade de Evo Morales disputar um quarto mandato, é mais um sinal dos novos tempos. O primeiro foi a derrota de Nicolás Maduro nas eleições legislativas na Venezuela, que deu à oposição a maioria no Congresso. Acuado por uma crise econômica sem precedentes e por um estreitamento de sua margem de manobra política, Maduro é uma pálida imagem do que foi o comandante Hugo Chávez em seu país e na América do Sul.
O segundo sinal foi a eleição de Mauricio Macri, que restaurou a esperança e a confiança no soerguimento da Argentina, após o desastre em que acabou o período kirchnerista. Em pouco mais de dois meses o novo presidente sinalizou os novos rumos do país: a liberalização e a abertura da economia, com medidas concretas como a liberalização de preços, a retirada dos impostos e registros de exportação, a determinação em retomar negociações com parceiros comerciais e credores externos.
O Brasil também caminha em direção à mudança. Cresce a convicção de que as políticas do governo não se sustentam. Dilma Rousseff vive sob o fogo cruzado das pressões, de um lado, de parte do Ministério, do Partido dos Trabalhadores (PT) e dos movimentos sociais para que afrouxe a austeridade fiscal – se é que chegou a ser implantada efetivamente – e abandone partes essenciais da reforma da Previdência; e, de outro, dos agentes econômicos e de boa parte da opinião pública para que reduza os gastos públicos, implemente reformas efetivas nos campos previdenciário, tributário e trabalhista para evitar uma deterioração ainda mais séria da economia, sobretudo no momento em que a crise da economia mundial parece chegar a nós, mais uma vez, agora sob o efeito do baixo crescimento, da perda de ativos e ameaça ao sistema bancário nos países desenvolvidos.
Ora Dilma se volta para o PT e os sindicatos e declara apoiar suas reivindicações, ora promete aos empresários austeridade e as reformas da economia. Os jornais publicam, cotidianamente, os acenos da presidente a um e outro lados, como se fosse possível conciliar propósitos antagônicos, que se distanciam ainda mais pela radicalização que o próprio PT estimulou para ganhar as eleições e agora, no governo, não consegue mais conter.
Dilma não tem como resolver o dilema hamletiano em que se enredou, porque pretende ser e não ser ao mesmo tempo. Precisa de ambos os lados: do PT, dos partidos aliados e dos sindicatos, para manter os votos que protegem o seu mandato; e dos empresários, para preservar o que resta da confiança e evitar a falência da economia.
Sem falar da vulnerabilidade externa, pois o Brasil já é classificado como risco maior do que a Turquia, que está em guerra, e a Rússia, abalada por severas sanções econômicas.
A paralisia do governo, sobretudo no trato da economia, alimenta a insegurança e o temor de que o País não aguentará o agravamento das contas públicas, o aprofundamento da recessão e do desemprego, a persistência da inflação e a imprevisibilidade da Operação Lava Jato. O impasse reforça o pressentimento de que, depois da Venezuela, da Argentina e da Bolívia, será a vez do Brasil.
Vale lembrar que a América Latina, não obstante as diferenças entre os países, evolui em ondas. Nos anos 1960, foi a vez dos golpes militares. Em seguida, nos 80, a década da democratização. Nos anos 90, foram as reformas econômicas. Por fim, no início do novo século, a emergência dos movimentos populares e as consequentes reformas sociais.
Agora, a sociedade parece dizer sim às reformas sociais, mas não à custa da desorganização da economia, como ocorreu na Venezuela e na Argentina, e está em via de ocorrer no Brasil, até porque o descalabro fiscal, a inflação, o desemprego e a recessão começam a corroer importantes conquistas sociais construídas ao longo de 20 anos, desde o lançamento do Plano Real.
Se o governo e o PT parecem não querer enxergar o que acontece em nossa vizinhança, obcecados que estão pela ameaça de impeachment da presidente e pelo propósito de permanecer no poder, custe o que custar, parece estranho que a oposição não tenha ainda tirado todas as consequências das profundas transformações em curso. Parece, também, dominada pela pauta do Congresso Nacional, a favor ou contra o impeachment. Não conseguiu ainda convergir para uma liderança, ou lideranças comuns. Não logrou apresentar uma proposta alternativa à população que afirme, com base em programas concretos, aquilo que parece ser a demanda da sociedade: reforma social, sim; desestabilização da economia, não. Nem alcançou até agora a sintonia com os segmentos que parecem constituir o derradeiro baluarte do petismo, ou seja, as camadas de renda mais baixa, sobretudo no Nordeste, em suma, “o povo” de que o PT se julga dono e que a oposição tem o pudor de conquistar.
A primeira eleição de Lula mudou o jogo da política. O líder petista mostrou que era possível ganhar eleição à revelia das elites e da mídia, graças à sua capacidade de falar a língua do povo, adotar a sua agenda e governar para ela. A partir de então, a fórmula tem dado resultado. Hoje, no entanto, o PT e seus dirigentes, Lula incluído, baixaram ao fundo do poço na aprovação popular por terem traído a confiança das brasileiras e dos brasileiros. Mas se os partidos da oposição não conseguirem levar em conta os novas realidades da sociedade e as novas regras do jogo político, é possível que a fidelização das massas – por ganhos sociais por vezes reais, outras vezes enganosos e fruto de uma propaganda maciça – venha a dar mais um alento eleitoral ao PT, apesar dos destroços na economia e da corrupção estampada pela Lava Jato.
---------------
*Sergio Amaral é diplomata, foi Secretário de Comunicação Social da presidência da República no governo FHC