domingo, 7 de junho de 2020

*Paulo Fábio Dantas Neto - Sobre coragem: esquerda e protestos de rua em hora de pandemia

O mito da coragem como parteira de soluções políticas tem prosperado muito nesses tempos de isolamento social e não apenas no ambiente sombrio da extrema-direita. Entre nós, democratas - em especial quem se auto localiza como democrata à esquerda - muitas pessoas sentem-se “culpadas” por estarem “fazendo nada” numa hora tão dramática. Essa culpa - que não nos deixa perceber, de modo profundo, o isolamento como também um gesto de cooperação social - torna as pessoas mais inclinadas a ver como benigna e superior a atitude de quem expõe sua própria pessoa e as de seus concidadãos, incluindo familiares e amigos, a um vírus de potência letal, em nome de uma causa. O impulso, então, é o de atender a um chamado mobilizador, para fazer, na rua, a sua parte e não se sentir alienado, ainda que seu móvel pessoal não coincida com a causa de quem faz o chamado.

Esse impulso heroico faz democratas sinceros duvidarem da eficácia da prudência política. A justificativa racional para o ato imprudente é de que não resta alternativa diante da ineficácia do método político “convencional” (eu diria democrático), em seu necessário tempo lento. Vamos, então, fazer aquilo que os políticos, que têm o dever de fazer, não fizeram. Aquilo o que? Tirar Bolsonaro. Estamos certos, ou ao menos esperançosos, de que indo à rua agora, faremos isso?

Não, não estamos, ao menos a maioria das pessoas não delira. O que se espera é ficar em paz com a consciência e/ou obter reconhecimento social de que fez alguma coisa que está ao seu alcance, como cidadão ou cidadã. Cada caso é um caso, é óbvio, mas penso ser comum dar-se o oposto do que diz a justificativa do gesto corajoso. O juízo negativo sobre o tempo e o método da política é veraz. Mas ele é resultado, não causa, da força interna, de caráter ético-político, que pode nos levar à rua.

Quero argumentar contra a ida às ruas nesse momento, sem com isso desconhecer a legitimidade desse impulso humano, que é precioso para que a política não se reduza a cálculos utilitários. E quero argumentar contra a ida às ruas propondo a democratas que se sentem tomados por esse impulso que não virem as costas a um juízo sobre sua eficácia. Quando a convicção desconsidera a eficácia, a política se dissolve na ideologia. Age-se só por convicção, sem medir as consequências do ato, para si e os outros. Para se ir à rua em momento de pandemia é preciso ter mais que convicções. A ação precisa ser, além de digna, útil. Numa palavra, é preciso ter, também, objetivos. Eles precisam estar além do desejo de quem os traça para serem traduzidos em público. Compartilháveis e negociáveis para que gerem ação realmente coletiva. Sem isso, consciências individuais podem até ser aplacadas pela coragem. Mas a democracia acabará cedendo espaço a algum tipo de mito.

*Fernando Henrique Cardoso - Tempos incertos

- O Estado de S.Paulo / O Globo

O que nos tem faltado é quem inspire confiança em nós mesmos, em lugar de ódio e rancor

Os tempos modernos caracterizam-se pela racionalização crescente, dizem os cientistas sociais. Se é verdade que nas culturas mais simples as crenças ditavam o que se devia fazer, com a complexidade do mundo contemporâneo, sobretudo pós-industrialização, a ciência substituiu as crenças. Se isso não vale para o transcendental, devia valer como baliza para as decisões, em especial as que implicam responsabilidade pública.

A ciência serve de guia para recomendar o provado, não elimina a necessidade de juízo político e moral sobre decisões a tomar. Dilemas difíceis chegam em situações de grande incerteza, como agora, pois não só o futuro parece indefinido, mas o presente se mostra volátil. Nestas horas é que mais se requerem lideranças para responder a desafios que exigem soluções complexas. É tarefa de todos ajudar nos resultados a partir do que se alcançou com o conhecimento. Mas os rumos são de responsabilidade moral dos que lideram. Cabe a eles decidir com base no conhecimento, pensando no que é bom ou mau para as pessoas.

Comentaristas repetem que enfrentamos uma “tempestade perfeita”. Chove e venta copiosamente: o coronavírus é pandêmico, a economia mundial está capenga, para não dizer paralisada ou regredindo, e em muitos países os donos do poder creem em mitos – que não são como os dos primitivos, aos quais não havia saber que se contrapusesse.

Assustados com a tempestade, os que, além de crer neles, pensam encarnar mitos, assumem ares de valentia. Na verdade, receiam que sua força se esvaia no confronto com a realidade, que não compreendem. Buscam culpados e inimigos, em vez de diálogo e convergência para atravessar o temporal com o menor dano possível para a economia e as pessoas, sobretudo as do andar de baixo.

Marco Aurélio Nogueira* - As ruas como recurso e dilema

- O Estado de S. Paulo

A democracia não vive sem protestos e gente nas ruas. Se um governo ameaça a sociedade, como pedir para os que se sentem afetados não se manifestarem? Há, porém, a pandemia e a correlação de forças

Como fazer manifestações presenciais – nas ruas – em plena pandemia? O vírus está vivo, em propagação ascendente, e todo contato é fonte de perigo. Manifestações aglomeram, mesmo quando feitas com organização.

Mas como pregar que as pessoas não se manifestem? É provável que muitas estejam cientes do contágio a que estarão expostas. Mesmo assim aceitam o risco, o que é meritório. Há um quê de paradoxal aqui: combate-se a crise sanitária com uma mobilização que, no limite, pode agravar a própria crise. Também ocorre que muitos manifestantes são pessoas já expostas diariamente ao vírus, para as quais ir ou não às ruas pode não fazer maior diferença em termos de segurança sanitária.

Talvez não haja outro modo de proclamar o mal-estar, a indignação, a revolta. Afinal, tem sido o próprio governo a promover tal estado de espírito coletivo. Martelando o conflito e o autoritarismo o tempo todo, Bolsonaro entrou em atrito com fatias crescentes da sociedade. Hoje, pesquisas indicam que seu apoio não passa de 30%, e é declinante. Inevitável que sempre mais gente queira ir às ruas, por a angústia para fora, sacudir o pó acumulado pelos longos meses de quarentena. É um estado de espírito que necessita de ponderação e análise circunstanciada da realidade concreta.

A democracia e a luta por ela não vivem sem protestos e gente nas ruas. Se um governo ameaça a sociedade com retrocessos autoritários, como pedir para os que se sentem afetados não se manifestarem? Além disso, precisamos admitir que a política institucional não está respondendo à sua própria crise, aos abusos do governo e ao sofrimento popular. Seus setores mais “saudáveis” estão carentes de pressão e apoio.

Entrevista | José Arthur Gianotti: 'País está derretendo como um sorvete', diz filósofo

Professor aposentado da USP vê tática de enfrentamento em Bolsonaro e acredita que presidente quer Estado aos moldes da Venezuela

Thiago Herdy | O Globo

SÃO PAULO - Aos 90 anos, o professor aposentado de filosofia da USP José Arthur Giannotti está certo de que a tática de enfrentamento de Jair Bolsonaro é essencial a seu projeto de poder. “Temos um procedimento sistemático de um presidente que força a legalidade até um ponto, ele dá um passo além, em seguida dá um passo recuando”, diz. Fundador do PT e por décadas referência intelectual do PSDB, Gianotti acredita que o presidente quer instalar um Estado aos moldes da Venezuela, de modo que “instituições que deveriam cuidar da democracia impeçam qualquer funcionamento dela”. “Olho pela janela de casa, fico vendo as árvores que tenho em frente, e não vejo país. O país está se derretendo como um sorvete”, lamenta.

• No dia seguinte à eleição de Bolsonaro, o sr. disse que o presidente precisaria se civilizar. O que aconteceu?

Bolsonaro já se apresentava como pessoa que correspondia em alto nível a essa onda mundial contra a democracia. Houve um enorme erro da política petista — de fato foi progressista em aumentar a renda das pessoas, mas desastrosa do ponto de vista da produtividade do capitalismo brasileiro. Temos até hoje uma onda antipetista, o Lula se transformando em um deus que se olha a si mesmo, e um procedimento sistemático de um presidente que força a legalidade até um ponto. Ele dá um passo além, em seguida dá um passo recuando. Aos poucos, vai instalando o Estado de modo em que ele possa se transformar em uma Venezuela.

• Por que Venezuela?

Trata-se de se apropriar da maquinaria do Estado brasileiro, de modo que as instituições que deveriam cuidar da democracia impedem qualquer funcionamento dela. O importante é ter um Supremo que vote as leis que o Bolsonaro queira. E isso ele pode tentar fazer na medida em que nomear um ou dois ministros. Ele pode também buscar ter força suficiente no Congresso, para poder nomear outros.

- Merval Pereira - Manipulação de dados

- O Globo

Seremos um dos únicos países do mundo em que a curva dos infectados será derrubada por uma canetada

Teremos em poucas dias mais confusão estatística provocada pela obsessão do governo Bolsonaro de manipular os números oficiais. O aumento das queimadas na Amazônia e na Mata Atlântica foi negado pelo ministério do Meio-Ambiente, a ponto de haver uma intervenção no Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), até que a realidade ficou patente.

Agora, teremos várias contagens dos mortos e infectados pela Covid-19, pois o Tribunal de Contas da União (TCU) e o Congresso estão dispostos a colher os dados diretamente das fontes estaduais para obter um número mais próximo da verdade possível, enquanto o ministério da Saúde pretende esconde-los.

O governo é tão desorganizado que deixou evidente desde o inicio sua intenção de não revelar os dados da Covid-19 para grande parte da população, depois que os ministros técnicos - Luis Henrique Mandetta e Nelson Teich - saíram por absoluta impossibilidade de trabalhar.

Atrasou a divulgação dos dados para que eles não fossem anunciados pelo Jornal Nacional, mas quando a má-fé ficou evidenciada, o jornalismo da Rede Globo decidiu noticiar os números oficiais na hora em que fossem divulgados, o que fez com que a novela fosse interrompida para o anúncio, com uma audiência muito maior.

*Gustavo Binenbojm - As Forças Armadas e a Constituição

- O Globo

Juristas delirantes ressurgiram com teses heterodoxas sobre exercício de poder moderador pelas Forças Armadas

Jair Bolsonaro certamente não sabe quem foi Carl Schmitt. Então, para ficarmos na mesma página, vou apresentá-lo brevemente. Schmitt foi um jurista alemão que inspirou as concepções totalitárias do Estado hitlerista, contribuindo para jogar por terra os fundamentos liberais e democráticos da Constituição de Weimar. Para Schmitt, o estado de direito seria suspenso em momentos de crise, não havendo aí senão que o poder da força.

Neste estado de exceção, as decisões seriam livremente tomadas pelo soberano, sem qualquer limitação das leis. Às Forças Armadas cumpriria o papel de atuar como fiel da balança do jogo político, dando respaldo às decisões do ditador até que restabelecida a normalidade institucional. O resto da história é conhecido. Milhões de seres humanos inocentes foram assassinados pela fúria bestial do regime nazista.

Do segundo pós-guerra para cá, a democracia constitucional espalhou-se pelo mundo ocidental, retomando as noções de estado de direito e governo limitado. No Brasil, a Constituição de 1988 representou a vitória desses ideais, sem qualquer espaço para hiatos ditatoriais. A distribuição de funções entre distintos Poderes constituiu uma espécie de poliarquia na qual nenhum deles é soberano, mas todos devem igual reverência à Constituição. Para situações de grave abalo institucional, há regras excepcionais que preveem a intervenção federal, o estado de defesa e o estado de sítio, condicionados a controles exercidos pelo Legislativo ou pelo Judiciário.

Quando todos achávamos que o ideário totalitário havia sido jogado na lata de lixo da História, eis que alguns juristas delirantes ressurgiram com teses heterodoxas sobre o exercício de um poder moderador pelas Forças Armadas. Mais exótico ainda: sustentam que o art. 142 da Constituição daria guarida a esse suposto papel dos militares de árbitros dos conflitos entre Poderes. Alinho, a seguir, quatro razões pelas quais a tese não resiste a um sopro de bom senso.

Ricardo Noblat - Contra a tortura dos números e o assassinato da verdade

- Blog do Noblat | Veja

A hora de dar-se as mãos

Está nos dicionários:

Ignorância: estado de quem não tem conhecimento, cultura, por falta de estudo, ou de experiência, ou de prática.

Burrice: característica, particularidade ou condição de burro (sem inteligência).

Jair Bolsonaro, e muitos dos que o cercam, são burros na maioria das vezes. E, algumas vezes, apenas ignorantes.

Saúde é um dos temais mais sensíveis na hora dos eleitores decidirem em quem irão votar. É o que provam as pesquisas.

Não é de hoje. Foi sempre assim. E será com mais razão depois de uma pandemia como esta que não tem data para terminar.

Eles não esquecerão que Bolsonaro deu passe livre ao Covid-19 para matar, e, depois, tentou esconder o número de mortos.

Os cemitérios não mentem. Em 2022, a memória destes dias ainda não terá se apagado e pesará nas costas de quem foi relapso.

Devagar com o andor – Editorial | Folha de S. Paulo

Há risco de flexibilização da quarentena em SP realimentar avanço da epidemia

O plano de relaxamento da quarentena no estado de São Paulo não inspira confiança quanto a ser este o momento certo para afrouxar as restrições. Não faz muito o governador João Doria (PSDB) ameaçava com um trancamento (“lockdown”), e a marcha de uma epidemia não se altera tão rápido assim.

Reconheça-se que o governo paulista, até aqui, venha atribuindo a correta prioridade à saúde pública —acima de conveniências políticas e econômicas— na definição de medidas de enfrentamento dos impactos do novo coronavírus.

Também é elogiável que tenha explicitado parâmetros para classificar cada região em uma das cinco fases programadas de distanciamento social. Isso permite discutir mais objetivamente a oportunidade de flexibilizar a paralisação de diferentes setores.

Causou espécie, de pronto, a exclusão do município de São Paulo da fase de alerta máximo, que só admite serviços essenciais. Ela permanece em vigor nas outras 38 cidades da região metropolitana e na Baixada Santista, que têm fluxo diário de pessoas para a capital —o qual se intensificará com o atrativo de centros de compras e serviços abertos em tal proximidade.

Janio de Freitas – Salvar o que resta

- Folha de S. Paulo

Um teste para militares, milicianos e o que ainda existe de regime democrático

A repulsa a Bolsonaro e seus agentes precisou de um ano e cinco meses de antigoverno para, enfim, mostrar que não é apenas um sentimento coletivo. Tem corpo, tem vida, pode mover-se e move-se. Com passos iniciais mas decididos, nomes expostos sem temor e já os primeiros atos públicos bem sucedidos em Porto Alegre, São Paulo, Manaus, Rio e outros despertares.

Esses opositores da volta ao autoritarismo começam uma caminhada sem certeza de onde pisam, envoltos em nebulosidade institucional que nenhuma declaração, civil e muito menos se militar dissipa. É uma ação defensiva de algo que, em grande parte, não existe mais. A rigor, o regime vigente não é mais aquele nascido em 1985, com a exclusão da ditadura e modelado nas ambições democráticas da Constituição. Em que regime vivemos, não se sabe.

Bruno Boghossian – Aposta na insubordinação

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro tenta atropelar governadores e incentiva repressão a protestos

Jair Bolsonaro lançou as bases para um novo conflito com governadores. Depois de sabotar medidas de isolamento contra o coronavírus para satisfazer seu projeto de poder, o presidente agora mira as polícias estaduais e as ações desses agentes durante os protestos que acontecem em algumas capitais.

Nos últimos dias, Bolsonaro fez acenos às forças de segurança comandadas pelos governos locais. Estimulou a repressão a manifestantes e disse esperar que policiais militares “façam seu devido trabalho se porventura esses marginais extrapolarem os limites da lei”.

Com essa sinalização, o presidente atropela a autoridade de governadores e tenta reforçar ainda mais seus laços com essas corporações, onde a simpatia pelo nome de Bolsonaro vem de seus tempos como deputado. De quebra, ele aposta em potenciais confrontos nas ruas para alimentar sua propaganda contra os protestos organizados por seus opositores.

Hélio Schwartsman - Quão essencial é a religião?

- Folha de S. Paulo

Questionamento pode ser respondido sob diversas perspectivas

Um dos itens que sempre provocam polêmica quando se discute o cronograma de reabertura são as igrejas. Quão essencial é a religião?

A pergunta pode ser respondida sob diversas perspectivas. Num plano mais teológico, supondo que exista mesmo uma entidade onisciente, benevolente e que faça questão de ser adorada por humanos, ela certamente compreenderá o momento de excepcionalidade pandêmica que vivemos e aceitará preces e orações feitas em qualquer lugar. O fiel não perderá pontos por rezar fora da igreja.

Há quem sustente que templos devem ter prioridade na retomada porque a religião e seus cultos teriam o dom de tornar as pessoas mais éticas, o que seria socialmente relevante no momento. Não há, porém, nenhuma evidência empírica de que isso seja verdade. Pelo contrário, pesquisas sugerem que a religião não é um fator relevante quando se avaliam as atitudes morais e o nível de altruísmo das pessoas.

Há, por fim, a perspectiva do bem-estar. Aqui, a ciência está do lado dos religiosos. Dados de milhares de estudos mostram uma clara correlação positiva entre frequência a templos e indicadores subjetivos de felicidade, satisfação com a vida e até de saúde e longevidade. Ocorre que a maior parte desses efeitos pode ser atribuída à rede de interações sociais positivas e frequentes que a religião promove. Por essa lógica, igrejas deveriam reabrir quando reabrissem os clubes, centros de convivência e grêmios esportivos, que também proporcionam satisfação e saúde a seus usuários.

Vinicius Torres Freire - Três horror e uma saída pós-pandemia

- Folha de S. Paulo

Acemoglu pinta panoramas de opressão estatal e privada, mas aponta saída progressista

O mundo pode continuar no caminho da degradação até o ponto de surgir algo ainda pior do que desigualdade, descrença na democracia e nacionalismo populista. Pode sucumbir à tentação de adotar um despotismo eficaz como o da China. Talvez se renda à opressão privada das empresas gigantes de tecnologia.

Daron Acemoglu pinta esses cenários para um mundo depois da pandemia. Saída: retomar os avanços da social-democracia, prejudicada pela maré conservadora que subiu nos anos 1980.

Economista, historiador e professor do MIT, Acemoglu ficou mais conhecido pelo livro “Por que as Nações Fracassam”, que escreveu com James Robinson. Cedo ou tarde, deve ganhar um Nobel por algum dos seus trabalhos teóricos, um monte impressionante. Na idiotice do debate brasileiro, seria chamado de “ortodoxo”. Publicou no site Project Syndicate um artigo sobre o Estado no pós-Covid.

Varejo político não pode prejudicar apoio à democracia – Editorial | O Globo

Desavenças menores e questões pessoais têm de ser deixadas de lado neste momento

As ameaças à democracia que partem do bolsonarismo levam à união de forças políticas pontualmente adversárias, mas que compartilham a defesa das liberdades e dos demais direitos republicanos que constam da Constituição de 1988, resultado de uma longa travessia de 24 anos por uma ditadura militar.

Os manifestos em prol da democracia que começaram a circular no último fim de semana expressam este movimento de união de forças que divergem, mas entendem a importância da preservação das liberdades, da mesma forma como aconteceu na ditadura militar, quando manifestos passaram a circular a partir do momento em que os controles sobre a imprensa foram relaxados. Não eram simples textos de propaganda política, mas documentos que marcavam pontos de união entre grupos contrários ao arbítrio, da direita liberal à esquerda. Acontece o mesmo agora.

Mas alguns segmentos à esquerda ainda resistem a esta obviedade histórica, talvez muito condicionados pelos objetivos varejistas da luta ideológica, ou nem isso, que não deveriam impedir o entendimento amplo na defesa da democracia. Sem ela, a via eleitoral para a rotatividade das diversas forças políticas no poder fica obstruída. É lamentável que a miopia da luta político-partidária e vetos pessoais prejudiquem a construção de uma frente democrática.

Elio Gaspari - Do Central Park a Alphaville

- O Globo | Folha de S. Paulo

Duas cenas, uma em cada um desses lugares, chamaram atenção nos últimos dias

Adiante vão duas cenas dos últimos dias. Uma aconteceu no Central Park, em Nova York. A outra no bairro de Alphaville, em São Paulo (R$ 5.700 por metro quadrado).

25 de maio: Amy Cooper, com MBA pela universidade de Chicago, chefe do setor de seguros de uma firma de investimentos (US$ 70 mil anuais) passeava seu cachorro, solto, pelo parque. Christian Cooper (nenhum parentesco) disse-lhe que devia prender a coleira do bicho. Negro, ele vinha com um binóculo e observava os passarinhos. Ela se descontrolou, sacou o celular e chamou a polícia, dizendo que “um afro-americano está ameaçando minha vida”. Christian diplomou-se por Harvard em Ciencia Política. Também sacou o celular e gravou a cena. (O vídeo seria visto por 40 milhões de pessoas.)

No dia 28 Amy foi demitida. Desculpou-se, mas Christian recusou-se a encontrá-la.

Nesse mesmo dia o cabo Edson, da PM paulista, foi enviado a uma casa de Alphaville, atendendo a uma denúncia de violência doméstica. Enquanto conversava com a mulher, apareceu o marido, o joalheiro Ivan Storel. Em bolsonarês castiço, que repeliu o cabo:

“Você pode ser macho na periferia, mas aqui você é um bosta. Aqui é Alphaville, mano”,

“Eu ganho R$ 300 mil por mês”, “você é um merda de um PM que ganha R$ 1 mil.”

“Tenho uns 50 caras pra enfrentar você.”

Uma policial (que também foi insultada) registrou a cena.

Seis dias depois, Storel gravou um vídeo, reconheceu seu erro, revelou que está em tratamento psiquiátrico e que agiu sob o efeito de álcool e remédios. Disse que se envolveu “numa polêmica” com a polícia e pediu “perdão” a todos os policiais, inclusive aos que ofendeu.

Fica combinado assim. Tanto Amy Cooper como Ivan Storel vocalizaram preconceitos. Ela, de cor. Ele, de classe. Como o vírus, são preconceitos transmissíveis e estão por aí.

Entrevistado no programa de Fátima Bernardes, o cabo Edson mostrou-se surpreso pela viralização do vídeo e revelou que “não quis mostrar para a minha esposa e nem para os meus filhos porque não sabia como ia ser a reação deles”.

Intervenção militar
Num país com os mortos da Covid passando de 30 mil, mais de 12 milhões de desempregados, numa recessão histórica, “lunáticos” (palavras de Gilmar Mendes, falam em intervenção militar.

Tudo bem, mas vale lembrar uma cena ocorrida há alguns anos em Brasília.

Um çábio defendia seu projeto e tirou da manga o que supunha ser um grande argumento:

“Se fizermos isso, o Paraguai fica na nossa mão”.

Respondeu-lhe um sábio:

“E você faz o que com ele?”

Dorrit Harazim - A era da inocência acabou?

- O Globo

Não é apenas um perdigoto invisível que mata uma pessoa por minuto. É a falência múltipla dos órgãos do Estado

O entorno de George Floyd era uma barulheira só — carros passando, ronco urbano de Minneapolis à luz do dia, rádios da polícia apitando, transeuntes gritando que aquele homem negro imobilizado no asfalto, algemado pelas costas, precisava respirar. Apesar da barulheira, seu murmúrio final está registrado em vídeo e não carece de tradução: “Momma! Momma! I’m through”. A mãe de Floyd morrera em 2018. O filho que a invocou conseguiu chegar aos 46 anos até tornar-se o 11º caso de cidadão negro assassinado pela polícia de Minneapolis desde 2010. Teve altos e baixos na vida. Nasceu e cresceu no mesmo bairro texano do qual Beyoncé partiu para o estrelato, quase emplacou como atleta, quase terminou a faculdade, quase descarrilhou de vez ao ser preso por roubo à mão armada, mas retornou. Formou família, trabalhava onde possível e para isso foi parar em Minneapolis. Contraiu Covid-19, mas não sabia. Morreu rodeado da gente errada — sob as botas dos quatro policiais brancos de farto currículo de abusos, agora indiciados.

É possível que a partir da morte de Floyd a sociedade americana se olhe no espelho com menos complacência. Talvez tenha expirado o prazo de validade do mantra “não somos isso”, “somos melhor do que isso”, repetido com fervor após cada episódio de infâmia racista. Hoje, quem inunda as ruas em protesto e cobrança sabe que os EUA são, sim, uma sociedade racista, e parece disposto a aceitar a realidade para poder construir uma cidadania de que não precise se envergonhar. Passadas duas gerações desde que o governo Lyndon Johnson aprovou a Lei dos Direitos Civis em 1964, é o racismo no sistema prisional, judiciário e policial que entra em pauta. Como, porém, ele não se sustenta em nenhuma lei segregacionista, e portanto passível de ser derrubada sob pressão, trata-se de uma realidade mais encruada e complexa de ser desmontada. Ela depende essencialmente da formação moral ou disciplinar, e da índole de cada indivíduo com autoridade para bater, prender ou sufocar. E o ser humano, quando adulto e solto, é pouco confiável.

Míriam Leitão - Velho racismo à brasileira

- O Globo

O sentimento de indignação dos negros no Brasil não é cópia. É legítimo, tem raízes locais e números de exclusão e violência

O Brasil é racista. Sempre foi. O racismo é complexo, é durável, produz violência e exclusão. Para permanecer, ele nega a própria existência e diz que a sociedade aqui sempre foi diferente da dos Estados Unidos. Escrevi muitas vezes isso neste espaço no acalorado debate das cotas. Nos últimos anos, uma geração de estudiosos negros tem ajudado a ilustrar esse debate no Brasil com teses, artigos e livros. O sentimento de indignação de pessoas pretas e pardas no Brasil, com a estrutura que os exclui, não é cópia do que acontece nos Estados Unidos. É legítimo, tem razões locais profundas e números aterradores.

Paulo César Ramos ficou em dúvida no ensino médio entre ser soldador e estudar ciências sociais. Optou pelo que parecia mais difícil. Hoje é sociólogo e membro do Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial do Cebrap. Estuda violência policial e movimento negro.

Ao buscar as raízes do movimento negro, seu estudo o levou a 1978. Um comerciante da periferia de São Paulo, Robson Silveira da Luz, foi torturado e morto em uma delegacia do distrito de Goianases no estado. O caso ganhou muita repercussão e houve atos em São Paulo e no Rio que denunciaram o que sempre acontecia no Brasil.

Bernardo Mello Franco - Escória maldita

- O Globo

A sociedade voltou às ruas para combater o autoritarismo. Para Bolsonaro, os insatisfeitos são terroristas, marginais, maconheiros e desocupados

Sérgio Camargo se apresenta como jornalista e “inimigo do politicamente correto”. No ano passado, virou presidente da Fundação Palmares. O órgão federal foi criado para promover a contribuição dos negros à cultura brasileira. Agora está entregue a um provocador de extrema direita, que ofende a memória de Zumbi e diz ver uma herança “benéfica” da escravidão.

Em gravação que veio a público na terça-feira, Camargo xinga uma mãe de santo, insulta o movimento negro e impõe metas para um expurgo político. Exaltado, ele prega o combate a uma “escória maldita”. Refere-se a ativistas que lutam contra o racismo, não aos inquilinos do poder em Brasília.

Ricardo Salles é advogado e criador do Endireita Brasil, grupo que dizia defender a “moralização da vida pública”. Em dezembro de 2018, foi condenado por improbidade administrativa. Treze dias depois, assumiu o Ministério do Meio Ambiente. Virou ídolo de grileiros, garimpeiros e madeireiros que lucram com a devastação da Amazônia.

Democracia defensiva – Editorial | O Estado de S. Paulo

Estado brasileiro precisa ser profundamente reformado para que o cidadão dele se sinta participante integral, com direitos e deveres, sob auspícios da Constituição

Ante a perspectiva sombria de que o País mergulhe na violência, como resultado da escalada retórica autoritária do presidente Jair Bolsonaro e da disposição belicosa de seus camisas pardas, emerge um debate crucial sobre os mecanismos por meio dos quais a democracia se defende dos extremistas que, maliciosamente, exploram as liberdades constitucionais para tentar arruiná-la.

A Alemanha, por exemplo, construiu, logo depois da 2.ª Guerra, um arcabouço legal e cívico para proteger sua democracia da ação insidiosa dos herdeiros do nazismo. O objetivo explícito era impedir que a democracia liberal que se pretendia construir fosse arruinada pelo extremismo, como aconteceu com a República de Weimar, que o nazismo pôs abaixo em 1933.

Na reconstrução do Estado alemão, o papel dos partidos – isto é, da representação da vontade política dos alemães – foi reforçado, enquanto a formação de partidos extremistas, tanto de direita como de esquerda, foi proibida. No mesmo sentido, não se confundiu a liberdade de expressão com o discurso de ódio, que foi proibido.

Além disso, o Tribunal Constitucional – que fica em Karlsruhe, a 670 km da capital, Berlim, e portanto geograficamente distante das pressões das autoridades federais – conquistou o apreço de todo o país por defender os cidadãos das injunções do poder e por transformar o respeito à Constituição em demonstração de patriotismo. A reverência à lei substituiu a antiga devoção alemã às autoridades fortes, de modo que a Constituição se tornou o elemento de coesão entre os cidadãos. Uma democracia com essas características é muito mais sólida, mesmo diante da ameaça constante do extremismo.

Vera Magalhães - Domingo, o dia D

- O Estado de S.Paulo

Bolsonaro busca pretexto para golpe enquanto comete crimes em série

A questão atual não é se Jair Bolsonaro cometeu ou não crimes de responsabilidade desde que resolveu rasgar a fantasia de democrata ainda em janeiro, mas notadamente a partir do início da pandemia do novo coronavírus.

É notório que o presidente da República usa a crise de saúde e econômica para afrontar os demais Poderes, avacalhar as instituições, avançar em seu projeto armamentista e de cooptação das Forças Armadas e das polícias militares para defendê-lo das tentativas de contenção constitucional dos demais Poderes.

A cada fim de semana, o Brasil agrava seu estado de anomia, caminhando de forma perigosa, sob o beneplácito de muitos dos que teriam obrigação legal de agir, para algo próximo de uma ruptura. Este domingo pode fornecer o pretexto que o presidente busca, mas não é este o único risco colocado diante de uma nação perplexa, apavorada e, em grande medida, ainda inerte.

Na última semana, o presidente resolveu incluir outro crime no rol dos que já cometeu: atentado à saúde pública. Diz o artigo 267 do Código Penal que é crime contra a saúde pública causar uma epidemia. Isso pode se dar por ação ou omissão, e ao verbo “causar” pode-se incluir ações para agravar uma epidemia em curso.

Eliane Cantanhêde - Me engana que eu gosto

- O Estado de S.Paulo

Bolsonaro esconde números, mas Trump conta ao mundo o fracasso do Brasil na pandemia

Além de negar a pandemia, o presidente Jair Bolsonaro quer esconder os balanços de mortos, contaminados e recuperados, achincalhando o Ministério da Saúde. Demitiu um ministro, expeliu outro, nomeou um general intendente como interino, descartou o isolamento, empurrou a cloroquina garganta abaixo de médicos e especialistas e agora isso: sonegar os números.

Pois vamos a eles: são mais de 35 mil mortos (35 mil!) e quase 650 mil contaminados (650 mil!), numa expansão macabra, fora de controle. O presidente dá de ombros para os mortos – “E daí?” – e os governadores relaxam atabalhoadamente o isolamento para abrir lojas e serviços na pior hora. Logo, vai piorar.

O “amigão” Donald Trump fala mais uma vez do fracasso brasileiro e informa ao mundo que os EUA teriam não 108 mil, mas até 2,5 milhões de mortos, se tivessem agido como o Brasil e a Suécia – país, aliás, que Bolsonaro citou como referência no combate à pandemia, contra o isolamento, com tudo aberto, e hoje é um exemplo mundial de derrota.

Assim, o Brasil divide o pódio de mortos: EUA em primeiro lugar, Reino Unido em segundo, Brasil em terceiro, perto de chegar ao segundo. O que os três têm em comum? O negacionismo de Trump, Boris Johnson e Bolsonaro. Com uma diferença, literalmente, vital: Trump e Johnson (que pegou a covid-19) ridicularizaram e negaram, mas voltaram atrás, enquanto Bolsonaro continua obstinadamente negacionista.

Música | Arraiá de Geraldo Azevedo #FiqueEmCasa

Poesia | Mauro Mota - A Chuva cai sobre o Recife

A chuva cai sobre o Recife devagar,
banha o Recife, apaga a lua, lava a noite, molha o rio,
e a madrugada neste bar.
A chuva cai sobre o Recife devagar.
A chuva cai sobre o telhado das casinhas de subúrbio,
canta berceuses a doce chuva. É a voz das mães
que estão no canto de onde a chuva agora veio.
A chuva cai, desce das torres das igrejas do Recife,
corre nas ruas, e nestas ruas, ainda há pouco tão vazias,
agora passam, de capote, transeuntes
do tempo longe, esses fantasmas de mãos frias.