Atualmente, quase toda discussão sobre a democracia emperra já no ponto de partida: na imensa teia de equívocos que cerca o conceito. Percebendo estar a um passo de um labirinto escolástico, o leitor em geral tira o time de campo. Há solução para isso?
Transportemo-nos para um enredo de ficção. Por toda parte, milhares ou milhões de cidadãos mostram-se inconformados com o funcionamento do sistema político de seu país. “Chutam o balde” em toda oportunidade que se lhes apresenta; berram sua indignação a plenos pulmões, e talvez fizessem mais que isso, se soubessem o quê e como. Sua raiva tem muitas causas, mas uma lhes parece especialmente chocante.
É democrático – eles perguntam a todo momento – um país em que um senador ignorante, corrupto e prepotente, eleito por um pequeno estado, exerce uma influência avassaladora sobre seus colegas? Merece respeito uma democracia em que um tipo desses, não contente com desmoralizar o Legislativo, chantageia o presidente da República em todas as votações importantes? E tudo isso à luz do dia, acintosamente, seguro de que os cidadãos continuarão apalermados e impotentes?
Como assinalei, a situação acima evocada é pura ficção. O senador em questão seria no máximo o Seeb Cooley, personagem interpretado por Charles Laughton em Advise and Consent, um filme de 1962, produzido e dirigido por Otto Preminger. Para mim é um dos melhores no gênero político. No Brasil, se bem me lembro, ele foi exibido com o título “Tempestade sobre Washington”.
Em dois pontos, porém, os parágrafos acima mantêm contato com a realidade que pretendo explorar nesta série de artigos. Primeiro, trata-se da democracia representativa – a única, aliás, de que temos conhecimento na realidade histórica. Segundo, por maiores que sejam os seus méritos, a democracia é rejeitada, senão in totum, pelo menos em alguns de seus aspectos; disto até os avestruzes têm consciência.
A democracia representativa funciona graças a uma engrenagem institucional bastante sofisticada; um encadeamento que começa no momento em que o cidadão comparece ao cartório eleitoral para tirar seu título, prossegue com a eleição, passa pela diplomação dos candidatos eleitos e culmina no exercício por esses dos mandatos populares que lhes foram conferidos.
Podemos também pensar a democracia como um jogo. Como todo jogo que se preza, o jogo democrático tem regras. O legislador eleito para um mandato de “x” anos cumpre aqueles “x” anos, ponto final. Aqui nós já resvalamos no célebre senador por North Carolina, aquele que detestamos, mas não temos como tirar. Se ele obteve votos bastantes para se eleger, aos que não o têm em alta conta só resta resmungar. A menos que alguém dê um golpe e derrube o regime inteiro, o mandato dele está garantido.
O “x” do problema é portanto se o jogo institucional está ou não está sendo jogado. No Brasil, como todos se lembram, esta questão foi posta à prova numa eleição histórica: a de 1974. Estávamos em pleno regime militar, o general Ernesto Geisel havia assumido a presidência um ano antes. O Senado compunha-se à época de 66 senadores, um terço (22) dos quais teriam de enfrentar de novo as urnas a fim de renovar seus mandatos. Para surpresa geral, a oposição, então reunida no MDB (Movimento Democrático Brasileiro), abocanhou 16 das 22 cadeiras.
As especulações pareciam não ter fim: os 16 vão tomar posse? Seus mandatos serão garantidos? O general obviamente não gostou, mas não interveio. Mandou o jogo seguir, favorecendo dessa forma a interpretação de que as instituições não eram totalmente ocas, malgrado o caráter em última instância arbitrário do regime.
Voltando ao nosso hipotético senador – a qualquer um que detestemos -, de fato, ao garantir o mandato o que se valida não é uma prerrogativa pessoal, mas a incolumidade da instituição frente aos outros dois Poderes e a eventuais agressões externas. A incolumidade da Casa está corporificada em cada mandato, vale dizer, na pessoa de cada um que o haja conquistado nas urnas.
Mas é igualmente óbvio que as regras do jogo nem sempre produzem os efeitos que desejaríamos (e aqui eu passo batido sobre esse “nós” implícito, que também é ficção); ao contrário, elas dão margem a muitos efeitos indesejáveis ou perversos. Estes por sua vez dão ensejo a questionamentos que muitas vezes transcendem o motivo específico do descontentamento e atingem o próprio regime democrático.
Nas sociedades ‘primitivas’, os contendores partiam para o enfrentamento físico; um subjugava ou matava o outro. Na democracia, um arranjo moderno, os enfrentamentos são mediatizados pelo referido jogo institucional; vencem os que têm mais votos, mais força no partido, mais presença no plenário etc. Os perdedores não são liquidados, pelo menos não fisicamente.
A democracia moderna existe para equacionar pacificamente os conflitos, mas aos olhos do cidadão ela é geralmente portadora da mensagem oposta. É um sistema arestoso, conflituoso e desagregador, com o agravante de ser quase sempre incompreensível. Confortavelmente instalado à frente da TV, ele não se pergunta se a solução ‘primitiva’ era boa, justa ou natural; ele apenas constata que a ‘moderna’ não é de seu agrado.
Subjacente a essa avaliação parece haver uma necessidade de acreditar que vivemos em um mundo definitivamente pacificado. O cidadão quer reconfirmar essa impressão a todo momento, e por isso rejeita, screens out, toda indicação que traz desarmonia a suas certezas.
Mas isso não é tudo. Como em qualquer sistema político, também na democracia a participação no processo decisório tem como condição a posse de uma fração qualquer de poder. Poder é capital, e capital precisa ser acumulado, conservado e reinvestido. Se quer sobreviver na política eletiva, o deputado ou senador precisa estar preparado para um combate diário, e em diversas frentes. É a luta por espaços na mídia, por um cargo na hierarquia do partido, por um lugar na comissão tal ou qual do Congresso etc etc. A eleição tem um significado decisivo, isto é óbvio, mas do ponto de vista que ora nos interessa ela é um marco temporal entre outros.
Observe-se que os exemplos acima têm a ver com as atividades-meio da vida política. São, digamos assim, formas exteriores e seccionadas de um processo muito maior – a aquisição ou acumulação de poder -, sem o qual elas carecem de sentido. Não surpreende que uma grande parte dos eleitores, mesmo nos países desenvolvidos, tenha dificuldade em compreendê-las e tenda a rejeitá-las emocionalmente. Eu me aventuraria a especular que o cidadão comum as abomina tanto quanto ao hipotético senador a que nos referimos momentos atrás, e provavelmente mais que a logorréia inflamada dos parlamentares quando da votação de projetos importantes.
A esta altura, e muito compreensivelmente, a paciência dos meus leitores deve estar por fio. O objetivo deste post não era iniciar uma série de reflexões sobre a democracia? Que proveito tiramos do que foi dito até aqui?
O saldo talvez seja magro, mas vou destacar dois pontos. Primeiro, eu preferi frisar que a democracia é um regime de instituições, em vez de começar já tentando explicar o conjunto do desenho institucional.
Segundo, eu quis evidenciar como a hostilidade atualmente muito difundida contra a política e os políticos mais dificulta que facilita o esclarecimento conceitual que estamos procurando. Inegavelmente, os antagonismos políticos, ou algumas de suas exterioridades, causam muito desconforto aos cidadãos; para muitos destes, o ideal seria uma democracia tipo buffet, na qual eles se servissem tão-somente do que fosse de seu agrado.
O mais proveitoso do percurso seguido até aqui talvez seja o balizamento metodológico a que bem ou mal chegamos, cuja utilidade será evidenciada, espero, nos próximos textos.
Em 1613, Francis Bacon ensinou que o primeiro passo na busca do conhecimento é repelir certos fantasmas (‘ídolos’) que se alojam em nossa alma com o intuito de impedir o nosso acesso à verdade. A historieta do senador e os desdobramentos que elaborei a respeito da aversão do cidadão comum a certos aspectos da política correspondem bastante bem ao primeiro dos quatro tipos de fantasmas da advertência baconiana – os ídolos da tribo, quer dizer, os sentimentos, paixões e preconceitos de que somos portadores pelo simples fato de pertencermos à ‘tribo’ (ou à ‘raça’) humana.
Na seqüência, precisaremos nos guardar contra os ídolos da caverna: o senso comum, o saber por ouvir dizer, o juízo formado apenas a partir de aparências cotidianas ou meras convenções familiares e sociais.
Em terceiro lugar, os ídolos do mercado: fetiches que se nutrem do emprego incorreto das palavras ou de idéias imprecisas de que ligeiramente nos valemos em situações de intercurso público.
E, finalmente, os ídolos do teatro: a pretensa autoridade de determinados pensadores ou correntes de pensamento que tendemos a aceitar sem maior exame ou em razão de seu prestígio.
FONTE: BLOG DE BOLÍVAR LAMOUNIER