Política e cultura, segundo uma opção democrática, constitucionalista, reformista, plural.
sábado, 17 de outubro de 2020
Merval Pereira - Falta de decoro
Ascânio Seleme - Um político vulgar
Episódio
do dinheiro “entre as nádegas” de Chico Rodrigues é mais um símbolo que servirá
para balizar estes tempos
‘Nonada. Tiros que o senhor ouviu foram
de briga de homem não, Deus esteja”. João Guimarães Rosa inicia assim “Grande
sertão: veredas”, um dos mais extraordinários romances da língua portuguesa.
“Não tem nada a ver (...) querer vincular o fato de ele ser vice-líder com a
corrupção do governo”. Jair Bolsonaro encerra desta forma uma das últimas
farsas do seu mandato. Referia-se ao senador Chico Rodrigues (DEM-RR), flagrado
pela Polícia Federal com dinheiro na cueca, e que, segundo o presidente,
“gozava de prestígio e carinho de quase todos”.
Na
verdade, Bolsonaro enterrou muito antes a promessa de fazer um governo
honesto, distante da banda podre do Congresso Nacional. O primeiro passo foi
deixar embarcar no seu bonde a velha e conhecida turma do centrão. O senador de
Roraima é um quase nada se comparado aos próceres daquele agrupamento. Gente
como Arthur Lira, Ricardo Barros, Ciro Nogueira e Valdemar Costa Neto responde
a todo tipo de ação na Justiça: fraude em licitações, formação de quadrilha e
organização criminosa, lavagem de dinheiro, enriquecimento ilícito e até
violência doméstica. O centrão foi criado pelo ex-deputado Eduardo Cunha, que
se solto estivesse, certamente apoiaria o governo.
O
episódio do dinheiro “entre as nádegas” de Chico Rodrigues é mais um
símbolo que servirá para balizar estes tempos. Da mesma forma que um outro
episódio de dinheiro escondido na cueca marcou o governo Lula em 2005, quando
um assessor do líder do PT José Guimarães foi detido num aeroporto de São Paulo
com R$ 100 mil escondido nos fundilhos. Símbolos não faltam nos dias de hoje.
No caso da corrupção, houve dois, este do senador da cueca e o da demissão do
ministro Sergio Moro. Ou mais, se você quiser incluir os casos das rachadinhas
dos filhos que obrigou a aproximação do pai ao Supremo.
Míriam Leitão - O Brasil vai de Mello a Mello
Foi
uma semana marcante. O ministro Celso de Mello encerrou seu tempo no Supremo
Tribunal Federal (STF) deixando a sensação de que 31 anos podem ser poucos, que
sai quando é ainda necessário ao país. O STF foi tragado por uma voragem
conflituosa envolvendo o novo decano, Marco Aurélio Mello, e o presidente Luiz
Fux. Os dois Mellos não têm qualquer parentesco em nenhum sentido da palavra,
mas os eventos ajudam a refletir sobre o Supremo e o país.
Não
poderiam ser mais distantes os estilos dos dois decanos, o que sai e o que
entra. Celso de Mello era construtor de maiorias, era a pessoa para a qual os
pares olhavam, Marco Aurélio é um lobo solitário e passa a impressão de que o
debate no colegiado importa menos do que marcar sua singularidade. Sempre
preferiu votos indiossincráticos, amparados em teorias por vezes
incompreensíveis aos mortais. Com grande frequência terminava sozinho, como
nesta semana com o placar de nove a um. Recebeu o conforto das reprimendas dos
colegas ao ato de Fux de cassar sua liminar, mas o desagrado de ver que ninguém
daria liberdade ao traficante André do Rap.
Marco Antonio Villa - Aprender com 1930
O
panorama atual é bem diverso. O País está amorfo, naquele, como diria Monteiro Lobato, mutismo de peixe
Tivemos, no Brasil, o momento mais complexo deste século. Há uma junção de crises: econômica, política, sanitária e de valores. Para piorar há também uma ausência de lideranças em todos os setores, mais precisamente uma crise das elites. Assim como no futebol, o vazio acabou sendo ocupado. E por indivíduos absolutamente sem preparo frente a desafios tão grandes. Os 21 meses do governo Bolsonaro demonstram de forma inequívoca que sem uma profunda renovação política o país tende à paralisação, sem condições de poder enfrentar os graves problemas nacionais.
O
Brasil passou no século passado por uma turbulência tão ou mais grave que a
atual. Se reportarmos a crise de 1929 podemos observar que ao desastre
econômico foi somado uma grave crise política, a sucessão presidencial de
Washington Luís, que acabou conduzindo à Revolução de outubro de 1930. As
condições para a recuperação econômica eram muito mais difíceis que as atuais.
O Brasil dependia na pauta das exportações fundamentalmente do café. Tínhamos
uma tímida diversificação econômica. E sérios problemas estruturais. Mas,
diversamente dos tempos atuais, havia lideranças e planos, muitos planos para
sair da crise, entre as diversas correntes políticas.
Hélio Schwartsman – Ciência em ação
Jair
Cloroquina Bolsonaro e Donald Lysol Trump não dão pelota a especialistas
Não
me parece muito prudente a posição dos mais de 6.000
cientistas e médicos que assinaram uma carta aberta pedindo aos
governos dos EUA e do Reino Unido que estimulem a circulação de jovens para
atingir a imunidade de rebanho, mas acho importante que esse tipo de
manifestação ocorra e gere discussões.
A
polarização política fez com que dividíssemos os governantes no campo dos que
seguem a ciência e no dos que a rejeitam. Não há a menor dúvida de que
dirigentes como Jair Cloroquina Bolsonaro, Donald Lysol Trump e Alexander Sauna
& Vodca Lukashenko agem
sem dar pelota para o que os especialistas têm a dizer sobre a pandemia, mas
daí não decorre que a ciência tenha respostas únicas e inequívocas para todas
as nossas perguntas. Pelo contrário, se há algo que caracteriza a ciência
(ainda que não os cientistas) é a dúvida metódica e o ceticismo em relação a
suas próprias conclusões. Em ciência, até as certezas são necessariamente
provisórias.
Cristina Serra - Generais e seus labirintos
Villas-Bôas não destoa da atuação histórica das Forças Armadas no Brasil
Passou quase em branco informação importante publicada nesta Folha para a reconstituição dos bastidores do golpe parlamentar que derrubou Dilma Rousseff (ou alguém aqui ainda acredita em pedaladas fiscais?). A colunista Camila Mattoso, no Painel, informou que, um ano antes do impeachment, o vice, Michel Temer, teve um encontro sigiloso com o então comandante do Exército, Eduardo Villas-Bôas, e o chefe do Estado Maior, Sérgio Etchegoyen.
A revelação foi feita pelo filósofo e amigo de Temer, Denis Rosenfield, que intermediou o encontro. Segundo ele, o comandante o procurou porque os militares estavam "preocupados com o país". Etchegoyen foi nomeado ministro da Segurança Institucional de Temer. Villas-Bôas é o general tuiteiro que se tornou uma espécie de tutor-geral da República, com desenvoltura suficiente para postar ameaças ao STF quando bem entende.
Alvaro Costa e Silva - O pós-turismo de Bolsonaro na 'Cancún brasileira'
Depois
da destruição do Pantanal e da Amazônia, governo volta-se para o litoral de
Angra dos Reis
Só
comunistas, antipatriotas e maconheiros não admitem: em seu projeto de destruição
ambiental, o governo é um sucesso. Bem encaminhados os desastres pantaneiro e
amazônico, a sanha volta-se agora para o litoral de Angra dos Reis.
A
repórter Ana Luiza Albuquerque revelou que Bolsonaro está de olho na ilha do
Sandri, a maior entre as 29 que integram a Estação Ecológica de Tamoios, criada
em 1990 como contrapartida à instalação de usinas nucleares na região e em cuja
extensão é proibido ancorar barcos, desembarcar e fazer edificações.
A investida —que conta com a subserviência do prefeito Fernando Jordão (MDB)— é parte do plano para transformar Angra dos Reis na "Cancún brasileira". É um velho sonho do presidente: entupir a faixa litorânea de enormes hotéis e resorts com piscinas interligadas e réplicas do Hard Rock Cafe. A sensação do turista, com a cabeça entorpecida pelo reggaeton, é que está não no México, mas nos Estados Unidos. Dá até pena do lindo mar azul do Caribe.
Demétrio Magnoli* - A cadeira do juiz
Juízes
que fazem política fracassan duas vezes, como políticos e como magistrados
Amy Coney Barrett, a juíza indicada à Suprema Corte dos EUA, é uma originalista. Os fundamentalistas religiosos querem que as sociedades se curvem aos textos sagrados “tal como foram escritos”.
Os
juízes originalistas são fundamentalistas constitucionais: ignoram a dinâmica
histórica em nome de um literalismo absoluto. Mas, paradoxalmente, a
confirmação de Barrett descortina a possibilidade de um necessário
reordenamento da democracia americana. Além disso, ajuda o Brasil a
diagnosticar a moléstia que debilita o STF.
Na
ponta oposta dos originalistas encontram-se os neoconstitucionalistas,
representados no STF por Luís Roberto Barroso. A corrente jurídica acredita
que a norma formal (o que está escrito) deve se subordinar à norma axiológica
(os princípios morais genéricos inspiradores da Constituição).
O
juiz converte-se, a partir daí, em intérprete livre do texto legal, com a
prerrogativa de infundir-lhe significados que contrariam seus significados
explícitos. Abre-se a autopista do ativismo judicial: o sopro purificador do
juiz-ativista produz legislação, ocupando a cadeira dos parlamentares.
João Gabriel de Lima - O grid de largada e a ‘escuderia Bolsonaro’
Eleições
municipais definem o ‘grid de largada’ para o próximo pleito presidencial
Os
dias anteriores às eleições municipais são úteis
para que o eleitor compare os candidatos. O monitor do Estadão fez
um excelente cotejo de propostas, e esta coluna iniciará na próxima semana uma
série de podcasts sobre os principais temas do debate.
Existe,
no entanto, outro aspecto nas eleições municipais brasileiras. Descasadas das
federais e estaduais, elas definem uma espécie de “grid de largada” para o
próximo pleito presidencial. Prefeitos de grandes capitais se credenciam
automaticamente a disputar o Planalto – como ocorreu recentemente com Fernando Haddad. O xadrez das
prefeituras também define, entre as candidaturas presidenciais já insinuadas,
quem jogará com vantagem.
O tabuleiro deste ano apresenta um componente extra. O presidente da República não tem partido e é candidatíssimo à própria reeleição. Em que condições ele vai emergir dos pleitos municipais?
Bolívar Lamounier* - Nossa infindável fragilidade
A
chance de Brasília fazer uma reforma política e administrativa séria é remota
A
pandemia e a certeza de que tão cedo não teremos um ajuste fiscal seguro
trouxeram de volta a preocupação com a fala de “resiliência” do sistema
político brasileiro. Esse termo significa que nosso Estado cambaleia toda vez
que se depara com situações muito negativas.
Triste
é constatar que essa joia do jargão politológico não diz nem metade do que
precisa ser dito. A fragilidade da organização política brasileira não é
ocasional. Não se manifesta somente quando batemos de frente com algum
obstáculo poderoso. Trata-se de uma fragilidade mal compreendida, abissal, que
deriva de várias causas e produz efeitos crudelíssimos sobre as parcelas mais
vulneráveis da sociedade. Seu aspecto mais perceptível é o que Ricardo Noblat
certa vez denominou “o céu dos favoritos”. A fauna brasiliense compõe-se de
numerosas espécies que diferem em quase tudo, menos no apetite. E na volúpia.
Habitam os três Poderes e se valem deles para se apropriarem de cifras
estratosféricas, sob a forma de salários, de ajudas de custo, das cotas
ministeriais que alimentam o famigerado “presidencialismo de coalizão” e de
assessores-de-coisa-alguma, sem esquecer as proverbiais “rachadinhas”. Com as
exceções de praxe, claro.
Adriana Fernandes - Ouvidos moucos
A
economia brasileira vive um dos momentos mais delicados dos últimos anos
Em
entrevista ao Estadão,
o ex-presidente do Banco Central Affonso Celso Pastore não
poderia ter definido melhor o quadro da política em Brasília nos dias atuais. Para
ele, o presidente Jair Bolsonaro e os congressistas
teimam em não entender a situação da economia e da escalada acelerada de
deterioração da percepção de risco do País. Fazem ouvidos moucos.
O
resultado é que o Brasil poderia estar agora aproveitando uma onda mais positiva
após as medidas de mitigação dos efeitos da pandemia da covid-19, que impediram um tombo maior
da economia, e vêm sustentando o processo de recuperação neste segundo semestre.
Ao
contrário, o Brasil vive um dos momentos mais delicados dos últimos anos e isso
pode se agravar se governo e Congresso continuarem errando a
mão. Qualquer que seja a solução, será preciso encontrá-la urgentemente. Até
agora, porém, está todo mundo perdido em Brasília e atirando cada qual para um
lado: não faltam propostas e sobra inação.
A
mais recente ideia é a de criação de um fundo para receber receitas de
renúncias tributárias e desonerações para deixar as despesas com o novo
programa social fora do teto de gastos. Variações do mesmo tema.
Marcus Pestana* - Trump, Biden e o Brasil
Com seu estilo populista-autoritário, diante de tão grave situação econômica, sanitária, social e racial, Trump não refrescou, não buscou unir o país, ao contrário, jogou lenha na fogueira do dissenso, da discórdia e da polarização.
Desde a sua independência em 1783 e da Constituição americana de 1789, os EUA, ao lado da Inglaterra e França, são os grandes esteios da democracia moderna. Um abalo na dinâmica e nas instituições democráticas americanas em pleno século XXI seria um péssimo exemplo e estímulo para outros líderes populistas autoritários confrontarem os valores permanentes da liberdade e da democracia.
O que a mídia pensa – Opiniões / Editoriais
Os
acusados são soltos quando deveriam estar presos; e são presos, a depender do
caso, quando melhor seria que estivessem soltos
No
mundo da aviação, sabe-se que, por trás de todo acidente aéreo, há uma
sequência de erros que explica o triste episódio. Quase sempre é uma sinistra
combinação de falhas humanas com as de equipamentos. Se nem todos esses
equívocos tivessem acontecido simultaneamente, a catástrofe seria evitada e as
vidas que se perderam com a queda da aeronave poderiam ser preservadas.
Guardadas todas as proporções, a libertação do traficante André do Rap tem
semelhanças com a soma de imperfeições que leva um avião a se destroçar em
solo. Membro graduado de uma das facções mais perigosas do Brasil, o criminoso
se beneficiou de uma sucessão de desacertos, que inclui a perda de prazo para a
prorrogação de sua prisão, passa pelo mau funcionamento dos sistemas do STF e
culmina em uma tentativa inoportuna do ministro Marco Aurélio Mello de marcar
posição. Uma diferença de apenas algumas horas e o delinquente ainda estaria na
cadeia, lugar apropriado para quem desempenha sua atividade.
Mas
além das falhas e brechas que permitiram a libertação de um malfeitor de alta
periculosidade, a trajetória de André do Rap revela, numa perspectiva mais
profunda, um outro mal que põe em risco a segurança dos cidadãos brasileiros:
as engrenagens que abastecem as fileiras do PCC, a maior e mais ameaçadora
facção criminosa do país. Aos 19 anos, ele foi preso pela primeira vez com
trinta papelotes de cocaína, em Santos. Não portava armas nem tinha
antecedentes criminais, mas, como estava acompanhado de um comparsa de 17 anos,
recebeu um agravamento de pena por corrupção de menores, sendo levado para o
Carandiru, o famoso presídio paulista extinto em 2002. Começava ali mais uma
carreira no mundo do crime. Considerado inteligente e educado pelos colegas,
André acabou sendo recrutado pelo PCC em troca de segurança na penitenciária.
Fora dela, pagou sua dívida com a organização transformando-se em um de seus
líderes.
Poesia | Fernando Pessoa - Azuis os Montes
Azuis os montes que estão longe param.
De eles a mim o vário campo ao vento, à brisa,
Ou verde ou amarelo ou variegado,
Ondula incertamente.
Débil como uma haste de papoila
Me suporta o momento. Nada quero.
Que pesa o escrúpulo do pensamento
Na balança da vida?
Como os campos, e vário, e como eles,
Exterior a mim, me entrego, filho
Ignorado do Caos e da Noite
Às férias em que existo.