domingo, 21 de fevereiro de 2021

Luiz Sérgio Henriques* - Antagonismos em equilíbrio

- O Estado de S. Paulo

Um ambiente plural e diversificado é o único antídoto contra aspirantes a ditador

No momento em que somos tentados a fazer o balanço de perdas e danos, lamentando, depois de 30 e poucos anos, as ilusões precocemente perdidas, convém lembrar os bons pressupostos e o início auspicioso deste período mais recente da nossa História política. A impressão generalizada em seguida ao regime militar era de que o País estava finalmente pronto para integrar, de corpo e alma, o grupo de nações que conseguem conjugar, com um grau mínimo de coerência, capitalismo e democracia, economia de mercado e integração social. Um grupo relativamente reduzido, é certo, mas habituado a sinalizar rumos e a atrair a esperança de quem vive sob regimes fechados mundo afora.

Na verdade, essa não era uma ideia surgida aleatoriamente na acidentada trajetória de modernização por que passamos. Na saída de uma dessas ditaduras que conformaram duradouramente as relações entre Estado e sociedade, a ditadura do Estado Novo, um grande conservador como Gilberto Freyre chamava a atenção para a plasticidade da formação social brasileira. Segundo ele, tal plasticidade, própria de um exuberante povo em formação, seria até capaz de irradiar para outras latitudes o amor à diferença, o propósito de conciliar elementos heterogêneos, étnicos ou culturais que fossem.

Paulo Fábio Dantas Neto* - Emergência sanitária e paciência política: o fator Mandetta

Ao longo do ano de 2021 a situação de grave vulnerabilidade sanitária em que se encontra a população brasileira promete converter-se numa nefasta singularidade no mundo. Tudo parece indicar que seremos, ao final desse ano, o único país de relativa importância que não terá vacinado, em grau decente, a sua população. Além das centenas de milhares de vidas já perdidas, o acesso precaríssimo a vacinas condena os brasileiros à ausência de horizontes. À insegurança, à desconfiança e ao medo, que afetam a qualidade da vida de cada pessoa, corresponde a experiência comum de radical incerteza quanto ao momento de interrupção do círculo vicioso de adoecimento e morte, que afeta o ambiente social. Ar rarefeito, dura e ameaçadora realidade enfrentada pelas pessoas enfermas, tornou-se metáfora precisa das condições possíveis de sobrevivência coletiva em nosso país. Elas são uma jaboticaba venenosa, plantada pelo desligamento paulatino e deliberado dos motores do Ministério da Saúde, a partir do final de abril de 2020. O atentado ao SUS, a virtuosa jaboticaba federativa que o processo de democratização nos deixou como legado, já produziu consequências irreversíveis. O que se pode - em angustiante médio prazo que requer ação imediata - é deter a marcha implacável da tragédia e mitigar seus efeitos, por meio de uma política de redução de danos. Inusitado convívio de emergência e paciência.

É dever da política providenciar o oxigênio. Inexiste explicação, argumento ou causa nobre que justifique deslocar a plano sequer concorrente qualquer outra prioridade do país. Suspender juízos doutrinários, moderar impulsos inovadores, adiar definições partidárias, repensar alianças políticas são procedimentos cabíveis para combater, da melhor forma possível, os danos sociais da pandemia. Esse o sentido mais objetivo e atual que podem assumir a política econômica, as políticas de auxílio a vulneráveis e as chamadas reformas, por mais que todas essas políticas remetam, também, a horizontes transcendentes ao contexto da pandemia. Prospecções e metas, sejam quais forem seus intervalos temporais, tendem ao fracasso se não dialogarem com esse contexto que as pauta. Pode-se dizer que entregar esse oxigênio é a prova de legitimidade a que se submete, hoje, nossa democracia.

Cristovam Buarque* - Labirinto de espelhos

- Blog do Noblat / Veja

Brasil está ficando para trás na marcha do progresso

Por nossos erros ao longo de décadas, o Brasil está ficando para trás na marcha do progresso. Em decadência pela desigualdade social, pobreza, fracasso educacional, sem produtividade nem inovação, um Estado esgotado fiscal, gerencial e moralmente, sistema de ciência e tecnologia insuficiente, democracia e instituições políticas frágeis, sociedade violenta e armada, cidades “monstropolitanas”. Para agravar, com governo despreparado, desumano, sem bússola, antidemocrático, antissocial, sem empatia, reacionário, armamentista, preconceituoso, negacionista do valor do conhecimento, desmoralizado no cenário internacional.

O Brasil precisa de um rumo para orientar-se no seu terceiro centenário, que se inicia no próximo ano. Mas antes mesmo de formular este rumo, o Brasil precisa de coesão no presente e evitar o desastre previsível para os próximos. Ao observar os movimentos dos candidatos a presidente em 2022, a sensação é de que eles estão passeando em um labirinto de espelhos: nenhum sabe o caminho e cada um olhando para si ou seu partido, não para o país. Não reconhecem os erros cometidos que levaram à derrota em 2018, nem assumem responsabilidade pelas consequências de reeleição do atual presidente. Ao final do labirinto de espelhos, os candidatos imaginam a cadeira presidencial lhes esperando, sem perceberem que os caminhos labirínticos podem levar a um abismo.

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

A responsabilidade do Congresso – Opinião / O Estado de S. Paulo

Atuasse o Congresso com presteza e rigor, não seria o STF instado com tanta frequência a lembrar os limites da lei

Cumprindo o que determina a Constituição, a Câmara dos Deputados decidiu na sexta-feira passada sobre a prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), decretada por unanimidade pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A expressiva votação referendando a prisão – 364 votos favoráveis, 130 contrários e 3 abstenções – evidencia que a Câmara entendeu a gravidade do comportamento do parlamentar bolsonarista.

Ao divulgar um vídeo com pregação de caráter golpista, além de ofensas e ameaças a ministros do Supremo, o deputado Daniel Silveira violou o compromisso assumido de respeitar a Constituição e o Estado Democrático de Direito e praticou crimes tipificados pela lei brasileira. A imunidade parlamentar, que protege a manifestação de opiniões, palavras e votos, não é autorização para a prática impune de crimes.

Com a manutenção da prisão referendada pela Câmara, fica evidente que não foi negada ao deputado bolsonarista nenhuma garantia constitucional. Seu encarceramento não se deu por um ato autoritário do Judiciário fora dos trilhos legais. O plenário da Câmara, cumprindo o rito previsto na Constituição, entendeu que a prisão do deputado Daniel Silveira tinha fundamento legal.

Ao proteger o Estado Democrático de Direito – mantendo a prisão do deputado que defende o Ato Institucional (AI) n.º5, ameaça ministros do Supremo e incita a ruptura institucional –, a Câmara mostrou que deseja distância do discurso bolsonarista. A agenda do Legislativo não é a do conflito, tampouco da violência e do desrespeito às instituições.

Merval Pereira - Preparando o futuro

- O Globo

Sem entender, ou se preocupar, com a importância de cada palavra sua, especialmente em questões sensíveis como a administração de uma estatal como a Petrobras, que tem acionistas em várias partes do mundo, o presidente Bolsonaro prometeu que na próxima semana teremos mais surpresas como a que derrubou o presidente da Petrobras, Roberto Castello Branco, e colocou em seu lugar mais um general.

A politização vulgar de todos os temas nacionais, desde a questão das armas até o preço do diesel, faz com que o presidente Bolsonaro transforme o cotidiano brasileiro em um campo de batalha onde o que importa são os votos que esta ou aquela decisão poderá trazer para sua obsessiva busca de manter o poder que conquistou em momento de depressão nacional.

Emílio Delçoquio, um dos líderes da paralização dos caminhoneiros durante o governo Temer, é amigo de Bolsonaro, e o acompanhou nos feriados de Carnaval em Santa Catarina. Esta aproximação, no momento em que se discutia o aumento do óleo diesel, é preocupante e leva a uma ilação natural de que a mudança na Petrobras foi gestada naqueles dias.

O General Joaquim Silva e Luna, antes mesmo de assumir a presidência da Petrobras, disse que a estatal tem que se preocupar, além dos acionistas, com o povo brasileiro, que precisa encher o tanque de seu carro. A Venezuela também botou um General no comando da PDVSA, e se preocupava com o preço da gasolina nos postos. Tinha a gasolina mais barata do mundo, para alegria dos venezuelanos, e a popularidade de Chávez. Mas o país quebrou, e junto com ele a empresa estatal.

Tudo é tratado pontualmente, mesmo quando há um projeto político por trás, como é o caso do armamento. O presidente retirou o debate sobre o armamento da esfera da segurança pública e o levou para o da política, ao dizer que o povo tem que se armar para defender sua liberdade.

Dorrit Harazim - Lobo não solitário

- O Globo

Todo macho que se pretende alfa continua a mascar chiclete ao ser preso. É de manual. O ato mecânico tem duas funções: manter o retesamento da musculatura facial, indispensável à persona de fortão, e sinalizar um profundo desdém e superioridade por estar naquela situação. O deputado bolsonarista Daniel Silveira, preso em flagrante em Petrópolis por ordem do ministro do Supremo Alexandre de Moraes, tem o physique du rôle à altura do prontuário amealhado. Em seus primórdios, foi cobrador de ônibus que falsificava carimbos, atestados médicos e assinaturas para faltar ao trabalho. Dali, migrou para a Polícia Militar do Rio onde, em pouco mais de 5 anos, colecionou 26 dias de prisão, 54 de detenção, 14 repreensões, 2 advertências. Mesmo assim não foi expulso — desligou-se da PM para poder concorrer à vaga de deputado federal. Da corporação, guardou só os vícios e os carregou com ostentação para o Congresso, sob o beneplácito do clã Bolsonaro. Alvo nos inquéritos das fake news e dos atos antidemocráticos, conduzidos pelo STF desde 2020, o deputado encrencou-se feio esta semana ao divulgar um vídeo com tonitruante apologia à ditadura militar. Sua postagem, também repleta de ameaças e insultos nominais aos membros do Supremo, fez com que o colegiado, por unanimidade, e o plenário da Câmara, por ampla maioria de 364 votos a 130, mantivessem a ordem de prisão.

Não é certo que os 15 minutos de glória e exposição midiática almejados por Daniel Silveira tenham expirado. Eleito para a atual 56ª Legislatura com 0,41% dos votos úteis, o ex-PM de 38 anos talvez perca a adesão de alguns de seus 31.789 eleitores. A julgar pelo tratamento recebido em suas primeiras 48 de detenção, porém, há terreno fértil para adeptos novos.

Eliane Cantanhêde - Chávez, um amador

- O Estado de S. Paulo

Bolsonaro, em suas novas variantes, e o coronavírus, em suas novas cepas, dominam o País

Os fatos ganham velocidade atordoante: o presidente Jair Bolsonaro intervém na Petrobrás e põe mais um general como escudo, Supremo e Congresso às voltas com um personagem sarado, desbocado, armado e perigoso como um miliciano, Estados e municípios em desespero com falta de vacinas e sistema de saúde à beira do colapso. Bolsonaro, com suas variantes convenientes, e o coronavírus, com suas novas cepas oportunistas, avançam e ampliam seus raios de ação. 

A demissão do “Chicago Boy” Roberto Castello Branco e a intervenção na Petrobrás encerram definitivamente o teatro de um governo liberal, no qual o presidente assumia não entender nada de economia e prometia não se meter onde não devia. Falam em “dilmização” de Bolsonaro, mas tem uma diferença. A ex-presidente Dilma Rousseff tinha mão pesada na Petrobrás (e em juros, por exemplo) por concepções equivocadas e obsoletas sobre economia, enquanto Bolsonaro mete por uma única motivação: populismo, a seu próprio favor. 

Com as ações da Petrobrás esfarelando aqui e lá fora, o ministro Paulo Guedes faz o triste papel de quem perdeu a pauta, o timing e os brios. O Brasil foi dormir com a expectativa de reação, até de demissão, do ministro. Mas acordou com ele prometendo um jeitinho de compensar a isenção de tributos do diesel e do gás de cozinha. Patético. “Um manda, outro obedece.” A máxima de Eduardo Pazuello atinge todas as áreas, onde pululam generais e almirantes e vaga o economista Guedes.

Luiz Carlos Azedo - O mico da Petrobras

- Correio Braziliense

“O melhor negócio do mundo já não é uma refinaria de petróleo, como dizia David Rockefeller. Estamos vivendo uma grande mudança de matriz energética”

Esta quem me contou foi o ex-governador Artur Carlos Gerhardt Santos, que governou o Espírito Santo no começo dos anos 1970 e foi o grande artífice de sua industrialização. Levou para o seu estado indústrias de beneficiamento de commodities que muitos não desejavam, por causa dos riscos ambientais, como a Aracruz Celulose e a Companhia Siderúrgica de Tubarão, razão pela qual o Espírito Santo tem uma economia industrial ligada ao comércio exterior.
A história é a seguinte: quando foi construída a ponte rodoferroviária Florentino Avidos, a primeira ligação entre a ilha de Vitória e o continente, um português empreendedor logo tratou de criar uma linha de lotação, como se chamavam os ônibus da época. Os catraieiros  – barqueiros que faziam o transporte de passageiros entre a capital e Vila Velha – fizeram uma greve. “Não tinha a menor chance de dar certo”, disse-me o ex-governador. Hoje, os catraieiros continuam oferecendo seus serviços, até viraram atração turística. Obviamente, para reduzido número de usuários.

A história é singela, mas ilustra o impacto da modernização nos meios de produção e na organização do trabalho, resguardadas as devidas proporções, é claro. E nos remete aos caminhoneiros e à situação da Petrobras, símbolo do nacional desenvolvimentismo e do nosso capitalismo de estado. Ontem, por pressão dos caminhoneiros insatisfeitos com a alta de preços dos combustíveis, o presidente Jair Bolsonaro demitiu o presidente da Petrobras, Roberto Cunha Castelo Branco, e nomeou para o cargo o general Joaquim da Silva e Luna, ex-ministro da Defesa do governo Michel Temer.

Bernardo Mello Franco – O caminho do Capitólio

- O Globo

No dia seguinte à invasão do Capitólio por seguidores de Donald Trump, o presidente Jair Bolsonaro avisou que sua tropa pode replicar a baderna no Brasil. “Se nós não tivermos o voto impresso em 2022, uma maneira de auditar o voto, nós vamos ter problema pior que os Estados Unidos”, disse.

Trump questionou o resultado das urnas para mobilizar seus radicais contra a democracia. O capitão mina a confiança no voto eletrônico para justificar uma rebelião em caso de derrota. Na cabeça dele, o “problema” pode ser a solução para se manter no poder pela força.

Na véspera do carnaval, Bolsonaro editou novos decretos que facilitam o acesso a armas e munições. A iniciativa segue a cartilha anunciada na reunião ministerial de abril passado: “É escancarar o armamento no Brasil. Eu quero o povo armado”. Naquele momento, a ideia era fomentar um levante contra governadores e prefeitos. No ano que vem, a mira deve se voltar contra a Justiça Eleitoral.

No discurso de Bolsonaro, armar o “povo” significa municiar aliados e seguidores. Gente como o extremista Daniel Silveira, que incitou a violência contra o Supremo e se disse disposto a “matar ou morrer” pelo chefe.

O deputado marombado foi preso, mas suas ideias estão soltas na base bolsonarista. Na sexta-feira, o ogro foi tratado como mártir pelo Clube Militar. Em nota, a entidade exaltou a ditadura e falou em “arbitrariedades do STF”. Apesar de defender o regime autoritário, reivindicou “liberdade de expressão” para o conspirador.

A diretora executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno, alerta que a ofensiva armamentista do governo nada tem a ver com o discurso de autodefesa do “cidadão de bem”. Um dos novos decretos permite que o mesmo atirador compre 60 armas.

Elio Gaspari - Daniel Silveira errou o tiro

- O Globo / Folha de S. Paulo

Deputado, que se dizia “cagando e andando” para as opiniões do STF, pensou em criar uma crise institucional; deu errado, fosse qual fosse a intenção

Daniel Silveira é um ex-PM do Rio. Em seis anos na corporação, pagou 26 dias de prisão, com 14 repreensões. Antes de entrar para a polícia, ele se valia de falsos atestados médicos fraudados por um faxineiro para faltar ao serviço. Preso na semana passada, manteve dois celulares na sala da Polícia Federal onde ficou, por decisão do ministro Alexandre de Moraes.

Esse personagem, que dias antes se dizia “cagando e andando” para as opiniões de ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), pensou em criar uma crise institucional no Brasil. Ele foi o estuário de uma visão nascida em 2018, quando o deputado Eduardo Bolsonaro disse que “basta um cabo e um soldado para fechar o Supremo Tribunal”. Não bastam.

Ao seu estilo, Daniel Silveira usou a repercussão do depoimento do general da reserva Eduardo Villas Bôas para atacar, em nome de sua agenda pessoal, os ministros Edson Fachin, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes. Os inquéritos sobre mobilizações antidemocráticas propagando mentiras estão na mesa de Moraes. Fosse qual fosse a intenção de Silveira, deu errado.

Na última terça-feira, quando os ataques do deputado chegaram ao conhecimento de ministros do Supremo, vários deles discutiram o caso com Moraes. À noite, ele mandou prendê-lo. Silveira sustenta que o flagrante citado por Moraes não se sustenta. O que não se sustenta é sua jurisprudência. Enquanto uma mensagem está postada pelo autor, o delito está em curso. (Depois que Silveira foi em cana, o vídeo foi apagado.)

Pelo andar da carruagem, ainda nesta semana o doutor poderá passar para um regime de tornozeleira, com limitações cautelares. A partir daí, tudo dependerá do seu comportamento.

A julgar pela sua conduta respeitosa durante a audiência de custódia de quinta-feira, o que foi combinado ficará de pé. Caso Silveira tenha uma recaída, saindo por aí “cagando e andando” por onde bem entende, cairá de novo na jurisdição de Alexandre de Moraes.

Bruno Boghossian – O Supremo quer parar o elevador

- Folha de S. Paulo

Ministros querem evitar que processo de Silveira saia do STF em caso de cassação ou renúncia

Mesmo com a prisão mantida pela Câmara, o deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) ainda tem chances de escapar de uma punição definitiva. Ministros do STF lembram que, se o parlamentar for cassado ou renunciar ao mandato, o processo contra ele pode ser remetido a um tribunal de primeira instância.

No Supremo, o ambiente é evidentemente desfavorável ao deputado, como mostrou a sessão da última quarta (17). Até o decano Marco Aurélio Mello, famoso por ficar isolado nas votações, aderiu à maioria e ressaltou que “ninguém coloca em dúvida a periculosidade do preso”. É praticamente certo, portanto, que o tribunal deve tornar Silveira réu.

Ainda assim, o processo pode sair das mãos do STF. As regras do foro especial determinam que uma ação muda de instância se um político perde o cargo antes da conclusão da fase de depoimentos. Em caso de renúncia ou de cassação do mandato por seus colegas da Câmara, ele pode responder em Petrópolis (RJ) pelas ameaças ao Supremo.

Hélio Schwartsman - A fé na ciência

- Folha de S. Paulo

A ciência é como a democracia e o melhor que temos para produzir conclusões provisórias que dependem mais da realidade do que dos desejos

Precisamos nos guiar pela ciência. Estou entre os primeiros a subscrever essa ideia, mas é preciso cuidado para não estabelecer com a ciência uma relação tão dogmática quanto a que se tem com as religiões.

Para início de conversa, a ciência quase nunca oferece certezas. Ela trabalha mais é com probabilidades, e todas as conclusões que ela permite devem ser tratadas como verdades provisórias. E é preciso enfatizar o “provisórias”.

Todas as teorias científicas produzidas até aqui se mostraram erradas, como é o caso da teoria médica dos humores, de Hipócrates e Galeno, ou gravemente incompletas, como a física newtoniana. Não temos nenhuma razão para acreditar que as teorias correntes, que ainda não fomos capazes de avaliar com precisão, experimentarão um destino muito diferente.

Ruy Castro - O porquê de tanta macheza

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro não pode mais deixar o poder, daí as armas, a blindagem e os jagunços, dentro ou fora da lei

Sem essa de maricas no seu quintal. Jair Bolsonaro gosta de se cercar de rapazes fortes, marombados. Daniel de Tal, ex-PM e YouTuber federal, é um deles. Há dias, para impressionar Bolsonaro, o bofe gravou um vídeo pregando o fechamento da democracia e ameaçando bater com um gato morto nos 11 senhores do STF, que, juntos, passam de 700 anos de idade. Outro favorito de Bolsonaro era o também ex-PM e também he-man Adriano Nóbrega. Mas a vida dá voltas. Daniel tornou-se um estorvo para Bolsonaro e foi jogado ao mar. E, por motivo de força maior, em 2020, na Bahia, Adriano foi convencido a ir para o céu.

Por sorte, abundam reposições. Bolsonaro, como se sabe, prestigia qualquer formatura de PMs e bombeiros. Não apenas se sente bem entre aqueles coletes e coturnos, como admira a constância com que as duas corporações suprem a milícia —três forças com que um dia precisará contar numa eventualidade. Para se garantir e não correr riscos, Bolsonaro igualmente não perde as formaturas de cadetes, certo de que os jovens oficiais lhe serão mais eficientes do que os generais puídos e babões que hoje o avalizam.

Janio de Freitas - A Folha merece corrigir seu caminho

- Folha de S. Paulo

Os meus 40 carregam a satisfação de três contribuições aos 100 anos do jornal

Nos 100 anos da Folha, estendi por 40 anos, completados em novembro de 2020, um equívoco que se desdobrou em incontáveis outros. Um telefonema de Boris Casoy, então diretor de Redação, com um convite para minha colaboração no jornal, dava seguimento a uma sugestão de Flávio Rangel a Otavio Frias Filho, que procurava novo ocupante para a coluna fina da página 2.

Não ia durar mesmo, então comecei, não com os esperados seis textos por semana, três cabiam. Não se conversou sobre o gênero de coluna. Meu antecessor viera de décadas como editorialista de política, com estilo e temática dessa linhagem. Esperavam de mim, supus, a continuação assim. Nem tentei: em São Paulo com o nome de Janio, jornalista do abominável balneário do Rio e incapaz de fazer o que não sabia, na certa seria o horror dos leitores experimentais. Corri para uma crônica de fundo político, com temperos improváveis e cardápio variado.

O oposto do que Otavio desejava, vim a saber não muito depois. O convite foi um equívoco. De Otavio nunca ouvi uma referência positiva a artigo meu. A rigor, ouvi dois elogios: um, ao artigo “Cuba ida e volta”, quando me disse sentir-se em culpa por me haver retido no trabalho estiolante da coluna; outro, no artigo sobre a Grécia do mar Egeu, onde me emocionara muito. Um elogio para cada 20 anos é ao menos uma média original.

Quando Frias pai quis me passar para um espaço próprio e fixo, seis dias na semana, relutei muito comigo mesmo. Fui vencido por outro equívoco. Ano a ano, o canto alto e junto à dobra da página 5 recebeu e entregou um assunto exclusivo, em geral relevante e um tanto atrevido. O ponto final de uma coluna sinalizava o início do trabalho para a seguinte, ou as seguintes. Uma insensatez. Que pressenti, porém não aliviei, como é mais comum, pelo orgulhoso fascínio desta profissão imprópria para os países de falso “em desenvolvimento”.

Míriam Leitão - Risco ao capital e à democracia

- O Globo

A Petrobras está sob intervenção de militares. O presidente da empresa e do conselho são um general e um almirante, o ministro da área, um almirante. A empresa perdeu R$ 50 bilhões de valor, no pregão de sexta-feira e no after market, e a governança foi violentada. Jair Bolsonaro alimentou a especulação, anunciou a mudança pelo Facebook e o fato relevante veio só depois. O general Joaquim Silva Luna foi um dos redatores da nota de ameaça ao Supremo em 2018. O ministro da Economia, Paulo Guedes, virou um fantasma dentro do governo.

Acionistas podem entrar na Justiça porque tiveram prejuízo por ato temerário do acionista controlador. Várias regras das empresas de capital aberto e do estatuto da Petrobras foram feridas por Bolsonaro. O golpe foi executado em detalhes. Ao anunciar que indicava Silva Luna também para ser um dos membros do Conselho de Administração, o governo convocou uma Assembleia Geral Extraordinária. A Lei das S/A de 2001, artigo 141, parágrafo terceiro, diz que sempre que houver a destituição de um membro do conselho todos os outros estão destituídos. Assim, o governo preparou o bote. Se houvesse resistência ao nome do general Luna, entre os seus representantes no Conselho de Administração, todos os nomes restantes seriam trocados. À noite, o governo informou que os reconduzia. Contudo, ficou sobre eles a espada.

Vinicius Torres Freire – Comida encareceu mais que combustível

- Folha de S. Paulo

Óleo de soja e arroz aumentaram muito mais que diesel. Bolsonaro vai intervir?

Em um ano, o óleo de soja ficou 96% mais caro. O óleo diesel, 2% mais barato, segundo o IPCA de janeiro. Nas contas da Agência Nacional do Petróleo, o diesel encareceu 2% de fevereiro de 2020 para cá.

Talvez um ano apenas não conte bem a história da carestia do combustível. Considere-se então o que aconteceu desde outubro de 2016, quando a Petrobras passou a reajustar seus preços com mais frequência, com base na cotação internacional. O óleo de soja ficou 123% mais caro. O óleo diesel, 23%. O arroz, 67%. O quilo de alcatra, 41%.

O problema não seria apenas o preço alto do combustível, se diz por aí, mas sua variação excessiva. No entanto, os preços do diesel ou da gasolina são menos voláteis do que os de arroz, feijão, alcatra ou óleo de soja, pelo menos desde 2016.

Jair Bolsonaro vai intervir nos preços da comida, como ameaça fazer com a Petrobras? Mais difícil. Não existe uma Vacabrás ou uma Arroz Pátria Amada S.A. Por falar nisso, assim como ferro e petróleo, grãos e carnes têm preços definidos no mercado mundial.

Não há Vacabrás nem tampouco grande grupo organizado de protesto daqueles que não podem comprar arroz. O povo definha quieto, ainda mais em tempo de esquerda semimorta. Mas existem movimentos caminhoneiros e empresariais fortes o bastante para quase levar o Brasil ao colapso rodoviário. Alguns são falanges de Bolsonaro, animador do caminhonaço de 2018.

José Roberto Mendonça de Barros* - Teremos novo superciclo de commodities?

- O Estado de S. Paulo

Mesmo com as vacinas, mundo continuará bem complicado

Nas últimas semanas, vários artigos começaram a discutir a possibilidade de estarmos entrando num ciclo de alta de preços de commodities, semelhante àquele ocorrido no início deste século. Razões para essa hipótese não faltam: em relação a março do ano passado, quando boa parte do mundo parou por conta da pandemia, os preços em dólar do minério de ferro estavam 90% mais elevados, os do aço, 118%, os da soja, 54%, e os do milho, 60%.

Os defensores dessa tese aliam três grupos de observações. 

Na última década, os preços das mercadorias foram relativamente baixos, fazendo com que os investimentos em nova capacidade produtiva fossem se reduzindo. Assim, em muitos casos não há folga disponível na oferta e, dado o fato de que novos projetos levam bastante tempo para se completar, teríamos uma situação na qual há uma baixa elasticidade de resposta da produção frente a um aumento da demanda no curto prazo.

O segundo ponto destacado nessas análises projeta uma forte elevação da procura por esses bens nos próximos meses, uma vez que o avanço da vacinação em massa nos países ricos do hemisfério norte deve liberar o relacionamento social ao longo do segundo semestre. Neste momento, a vontade reprimida de consumir, os recursos poupados durante o distanciamento social e a continuidade das políticas expansionistas alavancarão uma rápida expansão dos mercados. Isso se somará ao crescimento que já ocorre na China e em outros países asiáticos. 

Ao lado disso, mudanças induzidas e reforçadas pelo período de pandemia levarão a um maior consumo de certos materiais, especialmente metais.

Sérgio Augusto - Como Pinochet influencia a extrema-direita contemporânea

- O Estado de S. Paulo / Aliás

Gangues pró-Trump usam símbolos do ex-ditador chileno e se inspiram em grupos paramilitares como o Patria y Liberdad, bancado pela CIA e surgido no Chile logo após a eleição de Salvador Allende

A cobra fumou. Tem muito tempo: 76 anos. Era uma jararaca e simbolizava a FEB (Força Expedicionária Brasileira), que, surpreendendo a descrença geral, fumou—ou seja, finalmente foi para a Itália lutar contra Mussolini e Hitler. Uma cobra do bem. 

As lendas amazônicas e a poesia de Raul Bopp nos legaram a Cobra Norato, a serpente emplumada de maias e astecas inspiraram D. H. Lawrence, mas não esperem boa coisa do ofídio batizado pelos gringos de “Hoppean snake” (ou a cobra de Hoppe). Hoppe, não Hopper (Edward), que nunca foi de pintar animais invertebrados.

Cascavel enroscada, com um quepe militar na cabeça, a cobra hoppeana virou uma espécie de suástica dos baderneiros de extrema direita americanos, onipresentes nos ralis trumpistas e ativíssimos naquela invasão do Congresso americano, incitando o desacato e o terror.

Os serviços de segurança, mesmo sob Trump, já estavam em seu rastro; com Biden na presidência, a vigilância deverá redobrar, tantas já foram as ameaças dos neofascistas de sabotar instalações elétricas, o sistema de telecomunicações, os serviços de saúde e outras variedades de terrorismo detectadas nas últimas semanas.

Os criadores dessa víbora inspiraram-se na que adorna a “bandeira de Gadsden”, pavilhão projetado há 246 anos pelo político e soldado Christopher Gadsden, por inspiração de Benjamin Franklin, para simbolizar as colônias americanas que se rebelaram contra os colonizadores ingleses e alimentar-lhes a patriótica beligerância. A inscrição que a acompanha (“Não pise em mim”) era uma advertência: pacífica, ela só atacava se fosse atacada. Outra cobra do bem, no caso, a serviço da Revolução Americana.

Sua filha bastarda, a peçonha de Hoppe, nem o Butantã talvez a aceitasse em seu ofidiário. 

O quepe que ela ostenta na cabeça é o do general Augusto Pinochet, sanguinário e corrupto ditador do Chile de 1973 a 1990, que, por não ter tido sucessores, encarnou solito a tirania que implantou sobre o cadáver de Allende. O helicóptero que também ilustra os estandartes e as camisetas da malta paramilitar machista vidrada em Trump (Boogaloo Boys, Proud Boys, Three Percenters e Oath Keepers) é uma réplica dos que transportavam presos políticos para despejá-los, vivos, nas águas do oceano, um dos highlights do programa de extermínio do regime pinochetista.

Celso Lafer* - Biden e a ciência

- O Estado de S. Paulo

Ele quer mobilizar o conhecimento em prol da sociedade americana, no presente e no futuro

É atributo da liderança a capacidade de indicar rumos na lida com a crescente complexidade das coisas. Na perspectiva da política, é assegurar o sentido de direção que sustenta e amplia a governança dos caminhos de uma sociedade. Joe Biden, neste início de gestão, vem indicando abrangente sentido de direção, até mesmo em matéria de ciência e conhecimento.

“Conhecimento é poder”, enunciou Francis Bacon. Antiga afirmação que retém plena atualidade. Esta resulta da crescente velocidade com que a ciência e a pesquisa expandem as fronteiras do conhecimento, trazendo mudanças que alteram as condições de vida em escala planetária. Empoderamento digital e vacinas eficazes para conter a covid-19 são duas ilustrações do alcance da afirmação de Bacon.

Robert Zoellick, no recente livro America in the World, dedicado à análise da diplomacia na construção do poderio dos Estados Unidos, tem um capítulo dedicado a Vannevar Bush, o “inventor do futuro”. Bush foi assessor de Roosevelt e de Truman. É o autor de Science: The Endless Frontier, que inspirou os proponentes da criação da Fapesp e me impressionou quando li a documentação da instituição, que tive a honra de presidir. O relatório mereceu importante apresentação em artigo de 2014 de Carlos Henrique de Brito Cruz, então diretor científico da Fapesp.

Bush concebeu o sistema americano de ciência, tecnologia e inovação pós-2.ª Guerra, levando em conta a complementaridade e os distintos papéis do governo federal, da indústria, de uma comunidade científica e universitária livre e independente e das empresas privadas. Criou, como observa Zoellick, um modelo de inovação que eclipsou o sistema soviético estatal. Esse foi um dos dados que levaram ao sucesso dos Estados Unidos na sua competição com a então União Soviética. Hoje a tensão predominante no sistema internacional passa pelas aspirações de hegemonia que caracterizam o relacionamento de Estados Unidos e China.

Música | Mariana Aydar + Fejuca part. Roberta Sá | Aqui Em Casa | Forró do Xenhenhém

 

Poesia | Joaquim Cardozo - Território entre o gesto e a palavra

Entre o gesto e a palavra: território escondido dentro de mim
Marcas de mortas visões; tentativas, indecisões, regozijos,
Entre o gesto e a palavra. Território:
Um silêncio, um gemido, um esforço imaturo
Possibilidade de um grito, modulação de uma dor.
— Ritmos mais doces que os das águas,
— Ternuras mais íntimas que as do amor
Entre o gesto e a palavra. Território
Onde as ideias se ocultam e os pensamentos se perdem
Os conceitos se escondem, os problemas se dissolvem
Entre o gesto e a palavra. Território.
— Os problemas da escolha, os princípios;
Transcendências: transparências, mediante
Uma luz que não se acende, existem
No território contido entre o gesto e a palavra.
— Um axioma, um lema, um versículo, um fonema,
Uma ameaça, uma tolice, o som velar, o eco,
Talvez a estátua de uma atitude.
Estão no campo depois do gesto
E antes da palavra.
Também estás para mim, amiga, entre esses dois expressivos
Entre alguma coisa de mímico ou de sonoro
Alguma coisa que é aceno ou que é voz:
Entre o de mim e o de ti: Tu estou
Tu vivo
Tu falo
Tu choro
Estás, mesmo que entre nós dois não exista
Um aparato gramático — uma sentença verdadeira
— ou uma síntese poética
Ilusória expressão com que se conformam os ingênuos —
Mesmo que a palavra se reduza a simples gesto verbal
Entre o gesto e este gesto há um infinito real.

In: CARDOZO, Joaquim. Poesias completas. 2.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p.207-208. Poema integrante da série Mundos Paralelos