domingo, 5 de julho de 2020

Fernando Henrique Cardoso* - Tempos confusos

- O Estado de S.Paulo / O Globo

Se não souber falar, se tiver dúvidas, que o presidente se cale. Como na última semana

Tempos confusos os que temos vivido. A tal ponto que estranhamos o que aconteceu no meio da semana: chamou a atenção o fato de o governo não haver arranjado nenhuma confusão nova. Isso depois de, sem se dar ao luxo de explicar melhor ao País as razões, o presidente haver dispensado vários ministros nas pastas da Educação e da Saúde. Pelo menos até a última sexta-feira, quando escrevo este artigo, não demitiu ninguém ou ninguém se sentiu na obrigação de abandonar o Ministério. Nem mesmo se viu o presidente ou seus porta-vozes atribuírem à oposição ou a alguém mais notório o estar “conspirando”. Daí a calmaria.

É assim que vai andando o atual governo, meio de lado. Sem que os “inimigos” façam qualquer coisa de muito espetacular contra ele, é ele próprio que se embaraça com sua sombra. De repente, quando não há nenhum embaraço novo, nenhuma “crise”, o presidente não se contém: fala e cria uma confusão.

É verdade que o governo federal não teve sorte. Não foi ele que criou a pandemia que nos aflige nem a paralisação da economia, que já vinha de antes. Mas a confusão política, desta ele se pode apropriar: foi coisa inventada pelo próprio presidente e seus fanáticos.

Por certo ela se agrava com a crise econômica e a da saúde pública. Mas o mau gerenciamento das crises e da política é o que caracteriza os vaivéns do governo Bolsonaro. No Congresso Nacional e nos tribunais (apesar de tão malfalados nos comícios pelos adeptos presidenciais) tem havido resistências à inação governamental e a suas investidas contra as instituições.

Merval Pereira - Os inocentes

- O Globo

“Os inocentes do Leblon”, poesia de Carlos Drummond de Andrade de 1940, poderia ter sido escrita ontem, quando os bares do bairro carioca encheram-se de “inocentes” sem medo do amanhã. Aglomerados, sem máscara, “os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram/mas a areia é quente, e há um óleo suave/ que eles passam nas costas, e esquecem”.

Excitados pela liberação açodada e irresponsável dos bares e restaurantes por governantes fracos e oportunistas, os inocentes saíram às ruas para comemorar o quê? Quase 70 mil mortes? Mais de um milhão e meio de contaminados pela Covid-19?

Em vários lugares do mundo, e não apenas no Leblon, multidões saíram às ruas depois de pelo menos três meses de quarentena, e muitos locais já estão tendo que retroceder, com certas áreas na Espanha, e o toque de recolher imposto em Miami.

Em Paris, um festival de música que atraiu milhares de jovens pode ter provocado um aumento da contaminação. Estados Unidos, México e Brasil são responsáveis por mais da metade das mortes mundiais por Covid-19, não por acaso governados por dirigentes negacionistas.

Em plena ascensão da praga, o presidente Bolsonaro dá-se ao desplante de vetar a obrigatoriedade de máscaras no comércio e nas igrejas, e governadores populistas mudam de posição pensando na eleição de novembro.

Como será “o mundo pós-pandemia”? O advogado e escritor José Roberto Castro Neves reuniu um grupo de especialistas para imaginarem o que acontecerá em seus respectivos campos de atuação, e o resultado, editado pela Nova Fronteira, já está nas livrarias.

Vera Magalhães - Quem sabe sabe

- O Estado de S.Paulo

Pragmáticos superam Guedes, militares e ideológicos e fazem a cabeça de Bolsonaro

Quando a coisa fica feia, quem você chama para resolver? Se o problema é de natureza política, o risco é um impeachment e ao seu redor só há neófitos no assunto, alguns claramente perturbados por delírios ideológicos, é melhor você chamar os profissionais do ramo.

Foi o que Jair Bolsonaro fez, quando a insensatez com que vinha conduzindo o País desde janeiro ameaçava de fato desaguar numa interdição de seu mandato, por alguma das muitas frentes abertas para conter seu ímpeto autoritário e genocida.

Foi buscar logo os mais experientes. Convencionou-se falar em “Centrão”, mas é bom dar nomes aos bois. Hoje, quem faz a cabeça do presidente em primeiro lugar não são os militares, alquebrados pela forma como as Forças Armadas foram desgastadas pelo delírio golpista do presidente, nem Paulo Guedes, cuja agenda liberal foi solapada pela crise da pandemia e pelo populismo que o chefe vai adotando sem cerimônia, nem os malucos ideológicos, dos quais o “capitão” parece que vai se cansando.

O conselheiro-geral da República se chama Gilberto Kassab, preside o PSD, avalizou dois ministros em um mês, ajudou a calar a matraca presidencial e – milagre dos milagres – ainda escapa incólume da artilharia dos filhos e dos fanáticos da internet.

Luiz Carlos Azedo - A Lava-Jato não morreu

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Paira como espada de Dâmocles sobre a cabeça dos políticos enrolados com caixa dois eleitoral e outros ilícitos, tendo Sergio Moro como símbolo”

Com o ex-ministro da Justiça Sergio Moro na planície, amargando o que talvez tenha sido seu grande erro — deixar a carreira de juiz para ser ministro do governo Bolsonaro —, e a força-tarefa de Curitiba sob pressão administrativa por parte do procurador-geral da República, Augusto Aras, que pretende unificar todas as forças-tarefa numa coordenação sob sua supervisão, a Operação Lava-Jato parecia perto do fim. Entretanto, na sexta-feira, mostrou que está vivíssima e continua sendo uma variável a ser considerada do processo político brasileiro. A bola da vez foi o senador José Serra (PSDB-SP), acusado de receber propina para garantir contratos da construtora Odebrecht com órgãos públicos em São Paulo.

A Polícia Federal cumpriu mandados de busca e apreensão em endereços ligados ao parlamentar. Serra foi deputado federal, ministro da Saúde, prefeito de São Paulo, de 2005 a 2006, e governador do estado entre 2007 e 2010. Segundo a Lava-Jato, teria se beneficiado com propina em duas vezes: o primeiro repasse teria sido de R$ 4,5 milhões, e o segundo, de R$ 23,3 milhões. De acordo com a PF, era identificado pelo codinome “Vizinho” nas planilhas de pagamentos ilegais da empreiteira, porque morava perto de Pedro Novis, suposto contato dele com a Odebrecht. “Vizinho” aparece em planilhas de repasses ilegais relacionados às obras do Rodoanel de São Paulo, segundo a denúncia oferecida à Justiça contra o parlamentar e a filha dele, Verônica Serra. Ao todo, o senador teria recebido R$ 27,8 milhões ao longo dos anos.

Eliane Cantanhêde - Nem heróis nem vilões

- O Estado de S.Paulo

Na demolição da Lava Jato, o PT ajuda a PGR e a PGR reforça a vitimização de Lula

O PT e os lulistas em geral esfregam as mãos e comemoram os ataques contra a Lava Jato iniciados pela Procuradoria-Geral da República (PGR), mas deveriam parar, pensar e lembrar da máxima do ex-deputado José Genoino, um dos petistas mais lúcidos, depois abatido, talvez exageradamente, pelo mensalão: “Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa”.

Uma coisa é a PGR e ícones da área jurídica detectarem “excessos” na Lava Jato e ameaçarem até punir os líderes da força-tarefa, o que reforça o discurso de vitimização do ex-presidente Lula. Outra coisa é isso favorecer objetivamente Lula. Muda algo na Justiça e no STF? A PGR, com um escolhido pelo presidente Jair Bolsonaro fora da lista tríplice, tem alguma simpatia pelo petista?

No limite, os que atacam a Lava Jato na PGR até admitem que houve “algum excesso” no caso do triplex do Guarujá, pelo qual Lula foi condenado em primeira e segunda instância e passou 580 dias preso. Mas, automaticamente, defendem que ele deve ser preso, sim, é pelo sítio de Atibaia, recheado de provas robustas.

Logo, a adesão do PT à demolição da Lava Jato pela PGR é para insistir em Lula vítima, mas principalmente é contra o ex-juiz e ex-ministro Sérgio Moro e a força-tarefa. Uma vingança, com forte efeito colateral: uma aliança entre opostos. Ao demonizarem a Lava Jato, quanto o PT ajuda o bolsonarismo na PGR e quanto a PGR bolsonarista reforça a vitimização de Lula?

Ao dar o primeiro tiro em Curitiba, a PGR atraiu a artilharia do PT, OAB, TCU, da Corregedoria do MP e de condenados ou processados (do Centrão, MDB e PSDB?) que pretendem transformar os “heróis” da Lava Jato em “vilões”. Eles, porém, não são heróis, muito menos vilões e, como Moro alertou em Live do Estadão, em 3/7, a Lava Jato foi um benigno “divisor de águas” contra a eterna impunidade. “Não entendo, sinceramente, aonde quem ataca a Lava Jato quer chegar”, provocou.

Lourival Sant'Anna - Golpes à democracia

- O Estado de S.Paulo

Rússia, China, Brasil e EUA assistem a processos de enfraquecimento da democracia ao longo do ano

A democracia sofreu golpes na Rússia, China e Estados Unidos na semana que passou, mas recebeu alentos na Europa e no Brasil.

Um referendo aprovou mudanças constitucionais que permitem a Vladimir Putin se eleger para mais dois mandatos de seis anos, a partir de 2024, quando termina o atual. Muitos russos gostam de Putin, que identificam com a estabilidade, depois das rupturas traumáticas dos anos 90. Mas muitos não votaram exatamente pela sua perpetuação no poder. A consulta era sobre um pacote de emendas, que atrela o salário mínimo a um cálculo de renda mínima, corrige as aposentadorias pela inflação e declara casamento união entre homem e mulher. As opções eram sim ou não para o pacote todo.

A propaganda em torno do referendo focou nos benefícios salariais e no ataque ao casamento de homossexuais, numa Rússia que se tornou mais conservadora nas últimas duas décadas sob Putin, aliado da Igreja Ortodoxa. Ele governa a Rússia desde 1999. Em 2036, terá 83 anos.

O regime chinês emendou a Lei Básica de Hong Kong, introduzindo normas de segurança que, essencialmente, criminalizam os protestos, com prisões perpétuas por motivos vagos, como “subversão” ou “vinculação com estrangeiros”. Centenas de pessoas já foram presas. Na prática, deixa de existir o status de semiautonomia, e o modelo de “um país, dois sistemas”, consagrado no acordo da devolução do território à China pelo Reino Unido, que deveria durar 50 anos, até 2047.

O presidente Donald Trump deixou claro que investirá na divisão dos americanos para tentar se reeleger em novembro. Em um tuíte, por exemplo, ele disse que pode revogar uma lei que beneficia moradia de negros nos subúrbios, porque ela “desvaloriza” o patrimônio de “grandes americanos”. Noutro, afirmou que a frase “Vidas Negras Importam”, pintada pela prefeitura de Nova York na 5.ª Avenida, onde ele tem escritório, “denigre uma avenida luxuosa”.

Ricardo Noblat - Sugestão ao futuro ministro da Educação seja ele quem for

- Blog do Noblat | Veja

Água para beber e lavar as mãos é pedir demais?

Em meio à pandemia onde a ordem planetária é para que se lavem as mãos com água e sabão ou com álcool gel, o quarto ministro da Educação de Bolsonaro no curto período de 18 meses poderia se comprometer logo de saída pelo menos com uma coisa: garantir água potável para os quase 2 milhões de alunos sem acesso a ela.

Seria pedir muito? Lavar as mãos com água suja – e pior, bebê-la – não detém o Covid-19 e ainda atrai um monte de outras doenças. Segundo dados do Censo Escolar de 2019 citados pelo O GLOBO, de um total de 139 mil escolas públicas estaduais e municipais espalhadas pelo país, falta água potável em 10.685 delas.

Em 8% das escolas que atendem 800 mil alunos não há também ligação com esgoto público e nenhum tipo de fossa. Em 4% das escolas (614 mil alunos) não há banheiro. E em 3% (148 mil alunos) não há energia elétrica. Não é, pois, de espantar que apenas 25% das escolas liberam a internet para os alunos.

Acabar com o déficit de água potável nas escolas públicas marcaria para sempre a passagem de qualquer um pelo Ministério da Educação.

Bernardo Mello Franco - Revoada tucana

- O Globo

Demorou seis anos, mas aconteceu. Na sexta-feira, a Lava-Jato denunciou o primeiro figurão do PSDB de São Paulo. O senador José Serra foi acusado de receber propina da Odebrecht durante as obras do Rodoanel. Os repasses somaram R$ 191 milhões em valores atualizados, informou o Ministério Público Federal.

Os procuradores dizem ter identificado crimes de corrupção, fraude a licitação e formação de cartel. Como a investigação andou a passo de tartaruga, a maior parte das acusações prescreveu. Mesmo assim, Serra e a filha Verônica foram denunciados por lavagem de dinheiro transnacional.

Também na sexta, a Polícia Federal fez buscas em endereços do senador e do ex-deputado Ronaldo Cezar Coelho, que já admitiu ter recebido caixa dois na Suíça. A operação recebeu o nome de Revoada. Homenagem singela ao tucano, símbolo do partido que governou o país entre 1995 e 2002.

Ex-prefeito, ex-governador e ex-ministro, Serra foi quase tudo, menos o que sempre quis ser. Chegou ao segundo turno de duas eleições presidenciais, mas foi derrotado por Lula e Dilma Rousseff. Sua derrocada abre um novo capítulo na história de declínio do PSDB. O partido passou incólume pela Lava-Jato enquanto pontificava na oposição. Consumado o impeachment, viu sua blindagem desmoronar.

Candidato ao Planalto em 2014, Aécio Neves escapou por pouco da cadeia. Os ex-governadores Beto Richa e Marconi Perillo não tiveram a mesma sorte. Até Eduardo Azeredo, precursor do valerioduto, acabou em cana. Ele havia se tornado um símbolo da impunidade: denunciado por crimes na campanha de 1998, conseguiu adiar por duas décadas o encontro com o xadrez.

Elio Gaspari - Aras pode fabricar um novo monstro

- O Globo / Folha de S. Paulo

Centralização do Ministério Público pode preservar excessos, somando-lhe uma capacidade engavetadora

A Lava-Jato de Curitiba tantas fez que está encurralada. Tentaram satanizar a procuradora Lindora Maria Araújo e foram apanhados pelo repórter Leonardo Cavalcanti chamando Rodrigo Maia de “Rodrigo Felinto” e David Alcolumbre de “David Samuel” numa planilha oficial. Esse golpe é velho, usado por delegados e procuradores que tentam confundir juízes. Justificando-se, a equipe do doutor Martinazzo disse que os nomes completos não cabiam no espaço. Contem outra, doutores. Pode-se fazer tudo pela Lava-Jato, menos papel de bobo. O nome Rodrigo Felinto tem 15 batidas, Rodrigo Maia cabe em doze.

A turma da Lava-Jato já divulgou conversa telefônica da presidente Dilma Rousseff captada fora do horário legal. Já tentou criar uma fundação bilionária para azeitar seus objetivos. Isso, deixando-se de lado uma indústria de palestras muito bem remuneradas. Nenhuma dessas extravagâncias pode resultar na perda do cargo para seus autores. A invenção dos tais “Rodrigo Felinto” e “David Samuel”, pode.

O procurador-geral Augusto Aras não bica com as forças-tarefas em geral e com a de Curitiba em particular. Negociações com réus do Paraná e do Rio de Janeiro estão travadas por causa disso e, com a visita da procuradora Lindora Araújo, a turma da Lava-Jato recorreu ao velho expediente de atacar do uso dos meios de comunicação. Isso funcionou ao tempo do juiz Sergio Moro e virou pó quando ele assumiu o cargo de ministro. As forças-tarefas de procuradores dizem que precisam ser autônomas, mas querem ser inimputáveis.

Aras diz que precisa racionalizar o trabalho do Ministério Público. Em abril ele recebeu a minuta de um projeto que cria uma Unidade Nacional de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado, a Unac. Em poucas palavras, seria a criação de um investigador-geral da República, escolhido numa lista tríplice da corporação (põe corporação nisso). A Unac decidiria o que investigar, controlando as ações policiais e acompanhando os inquéritos.

Janio de Freitas – Uma lavagem para a Lava Jato

- Folha de S. Paulo

Novas transcrições de mensagens dão um salto temático no poço das intromissões americanas na soberania brasileira

As novas, mas não últimas, transcrições de mensagens da Lava Jato curitibana dão um salto temático no poço, tenebroso e sem fundo, das intromissões americanas na soberania brasileira.

Não foi por obra do acaso que esse capítulo a mais da amizade inconfiável se configurou no âmbito da Lava Jato, empreendimento político em área judicial e com bolsonaras consequências também nas relações externas.

As mensagens transcritas e seus aditivos dedicam-se à ação e aos agentes do FBI na América Latina, a título de investigar empresas americanas na corrupção local.

Se provada, a participação sujeita a punições, sobretudo financeiras, nos Estados Unidos. Um tratado Brasil-EUA autoriza tais investigações aqui e estende o acordo à colaboração mútua em investigações, com normas intermediadas pelo Ministério da Justiça. No mesmo gênero, há acordos sobre tráfico de drogas.

Hélio Schwartsman - A nova face do racismo

- Folha de S. Paulo

Racismo contemporâneo se materializa principalmente no chamado racismo implícito

O texto que escrevi sobre a possibilidade de o racismo ter contribuído para a queda do professor Carlos Alberto Decotelli do comando do MEC ensejou vários questionamentos de leitores, de modo que volto ao tema hoje.

O racista clássico, do tipo que xinga negros, diz que são uma raça inferior e veste um lençol na cabeça para caçá-los, é, felizmente, uma espécie em extinção —exceto, talvez, em alguns departamentos de polícia. Aliás, a rapidez com que, no Ocidente, passamos de um contexto em que a discriminação estava sacramentada nas leis de vários países para um em que é vista como falha moral intolerável representa uma grande conquista da civilização, que nem sempre é reconhecida como tal.

Não obstante, o racismo continua aí, como se pode verificar em uma miríade de estatísticas sociais e experimentos psicológicos. Uma explicação para o fenômeno é dada por Mahzarin Banaji (Harvard) e Anthony Greenwald (Universidade de Washington), autores do excelente “Blindspot” (ponto cego), que já comentei aqui.

Bruno Boghossian – Guedes na contramão

- Folha de S. Paulo

Plano para estimular contratações aumenta risco de desigualdade e de desmanche de redes de proteção

Assim que o governo anunciou a prorrogação do auxílio emergencial do coronavírus, Paulo Guedes voltou a fazer propaganda do programa Verde e Amarelo. O ministro aproveita a pressão econômica da pandemia para driblar leis trabalhistas e permitir a contratação de empregados com menos proteções.

“O Verde e Amarelo são esses 30 milhões de brasileiros que estão por aí e que só querem o direito de trabalhar sem ser impedidos pelo governo”, disse o economista, na terça (30).

No dia seguinte, entregadores de aplicativos tomaram a avenida Paulista na contramão do ministro. Na paralisação, que já estava programada, eles cobraram das empresas melhores condições de trabalho, taxas mais justas e itens de proteção.

O governo Jair Bolsonaro não entendeu o recado. A equipe econômica continua em busca de um choque liberal nas relações entre empregadores e empregados. No caso dos trabalhadores informais, as medidas sugeridas podem fazer com que eles continuem desprotegidos.

Dorrit Harazim – Desmascarados

- O Globo

A sociedade de consumo responde, sôfrega, para voltar a respirar num shopping center e se sentir viva

O índice de estupidez de quem abarrotou bares e ruas do Leblon na noite de quinta-feira merece atenção para além de um simplório filtro por classe social. Nas franjas das periferias e comunidades, bailes funk também rolam adoidado ao arrepio de qualquer quarentena. Esses bolsões de incivilidade tampouco são coisa só nossa. Nos Estados Unidos, matriz brasileira de gestão irresponsável do coronavírus, exemplos de insensatez social ostensiva pipocam emNova York e Houston, lotam Miami Beach e assustam Los Angeles. A novidade é desafiar o amanhã embarcando em “Covid parties” sem proteção, propósito ou culpa.

À primeira vista, essa sofreguidão irreprimida pode evocar “A noite dos desesperados”, filme ambientado na Grande Depressão de 1929 com Jane Fonda em papel memorável. Mas só à primeira vista. Na obra do diretor Sydney Pollack, o grupo à deriva que desce aos infernos para vencer uma maratona de dança e conquistar um prêmio em dinheiro é arrastado pela necessidade. No filme, incentivados por um promotor sem escrúpulos e oportunista, eles arriscam tudo para sobreviver, inclusive a autodestruição. Já os festeiros afoitos de hoje jogam sobretudo com a vida alheia. E de graça, sem ganhar nada. São paspalhos.

Mas há um elo em comum entre a trama ficcional e o momento coronavírus atual: a figura do promotor oportunista. Em sua versão 2020 ele é tanto o prefeito que reabre sem ter fechado quanto o governador que rouba respirador ou o presidente que achincalha o uso da máscara. Impulsionados por estreiteza de visão, aposta negacionista ou pura irresponsabilidade, esses agentes do devaneio estão levando o país à neurastenia. E a sociedade de consumo responde, sôfrega, para voltar a respirar num shopping center e se sentir viva.

Míriam Leitão - Resposta errada do governo no meio ambiente

Os primeiros movimentos de resposta do Brasil aos investidores apontam para o fracasso. Que chance tem de dar certo a estratégia de convencer que o Brasil respeita o meio ambiente com o presidente Bolsonaro afirmando que eles estão com “uma visão distorcida” dos fatos e uma carta que tem entre os signatários a dupla Ricardo Salles e Ernesto Araújo? Não há o que Salles faça que apague seus abundantes atos e palavras contra o meio ambiente neste um ano e meio. Araújo vive em órbita pelo mundo da lua capturado por teorias da conspiração. Para piorar, existe o danado do fato: o Inpe acaba de mostrar que o Brasil bateu novo recorde de queimada na Amazônia.

Do ponto de vista econômico, o que está acontecendo é uma enorme contradição. A maior recessão da história do país e o desmatamento subindo. Como pode o nível de atividade estar em queda livre, e o desmatamento e as queimadas, em alta? A resposta é: o governo Bolsonaro deu fartos incentivos à atividade ilegal. Os criminosos sabem que ficarão impunes e que, se tiverem mais sorte, verão uma Medida Provisória aprovada consolidando seu domínio sobre áreas que grilaram.

O vice-presidente Hamilton Mourão no comando do Conselho da Amazônia foi um avanço, mas o desmatamento está crescendo forte pelo segundo ano consecutivo mesmo com as ações do Exército. A entrada do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, na turma que quer demover grandes fundos de saírem do Brasil tem um ganho e dois óbices. O bom é que Roberto Campos circula fácil pelo mundo das finanças internacionais e tem boa rede de contatos. O primeiro problema é que um presidente do Banco Central não se envolve tanto com questões de governo como ele tem feito, segundo, pelo que disse até agora, ele também esposa a tese de que os outros é que estão mal informados.

Vinicius Torres Freire – ‘Vida que segue’, o otimismo do desastre

- Folha de S. Paulo

Mercado supõe que gasto e política econômica voltem ao que eram no pré-pandemia

O país estará mais pobre e o governo estará mais endividado, mas depois da calamidade do vírus o plano de política econômica não deve mudar: não se admite nem é provável que mude. É o que parece implícito nas projeções de economistas do setor privado, do “mercado”, e explícito na conversa do governo. Não deixa de ser uma espécie de otimismo, um “vida que segue”, apesar do desastre.

Na média, as estimativas econômicas parecem pressupor que o gasto extra do governo federal neste ano (“Orçamento de guerra”) será quase eliminado no ano que vem: auxílios emergenciais e de salário, adiamentos de impostos, ajuda a estados e municípios, despesas com saúde. É um talho da ordem de R$ 450 bilhões. É algo equivalente à despesa anual com salários de servidores, benefícios para idosos e deficientes (BPC), Bolsa Família e investimento.

Está previsto que a economia crescerá uns 3,5% e implícito ainda que o teto de gastos será mantido e que a receita do governo federal praticamente volta ao nível de 2019. É o que se depreende das estimativas da praça para o déficit federal, dando-se de barato que “o mercado” não prevê aumento de impostos, bidu.

Para que se respeite o teto, não será possível nenhum programa de renda básica que eleve despesas. Se sair um “Renda Brasil”, esse novo pacote teria de ser pago com cortes de gastos em outras áreas, o que demanda alterações em leis ainda neste ano.

Affonso Celso Pastore* - Propostas sem sentido

- O Estado de S.Paulo

Quando ficou claro que a pandemia produziria uma recessão profunda, não faltou quem propusesse a redução da Selic a zero e o uso de uma “operação twist”, com o Banco Central comprando títulos públicos no ramo longo e vendendo no ramo curto da curva de juros, reduzindo sua inclinação. Porém, não somente o BC vem fazendo pouco (ou nada) para reduzir a inclinação da curva de juros, como vem questionando se no Brasil o limite inferior da Selic seria tão baixo quanto nos EUA e na Europa. De onde vem esta divergência?

Ainda que não tivéssemos um termômetro saberíamos qual é a diferença de temperaturas entre o verão carioca e o inverno do Alasca, e ainda que não existissem as cotações do CDS, saberíamos que o salto de 78% para 100% da nossa relação dívida/PIB eleva o risco de insolvência do governo. Atualmente o Brasil tem um “nível de risco” mais elevado do que antes da pandemia, e ele aparece expresso nos preços dos ativos na forma de um “prêmio de risco”, que nada mais é do que o equivalente à medida da temperatura em um termômetro. No mercado de títulos de dívida soberana em Nova York, por exemplo, ele se expressa na cotações do CDS, no mercado de juros ele se manifesta na inclinação da curva de juros, e no mercado de câmbio aparece na volatilidade e na depreciação do real acima da dos demais países emergentes.

Suponhamos que o governo não faça nada para reduzir o “nível de risco”, mas peça ao BC que estimule a atividade econômica inundando a economia de liquidez com a Selic a zero. O primeiro efeito será a elevação dos preços das ações, mas isto não ocorre porque cresceram as expectativas de aumento dos lucros das empresas, que seria impossível diante da recessão, e sim porque caiu a taxa de desconto à qual o valor presente dos lucros esperados (que é o preço da ação) é calculado. Dado que os investidores não são indiferentes ao risco, que permanece elevado, para evitar perdas futuras e para não perder a oportunidade de um ganho, eles buscam um hedge através da compra de um ativo cujo preço tenha uma correlação inversa com os preços das ações, como é o caso do dólar norte americano. Se um erro do governo reduzir os preços das ações ele também tende a depreciar o real. Embora tal depreciação possa ter ocorrido simultaneamente a uma queda da taxa de juros, neste caso ela não decorre de um desestímulo ao ingresso de capitais devido ao diferencial de taxa de juros entre Brasil e EUA. É apenas a consequência de um aumento do risco que permitiu utilizar o real como hedge contra movimentos inesperados de queda dos preços das ações.

Ascânio Seleme - O líder sumiu

- O Globo, 04/07/2020 -

Quem será o líder indispensável para os difíceis anos 20?

O Brasil não precisa de heróis, embora bons exemplos num país tão mal-educado quanto o nosso sejam sempre bem-vindos. O que o país precisa é de um líder que consiga mobilizar as pessoas, apontar caminhos, propor soluções, apresentar alternativas. A nação que já vinha sacudida pela decepção com o PT, foi abalada ainda mais pelo desgoverno Bolsonaro e com a crise gerada pela pandemia que nos atingiu de modo mais duro que em outros países, exatamente pela ausência de uma liderança que inspirasse os brasileiros. Ao contrário, não preciso dizer, vimos nosso presidente defender o caos e a ignorância.

Não foram muitos os verdadeiros líderes brasileiros ao longo da História do país. Ficando apenas nos mais modernos, pode-se citar Getulio Vargas, Juscelino Kubitschek, Tancredo Neves, Fernando Henrique e Luiz Inácio Lula da Silva. Todos eles edificaram obras que transformaram o Brasil. Getulio fez a Consolidação das Leis do Trabalho, que mudou as relações entre patrões e empregados. Juscelino modernizou o Brasil, abrindo o país para o futuro. Tancredo construiu a transição democrática que pôs fim à ditadura militar. FH estabilizou a moeda e acabou com a inflação, um flagelo que atormentava os brasileiros havia décadas. E Lula mostrou que era possível governar com o Estado voltado para os mais pobres.

Deste grupo, um foi ditador e outro foi preso por corrupção. Mas nem por isso deixaram de ser líderes incontestáveis. Porque líderes não se forjam, nascem líderes ou se constroem eles mesmos ao longo da vida. No Brasil há uma lista muito maior de teleguiados e de fanfarrões, que surfaram ondas para se tornarem presidentes sem nunca terem conseguido exercer liderança e influência sobre a nação. Muitos foram alçados por terceiros e sequer conseguiram confirmar a expectativa que os brasileiros neles depositaram para negociar com o Congresso e aprovar reformas que países precisam fazer de tempos em tempos para se modernizar.

Saneamento urgente – Editorial | Folha de S. Paulo

Novo marco traz incentivos à superação do vergonhoso atraso na oferta do serviço

Há muito tempo não surge uma grande novidade tecnológica no saneamento básico. Ao longo dos séculos 19 e 20, diversas nações vieram desenvolvendo seus serviços de entrega de água potável e de coleta e tratamento de esgoto mais ou menos da mesma maneira.

A necessidade de investimentos elevados poderia ser empecilho para países pobres, mas não para os que, como o Brasil, há muito superaram os limiares da baixa renda.

A atratividade também salta aos olhos. Um mercado de 212 milhões de pessoas ainda longe da plena capacidade parece pepita de ouro num mundo em que aplicar dinheiro em fontes tradicionais significa ser punido com juros negativos.

Dos ganhos sociais, nem se fale. No mínimo um terço da queda histórica na mortalidade infantil se deve à chegada da água encanada e da coleta do esgoto. Crianças e adultos adoecem menos em razão desses serviços e por isso tornam-se mais assíduos na escola e no trabalho. Aprendem e produzem mais e acumulam mais renda e bem-estar no curso da vida.

Por que mistério, então, quase metade dos lares brasileiros, finda a segunda década do século 21, ainda não se conecta à rede de esgoto? Que sortilégios transformam cada 100 litros de esgoto produzido em apenas 46 tratados? A resposta genérica passa pelo que alguns estudiosos têm chamado de apropriação extrativista do Estado.

A escolha dos ministros do STF – Editorial | O Estado de S. Paulo

Sistema em vigor funciona bem desde que o Senado compreenda que as sabatinas não são protocolares nem devem ser feitas em clima de camaradagem

Quando o PT ganhou as eleições de 2002 e Lula assumiu a Presidência da República em 2003, partidos de oposição fizeram as contas e descobriram que ele poderia indicar três ou quatro ministros para o Supremo Tribunal Federal (STF) em seu primeiro mandato e outros tantos caso se reelegesse. Com receio dos nomes que ele poderia indicar e de eventuais mudanças nos critérios de interpretação da Constituição, muitos oposicionistas apresentaram projetos para mudar não só o modo de indicação dos ministros, como a própria estrutura da Corte.

Desde então, tramitam no Congresso dezenas de projetos e propostas de emenda constitucional (PECs). E agora, diante da possibilidade de Bolsonaro indicar indivíduos despreparados, servis e “terrivelmente evangélicos” para a vaga a ser aberta com a aposentadoria do ministro Celso de Mello, em novembro, vários políticos passaram a pedir mais rapidez na tramitação dessas PECs. O último levantamento identificou cerca de 20 iniciativas nesse sentido, sendo a mais importante uma PEC de autoria do senador Lasier Martins (Podemos-RS), apresentada em 2015, e que recebeu depois um substitutivo do senador Antonio Anastasia (PSDB-MG).

Ela altera o artigo 101 da Constituição, que define a estrutura do STF. Em matéria de indicação de ministros para a mais alta Corte, acaba com a possibilidade de o presidente da República indicar quem bem entender e o obriga a escolher um nome a partir de uma lista tríplice elaborada pelos presidentes do STF, do Superior Tribunal de Justiça, do Tribunal Superior do Trabalho, do Tribunal de Contas da União, do Tribunal Superior Militar, pelo procurador-geral da República e pelo presidente da Ordem dos Advogados do Brasil. O substitutivo também acaba com a vitaliciedade. Inspirando-se em várias cortes supremas europeias, fixa um mandato de dez anos para os ministros, sem direito à recondução, e os torna inelegíveis por cinco anos. Exige, ainda, que os integrantes da lista tríplice tenham experiência de atividade jurídica de pelo menos 15 anos.

A lei vale para todos, a depender da interpretação – Editorial | O Globo

Divisão no STF indica necessidade de emenda constitucional para tornar realista o conceito da irredutibilidade do salário

A sessão de julgamento do Supremo Tribunal Federal da quarta-feira da semana retrasada foi cercada de excepcionalidades. A começar pelo fato de retomar a apreciação de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) instaurada na Corte há 18 anos, por iniciativa de partidos políticos e associações de servidores públicos, contra dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal, então recém-aprovada para servir de lastro do controle das contas públicas, afinal conseguido depois de um longo período de crises em que houve recessão, estagnação e uma hiperinflação que chegou perto dos 3.000% em 1993.

A importância do tema em julgamento — a possibilidade de a Federação, diante de novo risco de descontrole fiscal, estabelecer cortes de jornadas dos servidores públicos, com reduções proporcionais de seus salários — se deve à necessidade de o administrador público tomar medidas para manter o equilíbrio fiscal, e não deixar que graves e crescentes déficits desemboquem em surtos inflacionários, que é a maneira selvagem com que as economias consertam esta disfunção.

Infelizmente, por 7 a 4, o relator do processo, ministro Alexandre de Moraes, foi derrotado no seu voto pela rejeição do pedido de inconstitucionalidade, sendo acompanhado por Dias Toffoli, presidente da Corte, Luís Roberto Barroso e Gilmar Mendes, votos insuficientes para rejeitar a ADI, apoiada por Rosa Weber, Edson Fachin, Ricardo Lewandowski, Marco Aurélio Mello, Luiz Fux, Celso de Mello e Cármen Lúcia, esta em parte, porque admitiu a redução de jornada.

O tamanho do equívoco cometido pela maioria do plenário do STF também é demonstrado por números, não só por argumentos jurídicos considerando uma adequada interpretação do que estabelece a Constituição sobre as contas públicas, de forma articulada com a LRF. Se não houvesse uma outra leitura consistente da Carta, não haveria quatro ministros favoráveis à manutenção dos dispositivos contestados da Lei de Responsabilidade.

Flávio Ricardo Vassoler* - 'O Idiota', de Dostoievski, explora a inadequação existencial da bondade pura

- O Estado de S. Paulo / Aliás

Romance que ganha nova edição no Brasil questiona como conciliar o perdão a um malfeitor e a justiça que deve ser imposta a ele

Chega à quinta edição o romance O Idiota (1869), do russo Dostoievski (1821-1881), que, para fugir de seus muitos credores – à época, a Rússia levava os inadimplentes ao cárcere –, escreveu a obra no exterior (em Florença). A predileção de Dostoievski por O Idiota se vinculava à criação do protagonista, o príncipe Míchkin, um homem em cujo caráter e em cujas ações o autor procurou projetar a mais rematada bondade.

Quando pensamos em tipos predominantemente maus e cínicos, a literatura (e a história humana) nos apresenta(m) um rol interminável de personagens: do elitista Brás Cubas (Memórias Póstumas de Brás Cubas), de Machado de Assis, ao inescrupuloso Paulo Honório (Vidas Secas), passando pelo niilista e pedófilo Nikolai Stavróguin (Os Demônios), do próprio Dostoievski. Mesmo quando pensamos em tipos inicialmente ingênuos e idealistas, a literatura (e a vida) se encarrega(m) de submeter o otimismo à decrepitude das ilusões perdidas, como acaba acontecendo com o jovem Cândido (Cândido ou o Otimismo), de Voltaire, e com o aspirante a escritor Lucien de Rubempré (Ilusões Perdidas), de Honoré de Balzac. Entretanto, quando pensamos em tipos sumamente bons, a galeria de personagens se torna bem mais escassa.

Mesmo com o ar rarefeito do cume da bondade, Dostoievski se propôs o desafio de imaginar uma personagem essencialmente fraterna, que, em seu caráter e em suas ações, realizasse uma síntese entre o oferecimento da outra face, pregado por Cristo, e o nobre idealismo de Dom Quixote, o cavaleiro imortalizado por Cervantes.

É assim que a alcunha de idiota para Míchkin relaciona-se não apenas aos ataques de epilepsia – doença que também acometia Dostoievski –, mas ao fato de haver uma inadequação existencial entre uma personagem que procura agir com bondade e retidão e os demais personagens espertalhões, incrédulos e malévolos, com os quais o príncipe entra em contato. A idiotia de Míchkin, então, dá o tom não para uma limitação do protagonista, mas para a vida lamentável de seus convivas, para os quais a mão estendida para a amizade e o amor só pode parecer o ludibrio sob o qual se escondem e se esgueiram rasteiras furtivas.

Música | Eliane Elias - Chega de saudade

Poesia | William Shakespeare - Ser ou não ser (Hamlet, Ato 3 Cena 1)

Ser ou não ser, eis a questão. Acaso
É mais nobre a cerviz curvar aos golpes
Da ultrajosa fortuna, ou já lutando
Extenso mar vencer de acerbos males?
Morrer, dormir, não mais. E um sono apenas,
Que as angústias extingue e à carne a herança
Da nossa dor eternamente acaba,
Sim, cabe ao homem suspirar por ele.
Morrer, dormir. Dormir? Sonhar, quem sabe!
Ai, eis a dúvida. Ao perpétuo sono,
Quando o lodo mortal despido houvermos,
Que sonhos hão de vir? Pesá-lo cumpre.
Essa a razão que os lutuosos dias
Alonga do infortúnio. Quem do tempo
Sofrer quisera ultrajes e castigos,
Injúrias da opressão, baldões do orgulho,
Do mal prezado amor choradas mágoas,
Das leis a inércia, dos mandões a afronta,
E o vão desdém que de rasteiras almas
O paciente mérito recebe,
Quem, se na ponta da despida lâmina
Lhe acenara o descanso? Quem ao peso
De uma vida de enfados e misérias
Quereria gemer, se não sentira
Terror de alguma não sabida cousa
Que aguarda o homem para lá da morte,
Esse eterno país misterioso
Donde um viajor sequer há regressado?
Este só pensamento enleia o homem;
Este nos leva a suportar as dores
Já sabidas de nós, em vez de abrirmos
Caminho aos males que o futuro esconde,
E a todos acovarda a consciência.
Assim da reflexão à luz mortiça
A viva cor da decisão desmaia;
E o firme, essencial cometimento,
Que esta idéia abalou, desvia o curso,
Perde-se, até de ação perder o nome.