O objetivo de Marx ao formular sua teoria, em 'O Capital', era apresentar as características essenciais do capitalismo, e não apenas do capitalismo inglês do século XIX
Nos 200 anos de seu nascimento, pensador ainda está vivo no debate sobre relações sociais
Cyro Andrade | Eu &Fim de Semana | Valor Econômico
SÃO PAULO - Marx pode inspirar. Ou amedrontar. Ou apenas irritar. Depende da posição ideológica de quem o observe. Mas também vai influir o grau de conhecimento que se tenha de sua obra, enorme, não apenas pelas complexidades de leitura, mas porque permanece envolta, em boa parte, na obscuridade das coisas guardadas e não publicadas. Some-se a isso sua incansável disposição para rever o que escrevia, e tem-se um importante traço definidor do Marx sem dúvida respeitável, seja qual for o olhar que lhe seja dirigido, por seu inaudito esforço para compreender o mundo que, nada despretensiosamente, pretendeu transformar: ele também se questionava.
Nos 200 anos do nascimento de Karl Marx, a serem completados neste 5 de maio, crentes e descrentes da durabilidade teórico-política da obra de Marx não se furtam, ou não escapam, a uma indagação intrigante: até que ponto poderiam ter ido suas lucubrações revisionistas? Ou, no mínimo: como compreender essa particularidade de identidade intelectual para se ter noção pelo menos aproximada do espírito norteador de seu trabalho e entender, enfim, por que ele permanece inspirador, amedrontador, irritante?
Sai século, entra século, ele continua sendo instigante. Estuda-se Marx com interminável interesse, mesmo se feita a ressalva de que na universidade, particularmente, parece haver uma certa tendência a enquadrá-lo em categorias departamentalizadas. Há quem imagine que Marx era economista, por exemplo. Outros veem nele o filósofo. Ou um bom fornecedor de referências para análises sociológicas, inclusive no campo da psicologia social. Mais adequado, recomendam vários autores, é dizer que Marx fez uma crítica da economia política, e terminou fundando uma teoria social da ordem burguesa. Não por outra razão, o título de seu trabalho maior não é, apenas, "O Capital". É "O Capital - Crítica da Economia Política", do qual concluiu a primeira redação em 1865. Anos antes, porém, em 1859, publicou "Para a Crítica da Economia Política", uma espécie de introdução ao tema.
O que ele pretendia com suas pesquisas, desde antes? Em carta de 5 de março de 1852 a Joseph Weydemeyer, Marx diz que "nenhum crédito me é devido pela descoberta da existência de classes na sociedade moderna ou a luta entre elas". E adiante: "Muito tempo antes de mim, historiadores burgueses descreveram o desenvolvimento histórico dessa luta de classes e economistas burgueses, a anatomia econômica de classes. O que fiz de novo foi provar: que a existência de classes está ligada às particulares fases históricas do desenvolvimento da produção; que a luta de classes necessariamente leva à ditadura do proletariado; que essa ditadura, em si mesma, constitui apenas a transição para a abolição de todas classes e para uma sociedade sem classes" (citado nos "Arquivos Marx/Engels").
Isso ele dizia 166 anos atrás. Mas, como afirmou um dia, em 1907, o filósofo e historiador italiano Benedetto Croce, Marx já estaria, no princípio do século passado, "definitivamente morto para a humanidade"?
Depois de Croce, os anúncios fúnebres repetiram-se sem cessar, mas, como observa Hugo da Gama Cerqueira, professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais, "o defunto teimou em levantar-se e mostrar-se absolutamente vivo e atual, uma referência incontornável para quem quer compreender o nosso tempo". É o que ocorreu recentemente, lembra Cerqueira, após a crise econômica de 2008, quando se passou a falar em um "retorno a Marx". Até mesmo a insuspeita revista "Time" reconheceu que estava ocorrendo uma "vingança de Marx" sobre seus adversários.