sábado, 22 de agosto de 2020

Sérgio C. Buarque* - A inteligência e a barbárie

- Revista Será? (PE)

Cem mil pessoas seguiram o cortejo fúnebre de Leon Trotsky na Cidade do México, onde vivia exilado, numa homenagem póstuma a um dos políticos e intelectuais mais brilhantes e incômodos do século XX. Exilado e perseguido pela implacável polícia secreta de Stalin, desde que foi expulso da União Soviética em 1929, Trotsky foi assassinado pelo stalinista Ramón Mercader que conseguira se insinuar como simpatizante, na fortaleza onde vivia o líder revolucionario.

Com um golpe de picareta de alpinismo, Mercarder atingiu diretamente o cérebro do qual germinavam ideias e análises políticas e textos literários fascinantes, força moral e política formada na condução da revolução, que ameaçavam a ditadura de Stalin. O filósofo alemão Walter Benjamin manifestou profunda emoção com a leitura de “Minha Vida”, autobiografia de Trotsky escrita no exílio, e Bertolt Brecht, mesmo tendo ligação com o stalinismo, teria dito que “Trotsky bem poderia ser o maior escritor europeu do seu tempo” (Patrick Deville em Viva!).

No exílio, Trotsky padeceu a angústia de acompanhar, impotente, a execução pela máquina de Stalin de todos os líderes e dirigentes da revolução e a eliminação de toda a sua família, especialmente seus filhos, e dos seus seguidores politicos na União Soviética (submetidos a tortura e humilhação nos manipulados Processos de Moscou) e onde mais o trotskismo germinava, como na guerra civil espanhola. Lênin tinha morrido bem antes, Trostky foi expulso e Stalin ficou livre para promover a destruição em massa de homens superiores a ele em força moral, inteligência, cultura e formação política. Mas o “profeta banido”, expressão de Isaac Deutscher no título do terceiro livro da biografia de Trostky, era reconhecido mundialmente como personagem central na revolução russa (tanto ou mais do que Lênin), mobilizando figuras importantes do socialismo em vários países, convencidos da “degeneração burocrática” do sistema soviético.

Discurso de Biden ganha elogios de rivais republicanos

Para comentaristas e estrategistas, ex-vice-presidente superou expectativas na convenção democrata

Redação | O Estado de S.Paulo

A campanha de Donald Trump tentou mostrar o ex-vice-presidente Joe Biden como uma pessoa incompetente e sem condições de se apresentar em público em razão da fama de cometer gafes e de sua criticada performance nos debates. No entanto, seu emocionado e articulado discurso que encerrou a convenção democrata foi elogiado até pelos republicanos.

O discurso marcou o primeiro momento nacional da campanha de 2020, com a conclusão das primárias democratas, e o início oficial da disputa entre Biden e Trump pela Casa Branca. “Tinha a expectativa de algo adequado, mas ele se superou”, afirmou o estrategista republicano Mike Murphy, em um podcast. “Acho que Biden teve o momento de sua vida e ele deve estar se sentindo bem com isso.”

Para os comentaristas da conservadora Fox News, Dana Perino e Chris Wallace, Biden “acertou em cheio” com um discurso “extremamente eficaz” que abriu “um rombo” nos esforços de Trump para mostrá-lo como um refém da ala esquerda de seu partido. “Foi o melhor discurso que ele já fez”, disse Bret Baier, também da Fox News. “Foi um discurso muito bom”, afirmou Karl Rove, outro conhecido estrategista republicano.

Para Gloria Borger, da CNN, “este pode ter sido o melhor discurso que Joe Biden já fez”. “Não foi um discurso de convenção, escrito para aplausos. Foi um discurso presidencial, até mesmo uma espécie de bate-papo ao pé da lareira”, afirmou. “Acho que descobrimos esta noite porque Donald Trump o temia tanto”, afirmou Joy Reid, da MSNBC.

Em sua fala, Biden prometeu tirar o país de uma “época de escuridão”. “O atual presidente envolveu a América nas trevas por muito tempo. Muita raiva. Muito medo. Muita divisão”, disse o ex-vice-presidente, de 77 anos.

O democrata criticou ainda o modo como Trump tem lidado com a pandemia de coronavírus, que já matou quase 175 mil pessoas nos EUA. Ao abordar o estado de espírito do país e mostrar solidariedade com as famílias e amigos das vítimas, Biden procurou distinguir seu estilo de liderança do de Trump, que tem sofrido criticas por não fazer referência aos mortos pela doença.

A reação de Trump e dos republicanos pode começar a partir de segunda-feira, quando começa a convenção do partido, que vai referendar o nome dele como o candidato à reeleição. Por enquanto, em todas as pesquisas, Biden vem superando o presidente e mantém uma vantagens de 8,6 pontos porcentuais, segundo a média das sondagens feita pelo site Five Thirty Eight. / NYT e EFE

Democratas apostam no desejo de americanos pela normalidade após anos turbulentos de Trump

Biden investe na imagem de sujeito decente, 'gente como a gente'

Patrícia Campos Mello | Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Em um vídeo exibido na última noite da convenção democrata, nesta quinta (20), Brayden Harrington, um menino de 13 anos, contou como o candidato à Presidência Joe Biden o ajudou a lidar com a gagueira.

“Biden me mostrou como ele sublinha seus discursos para ficar mais fácil de ler alto, e eu fiz a mesma coisa hoje”, disse o garoto, enfrentando a timidez e se esforçando para não gaguejar.

Brayden conheceu o candidato em um comício em fevereiro, e o democrata contou a ele como superou a gagueira quando era jovem. “Biden se importou comigo”, afirmou.

O episódio contrasta com a personalidade do atual presidente americano, Donald Trump. Em 2015, durante a campanha presidencial, o republicano zombou de um repórter que tinha uma deficiência física que o impedia de mover livremente os braços.

"Vocês precisam ver esse cara”, disse Trump à multidão, enquanto sacudia os braços, imitando o jornalista que sofre de uma doença congênita.

Após quatro dias de convenção, os democratas querem que o eleitor americano tenha ao menos uma certeza: Biden, o candidato do partido à Presidência, é um sujeito decente.

E esperam convencer os eleitores de que, neste momento de pandemia de coronavírus, recessão econômica e tensão racial, os Estados Unidos precisam de um líder que tenha decência e empatia.

“O atual presidente mergulhou a América na escuridão por tempo demais —muita raiva, muito medo, muita divisão”, disse Biden no discurso em que aceitou a indicação do partido, nesta quinta.

“Eu dou a minha palavra, aqui e agora: se vocês confiarem a mim a Presidência, eu vou tirar o melhor de nós, não o pior. Vou ser um aliado da luz, não da escuridão.”

Com apelos a moderados, republicanos que rejeitam Trump, jovens e eleitores de esquerda que resistiam ao veterano democrata, a campanha de Biden tenta passar a mensagem de que, neste momento, ele representa a normalidade, após quatro anos de intensa polarização sob um presidente movido a conflitos.

Merval Pereira - Apoio incipiente

- O Globo

O presidente Bolsonaro criou um monstro que pode engoli-lo, o Congresso. Revitalizado no início do governo, quando o presidente ainda tentava governar sem os partidos, imaginando que o poder do Executivo era insuperável, o Congresso, com especial atuação da Câmara presidida por Rodrigo Maia, assumiu a direção dos trabalhos de aprovação das reformas.

Chamou a si a tarefa de reformar a Previdência Social, mesmo atrapalhada pela ambiguidade de Bolsonaro, que até o último minuto incluiu categorias que lhe são caras nas exceções da nova legislação.

Até fazer o acordo com o Centrão, renegando tudo o que dissera na campanha eleitoral e nos meses iniciais de seu governo, Bolsonaro recebeu dos parlamentares demonstrações cabais de que sem eles não governaria.

A recente votação do veto ao aumento de servidores públicos enquanto perdurar a pandemia da Covid-19 demonstra bem como a relação do presidente com uma base parlamentar ainda incipiente pode trazer novos problemas para o governo.

Teve que contar com o presidente da Câmara para organizar sua base para derrotar a decisão do Senado, que derrubara o veto do presidente. Mas criou diversos atritos com os senadores, a começar com o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, que não quis presidir a reunião do Congresso porque já imaginava que o governo poderia ser derrotado e não queria se indispor com o governo, com cujo apoio conta para poder se reeleger.

Míriam Leitão - Festival de sandices que exaure o Brasil

- O Globo

Este governo é uma fábrica de ideias péssimas. Algumas delas parecem, no primeiro momento, mentira. Taxar desempregado para financiar um programa de emprego e ainda batizá-lo de verde e amarelo. Adiar de 65 para 70 anos a idade na qual o idoso da extrema-pobreza terá direito a receber integralmente o Benefício de Prestação Continuada. Pegar dinheiro do Bolsa Família para financiar propaganda do Planalto. Todas essas ideias já foram derrotadas, felizmente. Mas o que elas têm em comum? Uma insensibilidade social que chega a ser caricata.

A nova péssima ideia, que no primeiro momento pareceu fake news, é a de adiar o Censo para 2022 e usar os recursos para reforçar o orçamento do Ministério da Defesa. O país simplesmente não pode mais atrasar o registro do seu retrato demográfico, de todas as múltiplas informações que só se consegue com o Censo. Ele fica mais urgente porque já foi adiado por um ano, por causa da pandemia, e porque em 2015 não foi feita a contagem da população.

O vice-presidente Hamilton Mourão admitiu que isso está em análise. O IBGE nada tem a dizer oficialmente sobre o assunto. O temor cresce porque, apesar do excelente quadro técnico do IBGE, a atual direção do órgão sofre de excessiva submissão ao Ministério da Economia, como ficou demonstrado no episódio dos cortes no orçamento do Censo. Mourão argumentou que os projetos do Ministério da Defesa estão atrasados. Se a construção de uma fragata for adiada o país não vai naufragar. Mas sem dados para orientar as políticas públicas ficará à deriva.

Julianna Sofia - A terceira torre

- Folha de S. Paulo

Aumento para servidores na pandemia seria ato covarde

Na fatídica reunião de 22 de abril, Paulo Guedes (Economia) elencou a Jair Bolsonaro e seu gabinete ministerial as torres do inimigo que o governo tinha por objetivo derrubar. A primeira era o que chamou de excesso de gastos na Previdência. Jaz tombada, na avaliação do ministro. A segunda: os juros altos —missão, por ora, cumprida.

“Todo mundo tá achando que tão distraído, abraçaram a gente, enrolaram com a gente. Nós já botamos a granada no bolso do inimigo. Dois anos sem aumento de salário. Era a terceira torre que pedimos pra derrubar. Vamos derrubar agora. Não tem jeito de fazer um impeachment se a gente tiver com as contas arrumadas.”

Guedes referia-se às despesas com o funcionalismo e ao congelamento de salários dos servidores, dispositivo enxertado no socorro a estados e municípios em crise. Vangloriava-se por barrar aumentos até 2021, camuflando a inépcia em entregar a esperada reforma do Estado, apesar de suas festejadas credenciais econômicas.

Na articulação pelo congelamento, o ministro levou uma rasteira do chefe, que avalizou uma lista de exceções à regra antiaumento e depois viu-se obrigado a vetar tal lista.

Alvaro Costa e Silva - Se é militar, é bom

- Folha de S. Paulo

Namorando Bolsonaro, Crivella quer ex-PM na campanha de reeleição contra Eduardo Paes

As eleições no Rio prometem ser um teste de força para Bolsonaro. Há quase dois anos, no segundo turno para presidente, ele obteve a maioria dos votos em todos os bairros, com exceção de Laranjeiras. Hoje está colado em Marcelo Crivella (ou este colou nele), que, engajado no projeto de poder da Igreja Universal, tenta uma reeleição complicada.

No boca a boca, sua fama é a de “pior prefeito da história do Rio”. Um governo que chegou a ter, em dezembro de 2019, 72% de rejeição, segundo o Datafolha, e que, durante a pandemia, fez mais teatro do que combateu o novo coronavírus. Resta saber se a população aprovou a encenação —o município passou de 9.000 mortos, com alta nos últimos dias no número de casos.

Apesar de ter afirmado que não pretendia apoiar candidatos na disputa municipal, Bolsonaro não esconde o cacho com Crivella. Na semana passada, como se não tivesse nada para fazer, o presidente esteve no bairro do Rocha para inaugurar uma escola cívico-militar ao lado do prefeito. Parêntesis para a vida real, sempre distante dos atos de campanha: para o Orçamento de 2021, o governo federal prevê um corte de 13% na área da educação.

Ricardo Noblat - Desabafo da mulher de Queiroz indica que o casal viveu cativo

- Blog do Noblat | Veja

Hóspedes forçados do advogado dos Bolsonaro

Os áudios com o desabafo de Márcia de Aguiar, mulher de Fabrício Queiroz, divulgados pela VEJA, deixam claro que ela e o marido sentiam-se como prisioneiros de Frederick Wassef, advogado de Flávio Bolsonaro e do seu pai, o presidente Jair Bolsonaro. Uma história bem diferente da contada pelo advogado quando a polícia prendeu Queiroz em sua casa no município paulista de Atibaia.

Na versão de Wassef, ele se comoveu com a situação de Queiroz a quem nunca vira antes, procurou-o sem que ninguém o orientasse a fazê-lo e ofereceu abrigo para ele, sua mulher e parentes. Só por “razões humanitárias”, como disse. Queiroz tornara-se um dos homens mais procurados do país pela imprensa, e mais tarde, pelo Ministério Público Federal do Rio que queria interrogá-lo.

Por que Queiroz e a mulher aceitariam a oferta de abrigo feita por um desconhecido? Por que passariam a confiar em um homem que emergiu assim do nada, sem que ninguém o recomendasse? Não faria o menor sentido. Elementar: Wassef deve ter sido bancado por alguém com bastante influência sobre o casal Queiroz. E não é tão difícil imaginar quem foi direta ou indiretamente.

Os áudios de Márcia datam de novembro do ano passado quando ela e o marido eram hóspedes de Wassef, mantidos numa espécie de cativeiro e contrariados por serem impedidos de sair de lá. Em conversas com a advogada Ana Flávia Rigamonti, contratada por Wassef para vigiá-los junto com um empregado da casa, Márcia traiu toda a sua insatisfação com a vida que levava.

Teto de gastos, a âncora da estagnação brasileira e da crise social - Vários autores (nomes ao final do texto)

- Folha de S. Paulo

Profissionais que trabalham com economia assinam manifesto pela extinção da Emenda Constitucional nº95

A grande recessão brasileira iniciada no primeiro trimestre de 2015 deu ensejo à construção de uma narrativa equivocada a respeito dos problemas da economia brasileira, focada quase que exclusivamente no desequilíbrio fiscal do setor público. Segundo ela, desde o início da década de 1990, o Brasil teria um desequilíbrio fiscal estrutural, caracterizado pelo crescimento excessivo dos gastos primários do setor público a um ritmo superior ao do PIB (Produto Interno Bruto).

Esse crescimento excessivo dos gastos públicos teria ensejado um aumento contínuo da carga tributária para a manutenção, a partir de 1999, de um superávit primário adequado para garantir a sustentabilidade da dívida pública no longo prazo. Ainda segundo essa narrativa, o crescimento contínuo da despesa primária e da carga tributária seria insustentável no longo prazo, de maneira que, em algum momento, um ajuste fiscal estrutural seria necessário para interromper uma suposta “morte súbita” da economia.

Ao longo dos anos de 2015 e 2016 foi sendo construído um consenso entre os economistas do mercado financeiro, a grande mídia e a maioria dos membros do Congresso Nacional a respeito da necessidade de introdução de um teto de gastos na Constituição Federal.

Não ficaram de fora desse consenso representantes diretos e indiretos dos setores produtivos que sustentavam serem também as despesas primárias de cunho social as responsáveis pela inibição das ações dos governos no apoio e fomento dos investimentos nos projetos produtivos da economia. Esse mecanismo de controle fiscal, introduzido pela Emenda Constitucional nº95, prevê o congelamento do gasto primário real da União, por um período de 20 anos, a partir de sua promulgação em 2016.

A ideia subjacente ao teto de gastos consiste em realizar um ajuste fiscal duradouro por meio da redução da despesa primária como proporção do PIB, recuperando o superávit primário estrutural do setor público e reduzindo o seu endividamento, o qual havia aumentado quase 20 p.p do PIB no período 2014-2016.

Adriana Fernandes - A caneta Bic de cada um

- O Estado de S.Paulo

Bolsonaro parece estar caindo na tentação de que sua caneta pode tudo. Não pode.

O presidente Jair Bolsonaro costuma dizer que assina os documentos da Presidência com uma caneta Bic. Foi assim no termo da sua posse no cargo em janeiro de 2010 e segue nos dias atuais.

A pandemia da covid-19 encheu de tinta a caneta presidencial com bilhões de reais para gastos. São valores tão altos que muito provavelmente Bolsonaro não teria condições de assinar até o final de um eventual segundo mandato, caso consiga a sua reeleição para qual já está trabalhado desde agora.

Passados 20 meses de governo e cada vez mais confortável com a sua Bic, o presidente parece estar caindo na tentação que acomete muitas autoridades que desembarcam em Brasil. A de que a sua caneta pode tudo.

Não pode.

Quando essa visão chega à esfera orçamentária e o bom senso vai embora, o perigo ronda e acende os sinais de alerta da burocracia estatal.

O exemplo mais recente tem sido a discussão enviesada que tomou conta do Orçamento de 2021 na Junta de Execução Orçamentária, que define as diretrizes para a destinação e depois execução das despesas aprovadas pela lei orçamentária.

João Gabriel de Lima - Um mal sem vacina, sem defesa – e que custa caro

- O Estado de S.Paulo

O racismo não tem vacina, é indefensável – e, provou-se agora, danoso à economia

“Não existe vacina contra o racismo.” A frase marcou o discurso da senadora Kamala Harris, candidata a vice-presidente dos Estados Unidos – e foi o ponto alto da convenção do Partido Democrata.

Indianos, vietnamitas, mexicanos. Etíopes, chineses, árabes. “Provavelmente, todos americanos” – comentou um amigo ao observar os passantes, depois do almoço numa cafeteria judaico-libanesa em Palo Alto, na Califórnia, no ano passado. A cafeteria, Oren’s Hummus, fica a um Uber de distância da universidade Berkeley, onde os pais de Kamala Harris – ela indiana, ele jamaicano – se conheceram. E a uma caminhada de dez minutos da universidade Stanford, onde Donald, o pai da senadora, deu aula.

As cinco empresas de tecnologia mais valiosas do mundo estão na costa oeste dos Estados Unidos. Três na Califórnia: Apple, Google e Facebook. Não é por acaso. A região onde Kamala Harris nasceu tem uma cultura propícia à inovação. Universidades fervilhantes. Vida cultural intensa. Acesso ao capital de risco. Competição saudável. E – o mais importante – gente do mundo inteiro, de todos os gêneros e etnias. “O racismo é ruim para a economia. As empresas prosperam quando contratam os trabalhadores mais talentosos e produtivos, sem nenhum tipo de discriminação”, diz o professor Rodrigo Soares, personagem do minipodcast da semana.

Demétrio Magnoli* - O lado bom do cancelamento

- Folha de S, Paulo

Separando as redes, deflagra-se uma experiência social e intelectual

Na Ilustríssima, Rosane Borges cancelou pela milésima vez Lilia Schwarcz, num artigo caudaloso, balofo, que classifica o texto da cancelada como “ruim” mas jamais consegue preencher o qualificativo com um mísero argumento.

O texto é ruim porque Borges diz que é, do alto do seu pódio autoconstruído do “lugar de fala”. Wilson Gomes, na mesma Ilustríssima (16/8), explicou o mecanismo inteiro. Assim, adiciono apenas uma proposta dirigida às plataformas virtuais: dividam as redes em dois setores, separados pela fronteira da prática do cancelamento.

A dinâmica do cancelamento, destinada a produzir uma reserva de mercado, segue as lógicas sectárias típicas das cisões e expurgos dos partidos marxistas. Borges mirou a já canceladérrima Lilia para cancelá-la “melhor”, assegurando um lugar na dianteira da fila dos arautos da Verdade Identitária. Os canceladores, explicou Gomes, só cancelam eficientemente camaradas canceladores —ou seja, aqueles que comungam a mesma religião e, como Lilia, prestam-se ao papel de beijar os pés dos seus algozes.

Mas o “lugar de fala” não perdoa: é preciso pedalar sempre, como fazem os ciclistas. A prática tem que ser reiterada até o infinito, por meio de sucessivos cancelamentos voltados para eliminar concorrentes num mercado altamente competitivo. Como a seita de canceladores não controla um aparato estatal totalitário, a mera humilhação em rede substitui, teatralmente, os campos de trabalho forçado, as torturas e os fuzilamentos.

Marco Aurélio Nogueira* - Pandemia – o antes, o durante e o depois

- O Estado de S.Paulo

O conflito será entre a vida reclusa e a exposição ao risco: segurança ou liberdade

Aos poucos, sem muito critério, as coisas estão voltando ao que era vivido como normalidade. Embora haja menos agitação, as pessoas passaram a circular com intensidade. Há um cansaço solto no ar.

São superficiais as expectativas de que entraremos num “novo normal”, expressão desprovida de significado claro. Não é de repente que um modo de vida se altera. A rigor, não há um antes e um depois. A vida é continuidade, processo permanente de acúmulo e adaptação. Impossível ir de um padrão a outro só pela força da vontade. A pandemia, no entanto, já deixou suas pegadas e estamos sendo impelidos a adotar novas práticas e ideias. O convite é para que incorporemos condutas sustentáveis: menos agressivas com a natureza, a cultura, a sociedade, mais generosas, humildes e voltadas para o bem-estar comum.

Precisamos aumentar nossa capacidade de pensar em termos de complexidade, como gosta de dizer Edgar Morin. Ver o local e o global, o particular e o universal, a cultura e a natureza, partes de um único todo.

O abandono da quarentena se dá sem que a covid-19 tenha arrefecido. Na maioria dos Estados a doença se estabilizou, mas a média nacional de óbitos segue em patamar elevado. Hoje são 4 milhões de infectados, 115 mil mortes, números que continuam a crescer. É uma desgraça, para a qual o governo federal contribuiu e diante da qual a população não soube e não teve como reagir.

A briga pela quarentena foi permanente. Fiquem em casa, evitem aglomerações, pediram médicos, gestores, profissionais da saúde. O que houve de distanciamento social ajudou a reduzir o impacto do vírus, especialmente nas grandes cidades. A vida digital avançou, o teletrabalho mostrou ser factível e tão produtivo quanto o presencial. Perdeu-se o receio de comprar à distância. Mas ninguém se conformou em deixar de ver filhos, netos, amigos. Têm sido meses angustiantes.

Há uma dura estrada pela frente. O País não encontrou um eixo para combater o vírus e retomar a “normalidade”. Não sabe como voltar a crescer, reativar a economia, reduzir o desemprego e a desigualdade. Os sistemas nacionais – educação, saúde, infraestrutura, cultura, saneamento, ciência e tecnologia – estão sem coordenação e tenderão a ficar também sem recursos, pessoas e verbas, risco que aumenta quando se vê o governo brasileiro falar em diminuir o orçamento da Educação e da Saúde em benefício da Defesa.

Cristovam Buarque* - Falta Nabuco

- O Globo

Educação no Brasil continua entre as piores no mundo

No século XIX, adotamos políticas em favor dos escravos — fim do tráfico, ventre livre, liberdade a sexagenários — sem defesa da Abolição. A maldade no tratamento aos escravos ficou mitigada, mas a barbaridade do regime continuou, amarrando a economia e comprometendo a decência. Em 1888, os abolicionistas venceram a luta pelo fim do sistema escravocrata, mas até hoje mantemos uma trincheira da escravidão: a reserva da educação de qualidade para poucos.

Desde 1980, diversas medidas beneficiam a educação — Emenda Calmon, merenda, livros didáticos, Fundef, Fundeb, PNE-I e II, BNCC, piso salarial — mas ela continua entre as piores e mais desiguais no mundo, emperrando a eficiência da economia e dificultando a justiça social.

Quando imaginamos a tragédia que ocorreria se o Fundeb fosse extinto, em 31/12 próximo, sua prorrogação deve ser comemorada. Mas, ao lembrar que já está em vigor há dez anos, imaginamos que, apesar de alguma melhora, a educação ainda não dará o salto de que precisamos. Devemos parabenizar os que não deixaram o Fundeb acabar e até conseguiram ligeiro aumento de recursos. Parabenizá-los como a Rio Branco, pelo ventre livre; Eusébio de Queiroz, pela proibição do tráfico, Saraiva e Cotegipe, pela Lei dos Sexagenários. Mas nenhum deles foi um Nabuco, e o Fundeb está longe de ser nossa “Lei Áurea do século XXI”: educação entre as melhores do mundo e com qualidade da escola igual para todos.

Marcus Pestana* - Irresponsabilidade e fakenews também têm limites

Volto hoje ao tema do confronto entre liberdade de manifestação e controle social sobre abusos e crimes cometidos nas redes sociais. Confesso que escrevo com uma ponta de revolta e indignação. Por um lado, porque uma fakenews fez a mim e muitas pessoas sofrerem com a antecipação da morte de um grande amigo. Por outro lado, chegamos ao limite da atrocidade, desrespeito e crueldade no caso da criança grávida de 10 anos, que desde os seis é vítima de abuso sexual, exposta publicamente pela suposta líder protofascista Sara Winter. Felizmente, a Justiça, o Ministério Público e o próprio YouTube já tomaram providências para punir exemplarmente os algozes de uma indefesa criança.

No dia 7 de agosto, fiz entrevista no perfil do Instagram @amatutina, sobre os “Engenheiros do Caos” do suíço-italiano Giuliano da Empoli. Há uma vasta literatura recente sobre a crise da democracia. Mas o livro de Empoli desnuda como as plataformas digitais foram manipuladas ilegitimamente no nascimento do movimento italiano “5 Estrelas”, no plebiscito do Brexit, na campanha de Trump e como isto chegou ao Brasil pelas mãos do estrategista-chefe da Casa Branca no início da administração de Donald Trump, Steve Bannon.

A crise da democracia tem como pano de fundo as mudanças da economia capitalista que resultaram numa sociedade mais complexa e fragmentada, os sucessivos escândalos de corrupção mundo afora que desmoralizaram as elites dirigentes tradicionais e o surgimento de novos movimentos fora da órbita do sistema como o ambientalista, o feminista, o LGBT, o antirracista, o evangélico, etc. E o advento das redes sociais que jogaram lenha nesta fogueira permitindo a individualização da participação política e social.

Paul Krugman - As ações estão subindo. Assim como a miséria

- The New York Times / O Estado de S. Paulo

A economia real, ao contrário dos mercados financeiros, ainda está em péssimas condições

Na terça-feira, o índice de ações S&P 500 registrou uma alta recorde. No dia seguinte, a Apple se tornou a primeira empresa americana da história a ser avaliada em mais de US $ 2 trilhões. Donald Trump está, claro, tentando nos convencer de que o desempenho do mercado de ações comprova que a economia se recuperou do coronavírus. Uma pena para os 173 mil americanos que morreram, mas, como ele diz, “essas coisas acontecem”.

Mas a economia provavelmente não está parecendo assim tão bem aos olhos dos milhões de trabalhadores que ainda não conseguiram seus empregos de volta e que acabaram de ver seu auxílio-desemprego cortado. O benefício suplementar de U$ 600 por semana promulgado em março expirou, e a substituição que Trump propôs é, em essência, uma piada de mau gosto.

Mesmo antes do corte da ajuda, a quantidade de pais de família relatando dificuldades para dar de comer aos filhos estava crescendo rapidamente. Esse número com certeza aumentará nas próximas semanas. E também estamos prestes a ver uma enorme onda de despejos, porque as famílias não estão mais recebendo o dinheiro de que precisam para pagar o aluguel e porque a proibição temporária aos despejos, assim como o auxílio suplementar ao desemprego, acabou de expirar.

Mas como pode haver essa desconexão entre a subida das ações e o crescimento da miséria? Os caras de Wall Street, que adoram letras e siglas, estão falando de uma “recuperação em forma de K”: valorização das ações e aumento da riqueza individual no topo da pirâmide, queda da renda e forte sofrimento na base. Mas isto é uma descrição, não uma explicação. O que está acontecendo de fato?

A promessa de Joe Biden para o planeta Terra – Editorial | O Globo

Favorito nas urnas em novembro, o candidato democrata pretende ser o oposto de Trump em tudo

Em pouco mais de dois meses, quando os americanos forem às urnas, o mundo poderá ser outro. É essa a promessa de Joe Biden, sagrado candidato pelo Partido Democrata à Presidência dos Estados Unidos. Seu recado ao eleitorado na convenção partidária foi cristalino: “Se vocês me confiarem a presidência, tirarei o melhor de nós, não o pior. Serei um aliado da luz, não das trevas”. No plano das palavras e das ideias, ele não poderia ter sido mais eloquente. No plano da realidade, para desfazer o retrocesso da gestão Donald Trump, Biden precisa primeiro vencer — e isso não está garantido. Mas é favorito, sobretudo porque reuniu uma coalizão eclética em torno de um objetivo comum: tirar Trump da Casa Branca.

Nas primárias, Biden chegou a ser dado como derrotado, mas, depois de demonstrar força com o eleitorado negro na Carolina do Sul, ressurgiu como candidato de consenso. Obteve apoio de todas as correntes no partido — do socialista Bernie Sanders ao capitalista Michael Bloomberg. Na convenção, o sentimento anti-Trump trouxe para baixo de sua tenda uma legião de republicanos insatisfeitos. Tal sentimento só cresceu com a pandemia e o movimento antirracista. Para todos aqueles que se reuniram em torno dele, Biden promete, na essência, ser o oposto de Trump em tudo.

Ou quase. Difícil acreditar que, num eventual governo Biden, diminuam as tensões com a China na disputa pela tecnologia 5G. Mesmo assim, é concreta a perspectiva de distensão na guerra comercial (notícia que pode decepcionar o agronegócio brasileiro). Mais que isso, Biden traria ímpeto renovado à aliança atlântica, entre Estados Unidos e União Europeia, em detrimento da aproximação de Trump com autocratas da estirpe do russo Vladimir Putin. O impacto disso na geopolítica internacional seria gigantesco.

Jair Rousseff – Editorial | Folha de S. Paulo

Quebra do teto seria contratar crise futura em que pobres e presidente perderiam

Jair Bolsonaro decerto não é o primeiro presidente a flertar com a elevação sem limites do gasto público por acreditar que, mais adiante, a gastança possa pavimentar um caminho seguro à reeleição.

Essa, de fato, tem sido a praxe nacional desde o restabelecimento da democracia, estimulada pelas normas constitucionais que fixam despesas obrigatórias e explicitada desde que o controle da inflação deu clareza ao Orçamento.

Bolsonaro, no entanto, tem o azar e a sorte de suceder à petista Dilma Rousseff, que levou a fórmula aos limites da capacidade do Tesouro e da lei —o que resultou na maior crise econômica em gerações e lhe custou o segundo mandato.

Azar por ter herdado um governo deficitário e excessivamente endividado, com poucas opções de políticas públicas à disposição; sorte por contar com um debate mais amadurecido em torno do controle fiscal e um mecanismo de ajuste —o teto de gastos inscrito na Constituição— já em vigor.

O fracasso da última administração petista deveria bastar para que ensaios de programas redentores de obras públicas e de assistência social, sempre frequentes nas especulações brasilienses, fossem deixados de lado. Infelizmente, é fantasia um Tesouro que possa financiar um déficit sem limites e permanentemente crescente.

A gênese de um absurdo – Editorial | O Estado de S. Paulo

Quando o presidente da República manda mensagens dúbias ao Congresso, o resultado é quase sempre confusão

Câmara manteve o veto do presidente Jair Bolsonaro ao reajuste salarial para diversas categorias do funcionalismo, revertendo derrota sofrida pelo governo no dia anterior, no Senado. Bolsonaro havia pintado a questão com tintas dramáticas: “O Senado derrubou um veto que vai dar prejuízo de R$ 120 bilhões para o Brasil. Eu não posso governar um país se esse veto não for mantido na Câmara. É impossível governar o Brasil, impossível”. O ministro da Economia, Paulo Guedes, declarou que o Senado havia dado um “péssimo sinal” e que a decisão constituía um “crime”.

De fato, essa licença para reajustar salários de servidores, que já seria questionável mesmo se não houvesse a crise da pandemia de covid-19, tornou-se quase um insulto aos milhões de brasileiros que perderam renda e dependem de amparo estatal para comer. Felizmente, portanto, esse absurdo foi abortado no Congresso antes de vir à luz, mas é preciso deixar claro que sua gestação foi fruto da infeliz combinação entre a subserviência natural do Legislativo às corporações do funcionalismo e a concepção estreita de Bolsonaro sobre a política e sobre seu papel como presidente.

Em maio, o Congresso aprovou um plano de socorro federal a Estados e municípios para o enfrentamento da pandemia - e incluiu nesse pacote a possibilidade de conceder reajuste salarial para servidores públicos que estivessem atuando de alguma maneira no combate à doença. A questão, que deveria ser óbvia, é que a pandemia passa, mas o aumento salarial fica. Ou seja, sob o nobre argumento de que era preciso reconhecer o esforço desses profissionais durante a crise, escondia-se o antigo hábito de cevar a folha de pagamento de Estados e municípios, com consequências negativas mais duradouras que as da pandemia.

Na ocasião, o Ministério da Economia havia exigido que o pacote de ajuda congelasse o reajuste de todo o funcionalismo até 2021, mas os parlamentares - com a concordância de líderes governistas - articularam a inclusão de exceções a esse congelamento. O ministro da Economia, Paulo Guedes, teve então que convencer o presidente Bolsonaro a vetar a possibilidade de reajuste.

Música | Gilberto Gil - Expresso 2222 (Concerto de Cordas & Máquinas de Ritmo)

Poesia | Carlos Drummond de Andrade - Mundo grande