Viu-se no Brasil, durante o março tormentoso da chegada do Covid-19, um ensaio de reversão do ambiente político maniqueísta e predatório que deprime o país há seis anos. Vimos chegar, em mensagens diariamente dirigidas ao grande público, um pensamento orientador, combinando as ciências e técnicas da saúde e da gestão pública com um discurso de solidariedade social, as duas coisas bem sintonizadas com a delicadeza própria do método prudencial da política. Uma escolha pelo caminho da persuasão, que não excluía clareza na diretriz, nem firmeza na ação. O ministro da Saúde vinha sendo um dos protagonistas, certamente o mais visível, dessa estratégia promissora e promotora da segurança possível, em hora de tempestade.
Essa linha de conduta implicava em todo o poder aos médicos, antessala de uma ditadura sanitária? Provocava paranoia ou histeria? Longe disso, estava produzindo sinergia entre ciência e política, perseguindo e obtendo, gradativamente, a complexa cooperação entre os entes federativos. Esse caminho, além de dar rumo seguro ao combate à epidemia, foi levando a uma consistente legitimação do SUS como patrimônio federal de interesse público. Não é de pouco significado um ministro oriundo da direita passar a usar como uniforme, diante das câmeras, um colete do SUS. Esse simbolismo forte poderia ser encarado com grandeza ou com mesquinhez política, por quem defende o SUS por convicção. A hora cobrava de uma elite política soluções não triviais para uma situação nada trivial, como a sabotagem de um ministro bem situado, pelo próprio presidente que o nomeou. Fosse qual fosse a solução do problema Bolsonaro, ela precisaria ter como premissa, publicamente assumida por todas as lideranças responsáveis, evitar descontinuidade no Ministério da Saúde, ao qual cabia o protagonismo, por missão institucional sustentada por uma visível capacidade técnica e política do seu titular.
O “campo dos governadores”, se adota essa premissa, não lhe tem dado a atenção requerida pela gravidade da hora. Articulou-se mais ou menos em bloco, com protagonismo do governador de São Paulo. Parte relevante da mídia apoiou e instalou-se nova polarização. Agora não mais Bolsonaro x PT e sim Bolsonaro x "governadores". Esse coletivo de mandatários estaduais é uma ficção política e administrativa. Um pretenso colegiado sem lastro institucional, que tende a ser refém de vontades políticas estaduais, a baterem cabeça. Se se impuser uma descentralização forte de decisões e recursos, uma ação coordenada pode ficar inviável. Colocar recursos para livre uso nas mãos dos governadores é mobiliar a antessala de um salve-se quem puder, na hora mais grave da pressão a vir sobre os serviços de saúde. Quando a ficha cair e sentir-se a necessidade do MS, pode já ser tarde. Em jogo confederado, o empurra-empurra das culpas, que há muito começou, tende a se disseminar.
Pode-se contra argumentar, com razão, pelo realismo político, tanto no diagnóstico da situação, quanto na prescrição do remédio. A conduta irresponsável do presidente criou um vácuo que os governadores, pressionados por suas próprias responsabilidades, precisavam preencher. Deve-se louvá-los por isso, não criticar. O que aqui se discute não é a decisão política de fazer contraponto à negligência presidencial. Discutível é se foi levado suficientemente em conta que o protagonismo político do MS no processo precisava ser sustentado por eles, como condição para o próprio sucesso desse contraponto. Um caminho mais seguro do que aquele que foi afinal adotado, ou admitido, pelo qual o ministro foi mantido no cargo até aqui, mas enquadrado pelos militares palacianos numa saia justa que não impede o presidente de prosseguir fomentando o seu desgaste. Poderia ter sido diferente? Talvez não, mas não há indícios de que outro caminho foi tentado.
O clima de polarização (e ficou evidente que não só Bolsonaro aposta nele) asfixia, como sempre, qualquer atitude política moderada, como é a de Mandetta. Abre porta a que a lógica da guerra se torne autônoma em relação à da persuasão. Com o tempo ela tende a se tornar superior, como perigosamente se insinua com os primeiros acenos a imposição vertical de um isolamento horizontal. Uma coisa é adotar essa imposição no Japão da disciplina e na China da ditadura. Outra coisa, em democracias fortemente enraizadas numa cultura de liberdades civis, como na Europa Ocidental e nos EUA. Uma terceira coisa é que se pense e possa fazer isso numa cidade-estado, como Cingapura. Uma quarta e muito diferente coisa é adotá-la no Brasil, um país imenso, onde uma ampla democracia política federativa vigora em sociedade plural e crescentemente liberal nos valores, em cuja psicologia social a disciplina individual é, no entanto, traço menos marcante que a solidariedade religiosa ou familiar. Sociedade conservadoramente gregária, assentada, ademais, em abissal desigualdade social e numa ainda frágil cultura de direitos, da qual é sintoma explícito a truculência tradicional e ainda relativamente impune de suas várias polícias e milícias, quando entram em contato com cidadãos socialmente mais vulneráveis. E não é de outra coisa que se trata quando se precisa manter em casa a população aglomerada em realidades urbanas onde se expõem as dores dessa modernidade complexa.