quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Merval Pereira - Visão obtusa

- O Globo

O preocupante é que o que o deputado federal Eduardo Bolsonaro fez, colocando no twitter uma acusação à China de que usa a tecnologia 5G para fazer espionagem, corresponde ao que pensam seu pai, o presidente Bolsonaro, e o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo.

Se fosse um deputado qualquer, como sempre foi, Eduardo ou seus irmãos poderiam fazer as bobagens que sempre fizeram, e ninguém ligaria, como nunca ninguém ligou antes de eles sairem do anonimato para o proscênio da vida política nacional pelos azares da sorte.

Mas houve repercussão porque, além de filho do presidente, Eduardo Bolsonaro preside a Comissão de Relações Exteriores da Câmara. Então, o que ele diz vale mais do que qualquer deputado, vale como sendo o pensamento do presidente da República. Essa é a gravidade da atitude irresponsável que tomou.

Tentou remediar, apagou a mensagem, mas não dava mais para evitar a crise. É uma posição ideológica burra, e os membros da Comissão de Relações Exteriores já começam a se movimentar para retirá-lo da presidência. Ou pelo menos deixar claro que suas postagens pessoais no Twitter não representam o pensamento da maioria da Comissão. 

William Waack - Falando sozinho

- O Estado de S. Paulo

Os principais freios à política externa de Bolsonaro vêm da iniciativa privada

É preciso um pouco de paciência, mas a força dos interesses privados brasileiros está conseguindo impor severos limites aos rompantes de política externa do governo Jair Bolsonaro. A “linha” externa foi basicamente subordinar-se a Donald Trump, um erro grotesco do ponto de vista “técnico” de diplomacia e um exemplo já clássico de como a cegueira ideológica conduz a decisões que são pura estupidez.

O agronegócio foi o primeiro a gritar contra a gratuita hostilização de parceiros comerciais no Oriente Médio e na Ásia, seguido de perto por setores modernos industriais e do mundo financeiro em relação a políticas ambientais. Os mais novos grupos a entrar no “vamos dar uma segurada” são de setores tecnológicos ligados a telecomunicações e infraestrutura, preocupados com o dano que a hostilidade à China possa trazer a investimentos no 5G.

Especialmente no agro “tecnológico” – aquele que colocou o Brasil como uma superpotência na produção de grãos e proteínas – a postura externa do governo Bolsonaro é vista com consternação e abertamente criticada. O racha já chegou à relação entre entidades que representam os variados grupos desse setor. Aqueles apelidados de “ruralistas”, e identificados com a soja e a pecuária “primitiva”, continuam apegados à noção de que, sendo o Brasil um campeão na produção de alimentos, não importa o que aconteça ou o que se diga, o mundo continuará comprando aqui.

Luiz Carlos Azedo - Argentina, China e EUA

- Correio Braziliense

As relações do Brasil com os três países estão sob estresse político, provocado por declarações inamistosas e de cunho ideológico do presidente Bolsonaro e dos seus filhos

Vamos começar pela Argentina, que ontem perdeu seu maior ídolo, o ex-jogador Diego Maradona, cujo prestígio entre nós era tão grande que a velha rivalidade entre as torcidas brasileira e argentina perde qualquer sentido diante da sua genialidade e importância para o futebol mundial. Aliás, essa rivalidade, do ponto de vista geopolítico, perdeu o sentido desde a Guerra das Malvinas, quando os Estados Unidos, o aliado principal dos argentinos, apoiaram os ingleses, que recuperaram o arquipélago depois de impor dura derrota militar aos nossos vizinhos.

Ao contrário do que imaginava o presidente da Argentina, o general Leopoldo Galtieri, a primeira-ministra britânica Margaret Tatcher não quis saber de negociação e resolveu o assunto pela força, exibindo o poder naval do Reino Unido no Atlântico Sul. Foi um golpe de morte na ditadura militar argentina, desmoralizada na guerra. Muito do prestígio de Maradona se deve à vitória da seleção argentina contra os ingleses, na final da Copa do Mundo do México, em 1986, quando fez dois gols, um com a “mão de Deus” e o outro, numa arrancada em linha reta, driblando todos os ingleses à sua frente. Lavou, em campo, a alma de uma Argentina humilhada.

Bruno Boghossian – Diplomacia alucinada

- Folha de S. Paulo

Diplomacia da extrema direita aproxima o país de prejuízos reais

A diplomacia brasileira conseguiu cometer uma barbeiragem dupla. Nas últimas semanas, o governo desprezou o próximo presidente dos EUA e enviou sinais hostis para a China. Amarrado a Donald Trump e às bandeiras da direita radical, o país pode sofrer prejuízos concretos na relação com seus dois principais parceiros comerciais.

Na terça (24), a embaixada chinesa ameaçou o Brasil com “consequências negativas” depois que Eduardo Bolsonaro publicou uma mensagem que ligava a tecnologia de 5G do país asiático com atos de espionagem.

“Essa talvez seja a mais enfática advertência para os danos que Eduardo e seus cúmplices podem causar às relações com a China”, diz Roberto Abdenur, que foi embaixador brasileiro em Pequim e Washington. Para ele, o silêncio de Jair Bolsonaro sobre a declaração do filho “endossa essa barbaridade”.

Maria Cristina Fernandes - A contida expressão eleitoral do antirracismo

- Valor Econômico

A intolerância, como o vírus, ainda paira no ar

As primeiras pesquisas depois da morte de João Alberto Freitas no supermercado Carrefour em Porto Alegre não confirmam a contaminação da disputa municipal pela brutalidade do episódio.

O precedente é o da invasão da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), em Volta Redonda (RJ), por tropas do Exército e da Polícia Militar. O episódio produziu três mortos e dezenas de feridos. Seis dias depois, elegeu-se uma bancada de prefeitos sindicalistas - do ex-metalúrgico de Volta Redonda, Juarez Antunes, a Luiza Erundina (São Paulo), passando por Olívio Dutra (Porto Alegre), Chico Ferramenta (Ipatinga) e Jacó Bittar (Campinas).

Desta vez, são escassos os sinais de que o fenômeno se repita. O primeiro Ibope do segundo turno em Porto Alegre, que colheu entrevistas ao longo do fim de semana depois do assassinato, mostrou que o líder, Sebastião Melo (MDB), distanciou-se ainda mais da candidata do PCdoB em Porto Alegre, Manuela d’Ávila.

Melo terminou o primeiro turno dois pontos percentuais à frente de Manuela, que havia liderado durante toda a campanha. Agora a distância aumentou para sete. O movimento sugere não apenas a continuidade da curva com a qual Melo terminou o primeiro turno, como a tradicional migração de votos do eleitorado de candidatos mais afinados ideologicamente com os finalistas. O crescimento de Manuela pouco supera a soma dos votos de Juliana Brizola (PDT) e Fernanda Melchionna (Psol).

Carlos Alberto Sardenberg - Falha de governo

- O Globo

No mundo inteiro estão planejando a vacinação. O Brasil? Está pensando no caso

O Ministério da Saúde comprou 23,5 milhões de testes para Covid-19. Recebeu 15,9 milhões e distribuiu aos laboratórios estaduais 8,8 milhões, tudo em números arredondados.

Logo, tem uma sobra, de posse do ministério, de 14,7 milhões (os 23,5 milhões comprados menos os 8,8 milhões enviados aos estados). Dessa sobra, mais ou menos metade está estocada no aeroporto de Guarulhos. A outra metade, comprada da Bio-Manguinhos/Fiocruz, não foi entregue pela simples e boa razão de que há testes prontos e não utilizados.

Dos estocados, 6,7 milhões, quase todos, têm prazo de validade vencendo em dezembro agora e em janeiro de 2021.

Finalmente, foram efetivamente realizados 7,3 milhões de testes até 22 de novembro. Ou seja, há mais testes estocados do que utilizados.

Isso tudo no setor público.

No setor privado, laboratórios e hospitais do Rio e São Paulo registram um aumento de 30% a 50% na demanda por testes. Mais efetivo, o PCR sai por uns R$ 500 — caro, mas acessível com facilidade a quem pode pagar. Não falta. É só ligar e agendar. Paga na hora. Aceita cartão de débito e crédito.

Ascânio Seleme - A hora de Boulos

- O Globo

O perigo para ele é ser tutelado pelo PT

Uma grande novidade pode ocupar o cenário político nacional no próximo domingo. Guilherme Boulos, que há dois meses era apenas um dos diversos postulantes ao principal cargo em disputa nas eleições municipais deste ano, transformou-se na sensação da campanha e, em três dias, pode perfeitamente ser eleito prefeito de São Paulo. Votos para isso ele parece ter reunido, de acordo com as pesquisas. O importante a discutir agora é se esta é a melhor hora para Boulos.

A simples presença do candidato do PSOL nesta altura da campanha já areja o ambiente bastante intoxicado desde a eleição do presidente de extrema-direita. Embora o centro e a centro-direita tenham saído dominantes do primeiro turno, diminuindo o tamanho e o espaço de Jair Bolsonaro, a principal joia da coroa está em disputa entre um candidato de centro-esquerda e um de esquerda. Não há como negar, a prefeitura de São Paulo é a mais importante do país e tem orçamento e receita maiores que pelo menos uma dúzia de estados brasileiros.

Maria Hermínia Tavares* - O muro invisível do racismo

- Folha de S. Paulo

Todos reagiam com espanto diante da possibilidade de suas condutas serem discriminatórias

"Pois é, professora, ele não tinha cara de aluno da USP", comentou comigo o policial militar, meio sem graça, em particular. Estávamos no fim de uma reunião entre representantes da corporação e a Comissão de Direitos Humanos da Universidade de São Paulo. Tratava-se de saber por que o policial havia dado um empurrão no único negro que se envolvera em um incidente menor com um grupo de estudantes.

Fui ouvidora-geral da USP entre 2014 e 2017. Nesse período, recebi queixas semelhantes de alunos abordados pela segurança do campus ou a quem um professor perguntava se realmente faziam parte daquela classe. Tinham em comum apenas a condição de serem negros. Tampouco eram brancos alguns daqueles cujo comportamento alunas viam ­como assédio. Não eram acontecimentos frequentes. A rigor, foram raros nos quatro anos em que ali atuei. Mas sempre me chamou a atenção o fato de envolverem jovens que, por serem negros, não pareciam estar no lugar certo numa instituição de ensino superior que, naqueles anos --hoje nem tanto--, era muito, muito branca.

Gabriela Prioli - O canto das três raças

- Folha de S. Paulo

O negacionismo mata

Somos um país racista. Em tempos em que a política se afirma pela negação do óbvio, precisamos ser diretos.

Para constatar, basta olhar para o mundo com olhos de ver: nossos espaços de poder são brancos. Todos. Avaliem as fotos dos ministros de Estado, dos integrantes do Congresso, dos ministros do STF, políticos, donos de grandes empresas. Todos. Inclusive aqueles recentemente presos por corrupção. Quantas pessoas passaram a associar a branquitude ao mau uso do dinheiro público?

Nenhuma. Dirão que associar a cor da pele de alguém à maior ou menor propensão para cometer determinado crime é racismo. E é. Por que admitimos então o discurso daqueles que justificam o trocar de calçada porque "os negros são maioria entre os presos"? Aparentemente, ninguém "trocou de calçada" ao escolher os seus candidatos.

José Serra* - Vendendo ilusões a preço de ouro

- O Estado de S. Paulo

Lobistas dos cassinos e seus arautos não se detêm ante repetidas derrotas no Congresso

Tal uma praga, que destrói o que há de bom e belo ao seu redor, tal um vírus que volta todos os anos provocando grandes surtos, assim também são as sucessivas tentativas de explorar as piores fraquezas da condição humana, mediante a legalização dos jogos de azar. Tudo, evidentemente, revestido de imensas benfeitorias para as pessoas, as empresas, a economia nacional, enquanto não são mais que venda de ilusões (a preço de ouro). Mas a mesma conversa fiada tem-se repetido, com estranha regularidade, desde que a presidente Dilma Rousseff anunciou que iria aprovar, em 2016, um projeto de lei em tramitação no Congresso. Afinal, essa exploração das fraquezas humanas não tem ideologia.

A criação de cassinos atinge diretamente as pessoas, seu emprego, sua família e a economia local. Não seriam os mais ricos, mas os aficionados de renda média para baixo os principais clientes a tirar seu suado salário do bolso, deixando de gastar em outras coisas para perder dinheiro em roletas e caça-níqueis. Esse dinheiro, escasso e vital, é que financia o jogo e cria os empregos nos cassinos, enquanto elimina outros, vinculados a outras atividades. O bem-estar e o consumo das famílias seriam diretamente atingidos, assim como seus investimentos em saúde, educação ou moradia e lazer.

E a economia local, com seus empregos, seus serviços, sua segurança, seria comprovadamente abalada: a introdução dos cassinos em Atlantic City – superada apenas por Las Vegas em matéria de jogos de azar – reduziu em 25% os empregos nos setores não ligados à jogatina. No Estado americano de Illinois, somente no ano de 1995 os custos associados ao funcionamento dos cassinos superaram em US$ 287 milhões os seus benefícios.

Vinicius Torres Freire – Começa a bater um desamino

- Folha de S. Paulo

Inflação da comida, auxílio no fim e falta de emprego desanimam brasileiro

A inflação da comida não era tão alta desde 2008, embora naquele tempo a economia e os salários crescessem rápido. Antes disso, carestia da comida tão ruim houvera apenas em 2003. Para piorar, o valor do auxílio emergencial caiu pela metade desde setembro.

Como a economia ainda está muito deprimida e a epidemia ainda muito animada, a perspectiva de emprego é difícil, em particular para o terço mais pobre da população.Há motivos para o brasileiro desanimar. Há números que medem a desanimação.

O Índice de Confiança do Consumidor (ICC) da FGV caiu pelo segundo mês consecutivo em novembro. O ICC é composto de várias medidas de ânimo. A que mais abateu o índice foi a expectativa econômica para os próximos meses.

A inflação da “alimentação no domicílio”, como diz o IBGE, aumentou em média 19,9% nos últimos 12 meses até novembro (na inflação medida pelo IPCA-15). As pancadas mais fortes do mês foram na batata, no tomate, no óleo de soja, no arroz e na carne de boi.

Míriam Leitão - A conta será do agronegócio

- O Globo

Sim, a China pode nos atingir com as consequências negativas desse tipo de agressão grosseira, gratuita e infantil como a do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP). O agronegócio precisa se mexer, porque é o alvo. Basta que a China queira fazer um gesto de boa vontade em relação ao governo Biden e passe a redirecionar sua compra de soja para lá. Ou que invista em países que substituam pelo menos em parte as exportações brasileiras de alimentos. Uma pequena redução já nos afetará.

Essa é a visão de um diplomata experiente que vê com perplexidade os movimentos sem eira nem beira da nossa política externa. A palavra dura também cabe na diplomacia, mas só deve ser usada com algum propósito bem definido. Nada da política externa do governo Bolsonaro tem rumo. Uma política biruta.

Um analista bem próximo ao governo Bolsonaro que, contudo, discorda da tendência que tem tomado a política externa, explica a raiz do problema. O verdadeiro chanceler é o assessor internacional Filipe Martins, um jovem sem qualquer qualificação para a ascendência que tem sobre assunto tão relevante. “O Ernesto é um maria vai com as outras”, explicou esse analista. De fato, o atual ministro só mostrou seu fervor de extrema-direita durante a campanha presidencial, criando um blog para se alavancar para o cargo. Uma vez lá, passou a aceitar todo tipo de interferência e se coloca subserviente aos ditames tanto de Eduardo Bolsonaro quanto de Filipe Martins, um fanático olavista, sem qualquer experiência no ramo.

Fabio Graner - Esquenta debate sobre volta à austeridade

- Valor Econômico

Equipe econômica considera que espaço fiscal é quase inexistente

Em meio às discussões crescentes sobre o rumo da política fiscal brasileira nos próximos meses, acaba de sair do forno o livro “Economia Pós-Pandemia”. O material joga lenha na fogueira desse debate ao fazer um ataque frontal ao teto de gastos e à ideia da atual equipe econômica de voltar, no início de 2021, à austeridade para controlar a trajetória de endividamento do país.

Organizado pelos economistas Esther Dweck, Pedro Rossi e Ana Luiza de Oliveira, todos de corte heterodoxo, o livro discute não só a questão conjuntural sobre a política fiscal e seus diversos impactos na economia, mas também temas estruturais e de longo prazo. Entre eles, a interação da arquitetura de gastos públicos e tamanho do Estado com os problemas crônicos do país, como racismo e desigualdades social e de gênero.

Outrora tido como inimigo pela esquerda, o próprio Fundo Monetário Internacional (FMI) é citado no livro para corroborar a tese de que o Brasil não deveria partir para uma contração fiscal da ordem de 8% do PIB, que está sendo contratada para o próximo ano. Embora o organismo internacional tenha feito a ressalva de que países com alto endividamento têm menos espaço de ação, a direção proposta realmente é em uma linha contrária à austeridade no curto prazo, o que desagradou parte da equipe econômica.

“[A austeridade]” é anacrônica porque nega o papel da política fiscal como indutora do crescimento e do emprego em um momento de grave crise econômica, destoando do debate internacional e até de instituições como o FMI. E cruel pois agrava as desigualdades de gênero, raça e classe e representa um retrocesso na garantia de direitos humanos”, dizem os autores na abertura do livro.

Celso Ming - Promessas bloqueadas

- O Estado de S. Paulo

O Posto Ipiranga não consegue nem mesmo vender gasolina

Nesta segunda-feira, o ministro da Economia, Paulo Guedes, reconheceu que “o programa de privatizações não andou direito”. E ele atribuiu o insucesso à oposição entre os políticos, que, por sua vez, reflete a obstrução produzida pelos lobbies corporativos mais a reação de natureza ideológica da bancada estatizante. Atribuiu também a questões internas do governo – mas isso o ministro não chegou a dizer –, que apontam para aqueles que preferem ter à sua disposição vagas nas diretorias nas estatais para distribuir aos cupinchas.

Em 2018, até mesmo antes de assumir seu posto na Economia, Paulo Guedes garantia que proveria R$ 1 trilhão em privatizações de empresas da União. Seu objetivo era livrar-se de sangrar o Tesouro com transferências destinadas a capitalizar estatais atacadas de raquitismo. Não saiu nem a privatização da Eletrobrás, nem a dos Correios nem a da Casa da Moeda, que pareciam encaminhadas. A 11 de agosto, saiu derrotado no governo o secretário de Privatizações, Salim Mattar.

No entanto – e isso o ministro também não diz –, a maior oposição à privatização vem do presidente Bolsonaro, que faz corpo mole ou interdita iniciativas, muitas delas no caminho correto.

John M. Keynes* - A Teoria Geral do Emprego, dos Juros e da Moeda

Prefácio à Edição Francesa

Por cem anos ou mais a Economia Política inglesa vem sendo dominada por uma ortodoxia. Isso não quer dizer que tenha prevalecido uma doutrina imutável. Ao contrário.

Tem havido uma progressiva evolução da doutrina. Mas seus pressupostos, sua atmosfera, seu método têm continuado surpreendentemente iguais, e tem sido observável uma notável continuidade através de todas as mudanças. Nessa ortodoxia, nessa transição contínua foi que eu me formei. Eu a aprendi, eu a ensinei, eu a escrevi.

Para os que observam de fora, provavelmente ainda pertenço a ela. Os historiadores da doutrina irão considerar este livro como pertencente essencialmente à mesma tradição. Mas ao escrevê-lo, e em outra obra recente que levou a ele, senti-me rompendo com essa ortodoxia, numa forte reação contra ela, fugindo de alguma coisa, conquistando uma emancipação. E esse estado de espírito de minha parte é a explicação de certas falhas do livro, em particular o tom controvertido de alguns trechos e seu ar de ser dirigido muito aos que detêm um ponto de vista específico e pouco ad urbem et orbem. Eu estava querendo convencer meu próprio ambiente e não me dirigi de modo suficientemente direto à opinião dos de fora. Agora, três anos depois, tendo-me acostumado à nova pele e quase me esquecido do cheiro da velha, devo, como se estivesse escrevendo de novo, esforçar-me para livrar-me dessa falha, estabelecendo minha posição de maneira mais definida.

Digo tudo isso em parte para explicar-me e em parte para desculpar-me perante os leitores franceses; na França não houve uma tradição ortodoxa com a mesma autoridade sobre a opinião contemporânea como houve em meu país. Nos Estados Unidos, a posição é bastante semelhante à da Inglaterra, mas na França, como no resto da Europa, não tem havido uma escola dominante desse tipo desde a extinção da escola dos economistas liberais franceses que estiveram em seu apogeu há vinte anos (apesar de terem alcançado uma idade tão provecta que, bem depois de sua influência ter desaparecido, coube-me, quando comecei a trabalhar como jovem redator do Economic Journal, escrever os necrológios de muitos deles

— Levasseur, Molinari, Leroy-Bealieu). Se Charles Gide tivesse atingido a mesma influência e o mesmo prestígio de Alfred Marshall, a posição de vocês, franceses, seria mais semelhante à nossa. Do modo como as coisas ocorreram, seus economistas são ecléticos, demasiado (achamos nós, às vezes) desenraizados do pensamento sistemático. Talvez isso possa fazê-los mais acessíveis ao que tenho a dizer. Isso pode porém também resultar em que meus leitores às vezes fiquem imaginando a que me refiro quando estou falando, com aquilo que alguns de meus críticos ingleses consideram um mau uso da língua, da escola “clássica” de pensamento e dos economistas “clássicos”. Pode ser útil a meus leitores franceses, portanto, que eu tente indicar bem resumidamente o que considero as principais differentiae de minha perspectiva.

Dei a minha teoria o nome de teoria geral. Com isso quero dizer que estou preocupado principalmente com o comportamento do sistema econômico como um todo — com a renda global, com o lucro global, com o volume global da produção, com o nível global de emprego, com o investimento global e com a poupança global, em vez de com a renda, o lucro, o volume da produção, o nível do emprego, o investimento e a poupança de ramos da indústria, firmas ou indivíduos em particular. E afirmo que foram cometidos erros importantes ao se estender para o sistema como um todo as conclusões a que se tinha chegado de forma correta com relação a uma parte desse sistema tomada isoladamente.

Entrevista | André Lara Resende: ‘Investimento público é mais importante que juro baixo tanto para atenuar os efeitos da recessão como no longo prazo’

Para economista, é preciso superar o arcabouço analítico anacrônico e equivocado que impõe o equilíbrio fiscal como o único objetivo de política econômica

- Adriana Fernandes | O Estado de S. Paulo

O economista André Lara Resende é hoje uma voz dissonante do pensamento econômico dominante no Brasil. Quinto entrevistado da série do Estadão "Saídas para a Crise Fiscal”, Lara Resende afirma que o investimento público é hoje muito mais importante do que a política de juros como resposta para a retomada econômica após a pandemia do coronavírus e também para o desenvolvimento de longo prazo do País.

Um dos formuladores do Plano Real e com a experiência de ter trabalhado mais de 30 anos no mercado financeiro, Lara Resende propõe a criação de um órgão, protegido de "pressões políticas ilegítimas", para definir os investimentos públicos. Para ele, essa é hoje uma medida mais valiosa do que um Banco Central independente.

O economista alerta que até agora não houve uma única iniciativa, nem mesmo propostas, de políticas públicas para garantir uma recuperação sustentada, uma vez superada a pandemia. Ambientalista, Lara Resende diz que é incompreensível a postura do governo Jair Bolsonaro em relação à questão ambiental, considerada por ele o mais grave problema a ser enfrentado pela humanidade, e que compromete o Brasil no exterior. 

● Como o sr. avalia a resposta do governo à pandemia da covid-19?

A resposta à pandemia foi conturbada, incompetente e negacionista no todo. Quanto à política econômica, apesar de alguma hesitação inicial, com o auxílio de emergência, o governo acabou por dar uma resposta que aliviou temporariamente a situação dos que perderam o emprego ou a renda. O auxílio emergencial foi fundamental para aliviar a recessão e a crise social provocada pela pandemia. Até agora não houve uma única iniciativa, nem mesmo propostas, de políticas públicas para garantir uma recuperação sustentada, uma vez superada a pandemia. Quando a pandemia parece recrudescer, volta-se a falar na necessidade de encerrar o auxílio em nome do equilíbrio fiscal. Mais uma demonstração clara de que o governo continua dominado por restrições ideológicas.

● Uma das preocupações no Brasil é justamente o crescimento da dívida, que caminha para 100% do PIB. É um problema?

Trata-se de uma preocupação infundada. Em várias ocasiões na história, sobretudo depois de guerras ou catástrofes, inúmeros países tiveram dívidas superiores ao PIB. Hoje, Japão, EUA, Itália, entre outros, têm dívida superior ao PIB. A dívida pública não pode ter uma trajetória explosiva, mas, desde que o seu crescimento acelerado seja transitório, que passada a crise, com as contas reequilibradas e restaurado o crescimento da economia, a relação entre dívida e PIB volte a cair, não há qualquer problema em ultrapassar os 100% do PIB.

● Existe um limite para a dívida?

Não existe um limite intransponível para a dívida interna e o PIB. O endividamento externo, que depende de financiamento do exterior em moeda estrangeira, é sim perigoso. Como aprendemos com as sucessivas crises da dívida externa no século passado, quando os credores internacionais passam a ter dúvida sobre a capacidade do País de honrar seus compromissos em moeda estrangeira, a súbita interrupção do fluxo de financiamento pode provocar crises gravíssimas. No século passado, o Brasil era importador líquido de petróleo e derivados, assim como de trigo e outras commodities (produtos classificados como  básicos por não ter tecnologia envolvida ou acabamento). Precisava de financiamento externo para cobrir o déficit com o resto do mundo. Hoje, somos autossuficientes em petróleo, exportadores líquidos de commodities e temos um setor agropecuário altamente superavitário. O Brasil de hoje não tem dívida pública externa, ao contrário, tem quase 30% do PIB em reservas internacionais. A nossa dívida é interna, do Estado com os brasileiros.

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

No País das Maravilhas – Opinião | O Estado de S. Paulo

No país de Jair Bolsonaro, os pobres e desempregados, que vão enfrentar inevitável redução de renda, podem esperar

No país do presidente Jair Bolsonaro, os pobres e desempregados podem esperar. Sem qualquer plano factível para enfrentar a inevitável redução da renda de milhões de seus compatriotas em razão do fim do auxílio emergencial, Bolsonaro escolheu a negação: comporta-se ora como se o problema não fosse dele, ora como se os pobres afinal não existissem.

Não se pode dizer que o presidente seja incoerente. Para quem jura que em 1970 participou da repressão à luta armada durante a ditadura militar – mesmo que se possa comprovar facilmente que, na época, ele tinha apenas 15 anos de idade – não é difícil inventar que governa o País das Maravilhas.

Movido por devaneios desse tipo desde que tomou posse, Bolsonaro é uma inesgotável fonte de fantasias a respeito dos feitos de sua administração e do país que preside. Não fossem os “inimigos” do Brasil – a oposição, a imprensa, os governadores, o Congresso, o Supremo Tribunal Federal, a OMS, a ONU, os países europeus, a China, o coronavírus, a libertinagem no carnaval e o que mais aparecer –, estaríamos gozando a glória do pleno desenvolvimento econômico, social e moral.

No Brasil de Bolsonaro, por exemplo, não há racismo. Sem dedicar uma única palavra de conforto à família de um homem negro brutalmente assassinado por seguranças brancos num supermercado de Porto Alegre, crime que chocou o País, o presidente preferiu dizer que vivemos em harmonia racial e que o lugar de quem denuncia o racismo é o “lixo”.

Também no Brasil de Bolsonaro, não há devastação da Amazônia e do Pantanal e nunca se protegeu tanto o meio ambiente como em seu governo. Todas as críticas de governos estrangeiros e da imprensa a respeito do inegável avanço do desmatamento, diz o presidente, são fruto de uma campanha internacional destinada a manchar a imagem do País e prejudicar sua economia.

Música | Teresa Cristina - O Bêbado e a Equilibrista e O Sol Nascerá

 

Poesia | Murilo Mendes - Amor-vida

Vivi entre os homens
Que não me viram, não me ouviram
Nem me consolaram.
Eu fui o poeta que distribui seus dons
E que não recebe coisa alguma.
Fui envolvido na tempestade do amor,
Tive que amar até antes do meu nascimento.
Amor, palavras que funda e que consome os seres.
Fogo, fogo do inferno: melhor que o céu.