Chegou-me, pela mão certeira de um aluno, um ensaio de Ortega Y
Gasset, escrito há mais de cem anos (“Espanha invertebrada”, 1917), sobre a
decadência de sua nação e publicado pelo Estadão/Estado da Arte, em 25.08.2021.
O filósofo espanhol reconhece, metaforicamente, no surgimento, então recente,
do que hoje chamamos de cinema, uma possibilidade nova de compreensão de um
drama de séculos, o qual permaneceria opaco se visto sob os limites de
fotografias isoladas de cada ato desse drama.
No mesmo dia, na imprensa e em redes sociais, publicou-se imagens fotográficas
da queima, no Rio de Janeiro, de uma estátua de Pedro Álvares Cabral, protagonista
da narrativa fundacionista do Brasil historiograficamente consagrada e, por
isso mesmo, contestada por um revisionismo histórico proposto por correntes
acadêmicas e ativistas de movimentos políticos. A fidelidade jornalística ao
registro do fato vincula-o a um protesto em defesa de populações indígenas (ou
de “povos originários”, conceito histórico-político amplamente aceito hoje,
para nomeá-las e legitimar a causa) e contra o estabelecimento de um marco
temporal que reinterpreta e redefine seus direitos constitucionais, discussão
ora em curso no Judiciário e no Legislativo brasileiros.
A fotografia do acontecimento carioca e do conflito conjuntural a
que se vincula é, como na metáfora de Gasset sobre a derrocada de sua Espanha,
insuficiente para a plena compreensão do processo em que o fato se insere.
Estamos - assim como se estava na Espanha a duas décadas de uma guerra civil -
diante de um script cinematográfico. Processo contínuo, que se não for
refratado, pedirá um Picasso vindouro para pintar, como aviso aos pósteros a
essa quadra perigosa que vivemos, o quadro agonístico das Guernicas que gestos
insólitos como aquele preparam. Com isso quero dizer que não é do conflito de
interesses e valores entre agronegócio e povos originários que tratarei aqui.
Sem desqualificar sua importância para a pauta política e social do presente,
evitarei conferir-lhe a centralidade fotográfica que lhe atribui a gramática
polarizadora em voga. Peço passagem para outra pauta, que é coisa de cinema.
Quero discutir as depredações como tema político em si, autônomo
(embora não alheio), face a causas econômicas e sociais. E não se trata de
questionar apenas o fogo como meio, mas os fins desse gesto iconoclasta. A
discussão, conforme a sinto, é sobre se estamos dispostos a deixar que nossa
História seja incinerada sem levantar nossa voz contra isso.
Muitas das críticas pontuais à violência como método costumam ser
apenas céticas quanto às possibilidades de que ela, a violência, atinja, no
caso, o objetivo supostamente nobre ao qual, também supostamente, esse ativismo
se dedica, isto é, o de revogar a história “escrita pelos opressores” e
reescrevê-la “sob a ótica dos oprimidos”.
Acho preciso falar contra isso, sem meias
palavras e logo, antes que a extrema direita, espertamente, o faça.