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O Globo / O Estado de S. Paulo
1) A
pandemia expôs o que não queríamos ver. O nosso lado ambíguo que tende a adiar
problemas. A despeito, entretanto, de nossa autocondescendência — afinal de
contas, Deus é brasileiro! —, a “gripezinha” do presidente Bolsonaro (e dos que
são contra o seu estilo e governo, mas continuam se aglomerando) já matou mais
de 256 mil! A pandemia obriga a pensar anormalmente com o outro.
Estamos
contaminados, e a reflexão inevitável nos leva a uma história repleta de
contrastes em termos de costumes e instituições. Somos um país “descoberto” de
propósito ou por acaso? (como reza a fábula); somos uma sociedade constituída
por três raças? (como diz um mito); ou uma nação solidificada e modernizada, um
tanto à força, por um rei e uma corte fugida, em 1808, de Lisboa? (como diz a
história).
Ou
somos tudo isso e mais alguma coisa que a contaminação obriga a descobrir?
Será
que jamais vamos aprender a votar e, por isso, o absolutismo bolsonarista tem
força inclusive no Congresso Nacional, que, na semana passada, chegou perto de
reinstituir imunidades aristocráticas?
2)
Com a vinda da Corte, o Rio de Janeiro deixou de ser um povoado para virar a
capital de um gigantesco reino ultramarino. Nele instalou-se uma realeza que
oprimiu com um inapelável “você sabe com quem está falando?” a população
nativa, desapropriando suas melhores moradas.
Nessa
época, o mundo iniciava uma caminhada contra o atraso, mas, aqui no Brasil,
combinávamos neomercantilismo com escravidão, que alicerçou um estilo de vida
hierarquizado e aristocrático. Um sistema escravocrata, fundado no “um lugar
para cada coisa, cada coisa em seu lugar”, que tirou do trabalho sua grandeza e
criou uma brutal indiferença para com o mundo público e impessoal da rua. “Da
porta de nossa casa para fora, o problema é do governo!”
Mas
isso não funciona quando um vírus sem intencionalidade prova nossa incapacidade
para juntar forças a agir solidariamente, porque as hierarquias que sustentam
uma imensa desigualdade mostram como o familismo é recorrente e dominante.
Julgamos
duramente de um lado, mas com condescendência do outro. Sofremos de uma
ambiguidade de raiz porque podemos resolver o mundo como fidalgos ou como
cidadãos. Eleitos e de “posse” de um cargo, em vez de democratizar, aristocratizamos.
Voltamos sempre ao familismo, rasgando promessas democráticas. No mesmo passo,
vemos o retorno de uma política de controle de preços que implode
investimentos. Tudo isso mostra como mudamos sem mudar.