Giulio Ferroni
Fonte: IHU On-Line & Gramsci e o Brasil.
Para o professor de literatura italiana da Universidade La Sapienza, de Roma, Giulio Ferroni, a concepção gramsciana do moderno Príncipe não está presente nas ideias dos atuais partidos de esquerda italianos. Ele é enfático ao dizer que, na Itália, “o moderno Príncipe atual é a televisão”. Ferroni ressalta que na política italiana Gramsci foi usado como modelo polêmico, principalmente entre 1950 e 1960. “O Partido Comunista procurou construir um modelo gramsciano”, impondo uma “hegemonia” cultural própria, ele explica. E, em seguida, dispara: “Mas aquele modelo atuou apenas em parte sobre as massas trabalhadoras e foi cancelado totalmente pelo domínio da mídia, da cultura da aparência, da publicidade, do espetáculo”.
De sua produção intelectual, citamos: Mutazione e riscontro nel teatro di Machiavelli (Roma: Bulzoni, 1972), Il comico nelle teorie contemporanee (Roma: Bulzoni, 1974) e Istruzione, cultura e illusioni della riforma (Turim: Einaudi, 1997). A entrevista a seguir foi concedida por e-mail à IHU On-Line.
Qual é a atualidade do conceito de intelectual orgânico, cunhado por Gramsci?
Poder-se-ia dizer que o conceito de intelectual orgânico é, ao mesmo tempo, atual e inatual. Atual pela lucidez com que Gramsci estendeu a categoria de intelectual, incluindo não só as figuras tradicionais (escritores, filósofos, artistas, etc.), mas abrangendo todas as figuras de técnicos e de mediadores do consenso e das formas de consciência e conhecimento sob títulos diversos (aqueles que hoje poderíamos chamar de operadores culturais). Inatual porque hoje não podemos mais falar de intelectuais que sejam orgânicos para uma classe ou um grupo de classes. Quando muito, há intelectuais funcionários que são orgânicos em relação ao sistema de comunicação e intelectuais “não orgânicos”, que resistem ao sistema global da comunicação, sem nenhum mandato social.
Na Itália, como a intelectualidade da esquerda e a da direita se posicionaram no século XX com base neste conceito?
No fundo, os verdadeiros intelectuais orgânicos foram aqueles “políticos” com que precisamente o fascismo tentou construir, mesmo que contraditoriamente, um modelo de atividade intelectual centralizada, reunindo em torno de uma função orgânica até mesmo intelectuais divergentes e de oposição (como é o caso do Instituto da Enciclopédia Italiana e da atividade de Giovanni Gentile, ou da revista Primato, dirigida por Giuseppe Bottai). Na esquerda, foi o Partido Comunista Italiano, de 1945 a 1970, que tentou, de várias maneiras, criar um grupo de intelectuais orgânicos, empenhados no trabalho de construir o consenso para aquele “Moderno Príncipe” que era o partido. Mas diga-se que se tratou prevalentemente de intelectuais “políticos” ou de intelectuais funcionários, enquanto as contribuições mais fecundas para o pensamento e a política de esquerda vieram precisamente de intelectuais “não orgânicos”.
Como o senhor faz a análise da influência de Maquiavel no pensamento político de Gramsci? Que elementos conserva do escritor florentino e em que o supera?
Para Gramsci, Maquiavel é um grande modelo “mítico”. Gramsci vê em Maquiavel a capacidade de confrontar-se com as mais avançadas monarquias europeias da época e a busca de uma intervenção sobre a situação italiana que criasse, também na Itália, um regime centralizado e moderno: o Príncipe é aquele que sabe dar-se conta da situação e sabe pôr em campo todos os meios para agir sobre ela, conquistando no “povo” o necessário consenso. Assim, o partido moderno deve ter, como o Príncipe de Maquiavel, aquela capacidade de suscitar consenso e de intervir de modo revolucionário na situação contemporânea. Este é, precisamente, o mito do “Moderno Príncipe”. Mas Gramsci também percebeu, no cárcere, a falência do projeto de Maquiavel, acabando por também ver nele uma imagem de sua própria derrota.
Quais seriam as maiores diferenças entre a concepção de Estado de Gramsci em relação a Marx e Lenin?
A maior diferença está no fato de que, em seu pensamento mais maduro, Gramsci parece indicar a imagem de um Estado muito articulado, cuja estrutura não deve apoiar-se sobre a ditadura do proletariado, mas sobre a capacidade do proletariado de ser “hegemônico”, de impor o desenvolvimento revolucionário através do consenso e da aliança com as classes intermediárias.
Togliatti afirmou que Gramsci era o primeiro bolchevique italiano, o primeiro leninista do país. De que modo a concepção gramsciana de “Moderno Príncipe” influencia os atuais partidos de esquerda na Itália?
Bolchevique nos anos da revolução soviética e naqueles da fundação do Partido Comunista Italiano, Gramsci se afastou do bolchevismo no pensamento mais maduro dos Cadernos do cárcere, pensamento que também é animado por uma forte contraditoriedade e por uma grande tensão dramática. Quanto à concepção do “Moderno Príncipe”, os atuais partidos de esquerda, também aqueles que ainda pretendem ser “comunistas”, estão, com efeito, muito distantes disto. Na realidade, o atual “Moderno Príncipe” não é mais um partido ou o partido, mas é a televisão.
Para Lenin, os sovietes são órgãos do governo para os trabalhadores, os quais são conduzidos pelo estrato de vanguarda do proletariado e não pelas massas trabalhadoras. De que modo esta situação se apresentou na Itália? Houve na Itália uma revolução cultural do ponto de vista gramsciano?
Parece-me que, na política italiana, Gramsci tenha sido usado como modelo polêmico e lhe tenham sido atribuídos os pontos de vista mais diversos e até mesmo opostos. Sobretudo nos anos 1950 e nos primeiros anos 1960, o Partido Comunista procurou construir um modelo gramsciano, procurando impor uma “hegemonia” cultural própria, até mesmo por causa da inteligência, da rica cultura dos seus dirigentes, mas que atuou apenas em parte sobre as massas trabalhadoras e foi totalmente eliminado pelo domínio da mídia, da cultura da aparência, da publicidade, do espetáculo.
Poderia dar detalhes do contexto no qual emergem e o que eram as Comissões Internas, consideradas por Gramsci como embriões de sovietes?
Em meio aos conflitos econômicos e sociais da Itália saída da Primeira Guerra Mundial, no contexto muito vivaz e vital da Turim operária, os conselhos de fábrica foram uma grande tentativa de gestão direta da fábrica por parte dos operários (que o turinense Gobetti apreciava precisamente a partir de um ponto de vista “liberal”): certamente havia muitas semelhanças com os sovietes, mas eles emergiam num horizonte cultural, econômico e social muito diverso.
Gramsci teve influência na literatura italiana? De que forma?
A influência foi importante do ponto de vista da crítica e da teoria literária, e, sobretudo, da linguística. Um eco da reflexão de Gramsci é sentido provavelmente naquelas experiências que confrontaram a língua nacional com os diversos dialetos, que deram atenção aos encontros e conflitos entre a língua literária e a expressividade das línguas regionais (de Pasolini a Meneghello). No famoso livro de Pasolini, Le ceneri di Gramsci, há uma referência a um modelo heroico, à perspectiva histórica e política e ao empenho por uma nova humanidade que Gramsci representa, mas não se pode falar de um verdadeiro influxo de Gramsci. Sobre narradores e poetas a influência de Gramsci foi somente indireta.
Fonte: IHU On-Line & Gramsci e o Brasil.
Para o professor de literatura italiana da Universidade La Sapienza, de Roma, Giulio Ferroni, a concepção gramsciana do moderno Príncipe não está presente nas ideias dos atuais partidos de esquerda italianos. Ele é enfático ao dizer que, na Itália, “o moderno Príncipe atual é a televisão”. Ferroni ressalta que na política italiana Gramsci foi usado como modelo polêmico, principalmente entre 1950 e 1960. “O Partido Comunista procurou construir um modelo gramsciano”, impondo uma “hegemonia” cultural própria, ele explica. E, em seguida, dispara: “Mas aquele modelo atuou apenas em parte sobre as massas trabalhadoras e foi cancelado totalmente pelo domínio da mídia, da cultura da aparência, da publicidade, do espetáculo”.
De sua produção intelectual, citamos: Mutazione e riscontro nel teatro di Machiavelli (Roma: Bulzoni, 1972), Il comico nelle teorie contemporanee (Roma: Bulzoni, 1974) e Istruzione, cultura e illusioni della riforma (Turim: Einaudi, 1997). A entrevista a seguir foi concedida por e-mail à IHU On-Line.
Qual é a atualidade do conceito de intelectual orgânico, cunhado por Gramsci?
Poder-se-ia dizer que o conceito de intelectual orgânico é, ao mesmo tempo, atual e inatual. Atual pela lucidez com que Gramsci estendeu a categoria de intelectual, incluindo não só as figuras tradicionais (escritores, filósofos, artistas, etc.), mas abrangendo todas as figuras de técnicos e de mediadores do consenso e das formas de consciência e conhecimento sob títulos diversos (aqueles que hoje poderíamos chamar de operadores culturais). Inatual porque hoje não podemos mais falar de intelectuais que sejam orgânicos para uma classe ou um grupo de classes. Quando muito, há intelectuais funcionários que são orgânicos em relação ao sistema de comunicação e intelectuais “não orgânicos”, que resistem ao sistema global da comunicação, sem nenhum mandato social.
Na Itália, como a intelectualidade da esquerda e a da direita se posicionaram no século XX com base neste conceito?
No fundo, os verdadeiros intelectuais orgânicos foram aqueles “políticos” com que precisamente o fascismo tentou construir, mesmo que contraditoriamente, um modelo de atividade intelectual centralizada, reunindo em torno de uma função orgânica até mesmo intelectuais divergentes e de oposição (como é o caso do Instituto da Enciclopédia Italiana e da atividade de Giovanni Gentile, ou da revista Primato, dirigida por Giuseppe Bottai). Na esquerda, foi o Partido Comunista Italiano, de 1945 a 1970, que tentou, de várias maneiras, criar um grupo de intelectuais orgânicos, empenhados no trabalho de construir o consenso para aquele “Moderno Príncipe” que era o partido. Mas diga-se que se tratou prevalentemente de intelectuais “políticos” ou de intelectuais funcionários, enquanto as contribuições mais fecundas para o pensamento e a política de esquerda vieram precisamente de intelectuais “não orgânicos”.
Como o senhor faz a análise da influência de Maquiavel no pensamento político de Gramsci? Que elementos conserva do escritor florentino e em que o supera?
Para Gramsci, Maquiavel é um grande modelo “mítico”. Gramsci vê em Maquiavel a capacidade de confrontar-se com as mais avançadas monarquias europeias da época e a busca de uma intervenção sobre a situação italiana que criasse, também na Itália, um regime centralizado e moderno: o Príncipe é aquele que sabe dar-se conta da situação e sabe pôr em campo todos os meios para agir sobre ela, conquistando no “povo” o necessário consenso. Assim, o partido moderno deve ter, como o Príncipe de Maquiavel, aquela capacidade de suscitar consenso e de intervir de modo revolucionário na situação contemporânea. Este é, precisamente, o mito do “Moderno Príncipe”. Mas Gramsci também percebeu, no cárcere, a falência do projeto de Maquiavel, acabando por também ver nele uma imagem de sua própria derrota.
Quais seriam as maiores diferenças entre a concepção de Estado de Gramsci em relação a Marx e Lenin?
A maior diferença está no fato de que, em seu pensamento mais maduro, Gramsci parece indicar a imagem de um Estado muito articulado, cuja estrutura não deve apoiar-se sobre a ditadura do proletariado, mas sobre a capacidade do proletariado de ser “hegemônico”, de impor o desenvolvimento revolucionário através do consenso e da aliança com as classes intermediárias.
Togliatti afirmou que Gramsci era o primeiro bolchevique italiano, o primeiro leninista do país. De que modo a concepção gramsciana de “Moderno Príncipe” influencia os atuais partidos de esquerda na Itália?
Bolchevique nos anos da revolução soviética e naqueles da fundação do Partido Comunista Italiano, Gramsci se afastou do bolchevismo no pensamento mais maduro dos Cadernos do cárcere, pensamento que também é animado por uma forte contraditoriedade e por uma grande tensão dramática. Quanto à concepção do “Moderno Príncipe”, os atuais partidos de esquerda, também aqueles que ainda pretendem ser “comunistas”, estão, com efeito, muito distantes disto. Na realidade, o atual “Moderno Príncipe” não é mais um partido ou o partido, mas é a televisão.
Para Lenin, os sovietes são órgãos do governo para os trabalhadores, os quais são conduzidos pelo estrato de vanguarda do proletariado e não pelas massas trabalhadoras. De que modo esta situação se apresentou na Itália? Houve na Itália uma revolução cultural do ponto de vista gramsciano?
Parece-me que, na política italiana, Gramsci tenha sido usado como modelo polêmico e lhe tenham sido atribuídos os pontos de vista mais diversos e até mesmo opostos. Sobretudo nos anos 1950 e nos primeiros anos 1960, o Partido Comunista procurou construir um modelo gramsciano, procurando impor uma “hegemonia” cultural própria, até mesmo por causa da inteligência, da rica cultura dos seus dirigentes, mas que atuou apenas em parte sobre as massas trabalhadoras e foi totalmente eliminado pelo domínio da mídia, da cultura da aparência, da publicidade, do espetáculo.
Poderia dar detalhes do contexto no qual emergem e o que eram as Comissões Internas, consideradas por Gramsci como embriões de sovietes?
Em meio aos conflitos econômicos e sociais da Itália saída da Primeira Guerra Mundial, no contexto muito vivaz e vital da Turim operária, os conselhos de fábrica foram uma grande tentativa de gestão direta da fábrica por parte dos operários (que o turinense Gobetti apreciava precisamente a partir de um ponto de vista “liberal”): certamente havia muitas semelhanças com os sovietes, mas eles emergiam num horizonte cultural, econômico e social muito diverso.
Gramsci teve influência na literatura italiana? De que forma?
A influência foi importante do ponto de vista da crítica e da teoria literária, e, sobretudo, da linguística. Um eco da reflexão de Gramsci é sentido provavelmente naquelas experiências que confrontaram a língua nacional com os diversos dialetos, que deram atenção aos encontros e conflitos entre a língua literária e a expressividade das línguas regionais (de Pasolini a Meneghello). No famoso livro de Pasolini, Le ceneri di Gramsci, há uma referência a um modelo heroico, à perspectiva histórica e política e ao empenho por uma nova humanidade que Gramsci representa, mas não se pode falar de um verdadeiro influxo de Gramsci. Sobre narradores e poetas a influência de Gramsci foi somente indireta.