‘Vocês estão vivendo um novo tipo de ditadura’, diz sociólogo Manuel Castells
Referência no estudo das redes, espanhol diz que disseminação de informações falsas conduz país ao totalitarismo e educação é única via para reverter o quadro
RIO — O Brasil está vivendo um novo tipo de ditadura, que tem como pilares a disseminação de notícias falsas e sucessivos ataques à Educação . Essa é a visão do espanhol Manuel Castells , um dos principais teóricos da comunicação e autor de livros como “A Sociedade em Rede” e “Galáxia da Internet”.
Em entrevista ao GLOBO, ele afirmou que o país só conseguirá evitar um futuro totalitário caso as escolas desempenhem bem seu papel . Nesse sentido, criticou o projeto do governo Bolsonaro de criar escolas militares, com foco na disciplina.
Castells diz ainda que os cidadãos que “querem estabelecer a verdade” precisam retomar o protagonismo nas redes.
O espanhol visitou o Rio para participar do seminário “Educação, Cultura e Tecnologia: Escola do Século XXI”, promovido pela Prefeitura de Niterói, e para palestrar sobre “Comunicação, política e democracia”, na FGV.
Paula Ferreira / - O Globo, 17/7/2019
• Hoje, no Brasil, há pessoas que dizem que o nazismo era de esquerda e que a terra é plana. Como isso é possível na era da informação?
Primeiro, as pessoas não funcionam racionalmente e sim a partir de emoções. As pesquisas mostram isso. As pessoas não veem o noticiário para se informar, mas para se confirmar. Não vão ler algo de outra orientação cultural, ideológica ou política. A segunda razão para esse comportamento é que vivemos em uma sociedade de informação desinformada. Temos mais informação do que nunca, mas a capacidade de processá-la e entendê-la depende da educação e ela, em geral, mas particularmente no Brasil, está em muito mau estado. E vai ficar pior, porque o próprio presidente acha que a educação não serve e vai cortar os investimentos na área.
• As universidades públicas e os professores brasileiros estão sob ataque por aqui?
Vocês estão vivendo um novo tipo de ditadura. As instituições estão preservadas, mas se manipulam tanto por poderes econômicos quanto ideológicos. O Brasil perdeu a influência da Igreja Católica, mas ganhou algo muito pior que são as igrejas evangélicas, para quem não importa a ciência e a educação, porque, quanto mais informadas estejam as pessoas, mais capacidade terão de resistir à doutrinação. O mesmo acontece com o presidente e com o regime que está instalando. Não se pode fazer uma ditadura antiga, que se imponha com o Exército, mas uma ditadura orwelliana, de ocupar as mentes. Esse tipo de ditadura só pode funcionar com um povo cada vez menos educado e mais submetido à manipulação ideológica.
• Como essa manipulação é exercida?
As redes sociais permitem a autonomia dos indivíduos, mas são usadas tanto pelos manipuladores como pelos jovens que tentam mudar o mundo. Foram desenvolvidas técnicas muito poderosas de desinformação, que incluem a utilização massiva de robôs, de forma que a construção coletiva do que ocorre na sociedade está totalmente dominada por movimentos totalitários. Por isso, atacam a educação, os professores, as universidades, as humanidades e as ciências sociais, que são áreas que nos permitem pensar. Tudo o que significa pensar é perigoso.
• O que as escolas brasileiras precisam ter para mudar a realidade do país?
Primeiro: recursos. Mesmo que haja mudanças na pedagogia, se não há recursos, se não pagam e não respeitam os professores e se não há menos alunos por classe, (não adianta). É preciso uma formação inicial melhor dos professores e também uma reciclagem contínua, sobretudo nas escolas mais longínquas do Brasil. Precisamos de bons professores imediatamente, não podemos esperar 20 anos para produzir os educadores que vão educar os jovens. E como fazer isso? Com educação virtual à distância. Precisamos reforçar as universidades virtuais. Estou na Universidade Aberta da Catalunha, que tem 65 mil estudantes 100% na internet, e funciona muito bem. Os estudantes de lá têm os mesmos diplomas que os demais e não há nenhuma diferença de qualidade e nem de mercado.
• Falando sobre a importância de valorizar o professor, atualmente o mais conhecido do país, Paulo Freire, está sendo alvo de ataques.
Isso significa que tudo que é criação de uma cidadania informada, educada e autônoma é um perigo para uma ditadura sutil, que precisa de pessoas que não sejam bem educadas, que sejam desinformadas e manipuláveis. Os três princípios de Paulo Freire são: aprender pela experiência — hoje em dia encontramos tudo na internet —, autonomia dos alunos para educar-se para buscar a informação e professores para guiá-los. Agora que temos tecnologia, não só internet, mas as conexões rápidas, é possível revolucionar facilmente a escola seguindo os princípios de Paulo Freire. Por que se ataca ele? Porque no mundo, e não só no Brasil, ele é um símbolo. Eu conheci Paulo Freire na Universidade Stanford (Estados Unidos) e lá ele era adorado, porque seus princípios são adaptados ao que é a nova sociedade: criar pessoas livres e autônomas, capazes de promover sua própria aprendizagem, guiadas por seus professores. Isso é muito perigoso para aqueles que querem manipular. Paulo Freire é liberdade, e a liberdade é agora o maior obstáculo que existe para que se siga desenvolvendo essa ditadura sutil que estão tentando impor ao Brasil.
• O governo anunciou recentemente que pretende criar mais de cem novas escolas militares. Qual sua opinião sobre essa iniciativa?
O que precisamos hoje é de pessoas educadas para pensar autonomamente, porque há uma quantidade de informação tão grande que precisamos ser autônomos em construir nossas opiniões e tomar decisões. As escolas não podem ser produtoras de robôs. (A formação de) gente que simplesmente obedece, segue o que está programado e aceita tudo é um princípio de militarização não só da escola, mas da sociedade. A grande questão do Brasil nesse momento é que, se não houver uma grande reação da sociedade contra essas medidas, o Brasil será transformado em uma sociedade totalitária.