Ao nos deixar no dia 19 de
outubro deste infausto 2020, Raimundo Santos, intelectual discreto e operoso,
extremamente fiel aos seus temas de eleição e às convicções de toda uma vida,
deixa um legado precioso de coerência, generosidade e solidariedade. Ele era um
daqueles intelectuais que se juntaram na revista Presença, nos anos 1980, aferrados ao patrimônio “eurocomunista” à
brasileira. Homens e mulheres diferentes entre si, com variada inserção na vida
política e acadêmica, mas reunidos pelo empenho de indagar como é que o seu
peculiar comunismo podia servir ao País, como é que se poria a serviço da
grande causa democrática, sem se perder em discussões doutrinárias tão ao gosto
de muitas correntes do marxismo e, inevitavelmente, do próprio PCB.
Tendo estudado Ciência Política
na Flacso (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais) e se doutorado na
Unam (Universidade Nacional Autônoma do México) ainda nos tempos do exílio,
Raimundo por quase dez anos seria professor da Universidade Federal da Paraíba
(em Campina Grande), transferindo-se depois para a Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro, especificamente para o CPDA (Programa de Pós-Graduação de
Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade).
No CPDA, a sala do Raimundo,
atulhada de livros e papéis de todo tipo – ele que, entre outras coisas, se
autointitulava um “revisteiro” e era um dos principais responsáveis pela
revista Estudos Sociedade &
Agricultura –, a sala do Raimundo, dizia, tinha na parede um retrato de
Ivan Ribeiro, precocemente falecido com o ministro da Agricultura, Marcos
Freire, em desastre de aviação. Ivan, outro professor do CPDA como ele, outro
singular comunista como todos nós, pouco afeito a proclamações revolucionárias
e mais envolvido na aposta de uma lenta e constante democratização dos
processos societais. Havia naquele retrato do Ivan, pendurado na salinha do
Raimundo, um sentido altíssimo de continuidade e de fidelidade, que se impunha
de modo forte, mas silencioso e sem afetação. Era preciso continuar o Ivan,
assim como se devia preservar/superar o legado de gente como Alberto Passos
Guimarães, Nelson Werneck Sodré e, em especial, Caio Prado Jr.
O velho Partidão havia passado e
se impunha aceitar realisticamente este fato. Organismos históricos nascem,
vivem e num certo momento perdem a razão de ser, não importa a marca que tenham
deixado em momentos críticos da História ou que esta mesma História não possa
ser contada sem eles. No entanto, para Raimundo o pecebismo sobrevivia ao partido e devia seguir de pé, inspirando a
ideia da centralidade da política, a
necessidade vital de fazer política
para além de rígidas demarcações classistas, mas sempre em benefício dos
setores subalternos que dependem essencialmente das formas democráticas para
ter condições dignas de vida material e espiritual. E o objetivo de fazer
sobreviver uma tradição toda atenta à política só poderia ser o de levar a
esquerda, ou a nossa parte da esquerda, a sair de guetos minoritários e a
participar plenamente da vida nacional, influenciando-a no sentido semelhante
àquele apontado, décadas a fio, por Caio Prado Jr. – a nacionalização da
economia e da sociedade, a internalização dos centros decisórios, o atendimento
das carências da maioria da população. Tudo isso num contexto de reformas
graduais e incessantes, a serem conduzidas dentro da legalidade e da ordem
constitucional, fora das quais, para Raimundo, pode até haver salvadores da
pátria, mas nunca salvação nem risorgimento
nacional.
O lema gramsciano, aqui, não é
por acaso. Raimundo era devotado leitor do famoso Caderno 19 do pensador sardo,
um caderno voltado para as vicissitudes da formação tardia da nação italiana,
conduzida, como se sabe, pelos conservadores do “partido cavouriano”. Por terem
uma consciência mais elaborada de si mesmos e de todos os demais atores, eram
capazes de se pôr à frente da unificação e, por isso mesmo, dirigir a ala
esquerda do movimento segundo os ditames da revolução
passiva – categoria sofisticadamente revista e atualizada por Gramsci, a
partir de processos de transformação frustrados total ou parcialmente, como foi
o caso do próprio Risorgimento. Para
Raimundo, no entanto, havia aqui uma preciosa sugestão inerente à possibilidade
de trocar o sinal daquele tipo de revolução, transformando-a de signo de
fraqueza das forças mudancistas em sabedoria tática e visão estratégica, em
capacidade de estabelecer “alianças pluriclassistas”, que, ao fim e ao cabo,
implicariam uma ideia bastante inovadora da mudança social contemporânea. O
socialismo, para usar a palavra incandescente, agora passaria a ser entendido
como “um processo desdramatizado de reforma da sociedade, que se construiria
numa dialética complexa e de muitas mediações entre gradualismo e ruptura, a
partir da plena aceitação da alternância no poder, em processos falibilísticos
de avanços e recuos” (Caio Prado Jr. na
cultura brasileira, Rio de Janeiro, 2001, p. 262). Se bem observarmos, nesta
e em muitas outras passagens o contido “marxismo da revolução passiva”
sustentado por nosso autor era, e ainda é, uma revolução copernicana muito
distante de ser plenamente entendida no campo progressista, que não raro se
atrapalha com caudilhos e miragens rupturistas.