domingo, 3 de maio de 2020

Opinião do dia – Hannah Arendt* - Preconceito

Qualquer discurso sobre política em nossa época devem começar pelos preconceitos que todos nós, que não somos políticos profissionais, temos contra a política. Nossos preconceitos comuns são, eles próprios, políticos em sentido amplo. Eles não provêm da arrogância dos ilustrados nem do cinismo dos que viram demais e compreenderam de menos. Uma vez que brotam no nosso próprio pensamento, não podemos ignora-los; e, dado que se referem a realidades inegáveis e refletem fielmente a nossa situação presente precisamente em seus aspectos políticos, não podemos silencia-los com argumentos. Tais preconceitos não são, porém, juízos. Eles indicam que nos deparamos com uma situação na qual não sabemos, pelo menos não ainda, conduzir-nos politicamente. O perigo é a política vir a desaparecer inteiramente do mundo. Os preconceitos invadem nosso pensamento; jogam o bebê fora junto com a água do banho, confundem a política com aquilo que levaria ao seu próprio fim e apresentam essa catástrofe como algo que é inerente à natureza das coisas e, portanto, inevitável.

*Hannah Arendt (1906-1975). “A promessa da política”, p.148. Difel, 2008.

Fernando Henrique Cardoso* - Não esquecer

- O Estado de S.Paulo / O Globo

Passada a tormenta, vê-se que o barco tem bons motores, apesar de maus navegantes

O tema é repetitivo e desafiador: o coronavírus. Procuro me afastar dele dia e noite, mas ele nos envolve. O vírus está por toda parte, principalmente em nossa alma. Meus pais tinham na memória a “gripe espanhola”. Quiseram de novo tachar o coronavírus como “vírus chinês”. Não pegou, e ainda bem. A propagação do vírus pelo mundo faz-me recordar a advertência do Antigo Testamento: “Pulvis est et in pulvis reverteris” - somos pó e a ele voltaremos. Diante da morte, somos todos iguais. O vírus não distingue gênero, idade, riqueza ou o que seja. Mata muitos e se não nos cuidarmos... Às vezes até mesmo nos cuidando.

Será que esta pandemia servirá para nos darmos conta disso? Sei bem que os humanos têm memória, mas também têm a capacidade de esquecer. Passada a crise, poucos se lembrarão dela. Mas suas marcas vão permanecer e delas devemos cuidar.

Na minha geração não se pode dizer: “Nunca vi tanto horror perante os céus”. Os terremotos matam indiscriminadamente. As guerras também. A bomba atômica dizimou centenas de milhares, e por aí vai. Isso não diminui o pavor diante do que está acontecendo e do que poderá acontecer. A situação obriga-nos a mais humildade e a reconhecer que a desigualdade faz os mais pobres pagarem o preço mais alto das tragédias pandêmicas.

O coronavírus chegou ao Brasil “de avião”. Pessoas das classes mais altas (quanto à renda) viajam mais. No começo foram as que se contaminaram. Agora se vê que é enorme a propagação do vírus nas periferias pobres, nos cortiços, nas comunidades urbanas que ontem chamávamos de favelas (desde a revolta de Canudos, quando os soldados regressavam das campanhas e se amontoavam no Morro da Favela, no Rio). O atendimento da saúde “não dá conta”.

É injusto cobrar só do SUS as falhas havidas. Não fosse ele, só os que podem pagar os serviços médicos e hospitalares seriam atendidos. Ele atende de modo universal. Mas é possível cobrar de quem decide o porquê de tanta “falta”: falta equipamento para os atendimentos, faltam luvas adequadas, faltam máquinas para ajudar a respirar, falta não sei o que mais. Contudo pelo menos há um sistema de saúde pública estruturado, mesmo carente. Na bonança é difícil prever as prioridades e haverá argumentos, até mesmo econômicos, para dizer: isso não é prioritário. E não é só no Brasil que se veem dificuldades no atendimento à saúde, basta olhar para Nova York. É preciso prever.

Míriam Leitão - Sem medo do impedimento

- O Globo

Bolsonaro tem desrespeitado a Constituição e atormentado o país no meio de uma pandemia. O impedimento precisa ser considerado

Jair Bolsonaro nunca foi contra a corrupção e nunca foi um democrata. Mas usou a bandeira que estava em alta e foi eleito dentro das regras da democracia. Os que acreditaram que ele era o melhor antídoto contra a corrupção escolheram o autoengano. Os que apostaram que ele respeitaria as instituições têm provas diárias de que erraram. A elite financeira que o abraçou, os mais escolarizados que foram para a rua por ele, o juiz-símbolo que o avalizou não podem mostrar surpresa. Na escala de valores de certos liberais, mais importante é a promessa de liberdade econômica do que a proteção dos direitos civis. Isso ficou claro na ditadura de Pinochet, quando o Chile enterrava seus mortos e os jovens de Chicago comemoravam o trabalho que faziam na economia.

A pior complicação é agora. Bolsonaro foi eleito na democracia, mas não a respeita e conspira contra ela diariamente. A crueldade extrema do presidente é escalar a tensão institucional quando o país atônito tenta se concentrar no que fazer diante da pandemia que ceifa milhares de vidas. Vivemos uma conjuntura em que o presidente da República torna muito maior o peso que recai sobre nós. Já não basta viver o que vivemos —fechados em casa, assustados, enlutados, hospitalizados —ainda é preciso tolerar um governante infernizando o cotidiano.

Bolsonaro disse que por pouco não houve uma crise institucional. E falou avisando que pode retornar ao confronto e passando a ideia de que só não descumpriu a ordem judicial porque decidiu dar uma segunda chance. O ataque que ele fez ao ministro Alexandre de Moraes foi explícito e ofensivo. O presidente deu um ultimato à Justiça. Depois, na transmissão da noite, disse que tinha feito apenas um desabafo sem ofender ninguém. As instituições brasileiras têm aceitado o desdito diante dos piores ditos. Assim, ele fica sempre impune. Para seus apoiadores ele aparece como vítima, aquele que não consegue governar porque o Supremo não deixa, o Congresso chantageia, a mídia persegue. Apresenta-se como aquele que luta contra “o sistema”. Tudo levando à conclusão de que para bem governar o presidente precisa de super poderes, de um AI-5, como pediram os manifestantes que ele apoiou. Essa é a única ideia na qual Bolsonaro acredita. Fortalecer o “quem manda sou eu”.

Vera Magalhães - O ‘e daí’ como política

- O Estado de S.Paulo

Ao agir como inimputável sem sê-lo, Bolsonaro banaliza as instituições e a vida

A Constituição diz que todos são iguais perante a lei e, assim, devem responder por seus atos, com exceção dos inimputáveis, que ela mesma trata de apontar. Os inimputáveis são considerados assim porque, no momento em que cometem alguma infração, são incapazes de discernir a gravidade de seus atos.

Jair Bolsonaro, desde o início de 2020, age como alguém que pretende alcançar a inimputabilidade. Alheio à forma como coloca em risco a saúde pública, num momento, e afronta as instituições democráticas, no seguinte, apela a uma narrativa em que se esquiva de responsabilidade pelos seus atos, aponta inimigos imaginários a justificar as próprias arbitrariedades e pede ao povo, o mesmo que coloca em risco, uma blindagem para as contenções de suas atitudes previstas na Constituição, e exercidas pelos demais Poderes, pela imprensa, pelo Ministério Público e pela sociedade civil organizada.

É o “e daí”, não por acaso uma das expressões mais repetidas pelo capitão, elevado à condição de política de Estado. Resta saber se esses mesmos agentes sobre os quais recai a missão de conter o presidente vão dar de ombros à pergunta cínica ou vão responder a Bolsonaro que “e daí o senhor não pode agir como está agindo”.

Merval Pereira - Insegurança institucional

- O Globo

Se o governo quiser, poderá ter uma base de dados que ninguém tem para campanhas políticas direcionadas

A dificuldade que o IBGE está encontrando para acessar os números telefônicos de brasileiros para realizar pesquisas não presenciais por causa da Covid-19 é devida a sermos um país com alto índice de crimes digitais e termos um governo inconfiável institucionalmente, que confunde órgãos de Estado com os de governo.

Prova disso é o decreto de outubro do ano passado que instituiu o Cadastro Base do Cidadão, que será uma “base integradora” de dados pessoais de todos os brasileiros, com o objetivo de regulamentar o compartilhamento de dados entre diversos órgãos do governo.

Houve polêmica à época, pois especialistas apontaram o perigo de termos vagos no decreto, abrindo caminho para a utilização sem controle de dados, e descumprimento da Lei Geral de Proteção de Dados que entrará em vigor em agosto deste ano.

Já existe no Congresso uma proposta para alterar o decreto governamental, dando segurança ao cidadão de que seus dados não serão utilizados indevidamente. O decreto não foi aprovado ainda devido à crise da Covid-19.

Eliane Cantanhêde - Fim do Mundo

- O Estado de S.Paulo

Brasil no epicentro da pandemia, Moro depondo, Bolsonaro e povo sem entender nada

O ex-chanceler alemão Helmut Schmidt, grande orador e um dos maiores estadistas do século 20, previu numa conferência do InterAction Council, fundação que reúne ex-chefes de Estado e de governo, em Xangai, em 1994, que o fim do mundo não seria por guerras e bombas, mas sim por uma doença desconhecida disseminada pelas migrações massivas. O Homo Sapiens surgiu de uma mutação genética e seria destruído por um vírus.

O relato é do ex-presidente José Sarney, que estava presente, ao lado de figuras lendárias como Henry Kissinger, Robert Mcnamara e o fundador de Cingapura, Lee Kuan Yew. Ao completar 90 anos, Sarney mantém íntegros a memória primorosa e o capricho ao contar histórias, uma característica dos maranhenses.

Quanto ao fim do próprio mundo não se sabe, e espera-se não saber tão cedo, mas a sensação é de fim do mundo no Brasil, que vai se transformando no novo epicentro da covid-19, com a economia e os empregos implodindo e uma crise política absurda. Em meio ao caos, o presidente da República e milhões de pessoas continuam sem entender nada.

As manchetes de sábado reproduziam a realidade. Estado: “Impeachment é a última opção”, segundo o ministro do STF Luís Roberto Barroso; “Ninguém vai querer dar um golpe em cima de mim”, declarava o presidente Jair Bolsonaro; “A incógnita Mourão nos bastidores do poder”, informava a Coluna do Estadão. Globo: “Brasil vira um dos polos globais da covid-19”. UOL: “Bolsonaro ameaça demitir ministro que não ceder cargos ao Centrão”.

O ex-ministro Sérgio Moro detalhava à PF e ao MP suas acusações ao presidente. Local: justamente a Superintendência da PF em Curitiba, onde o ex-presidente Lula ficou preso por 580 dias, condenado por Moro e pelo TRF-4 no caso do triplex do Guarujá. Alvo do depoimento: Bolsonaro, pivô da ação que pede ao STF o impedimento do ex-juiz nos processos de Lula. Moro condenou Lula e pode condenar Bolsonaro. Alvo da esquerda lulista, é agora também da direita bolsonarista.

José Roberto Mendonça de Barros* - Descendo a rampa

- O Estado de S. Paulo

O governo Bolsonaro caminhará para bater no muro por volta de agosto/setembro

Não bastassem os desafios trazidos pela pandemia e a recessão decorrente da parada súbita da vida econômica, o governo viveu desde meados do mês passado uma sucessão de eventos que resultaram num ponto de inflexão da atual gestão que, a meu ver, é irreversível.

No dia 16 de abril, o então ministro da Saúde, Mandetta, foi dispensado do cargo. Seu trabalho de enfrentamento do coronavírus estava sendo muito importante para o País, embora não fosse isento de críticas, como a pouca atenção dada à testagem em larga escala. Em consequência, sua popularidade subiu e começou a fazer sombra ao presidente, que com isso não conseguiu conviver. Aparentemente, o que dá certo não pode ser mantido. Seu sucessor está totalmente perdido.

No dia 22 de abril, o chefe da Casa Civil anunciou um plano de investimentos (Pró-Brasil) destinado a promover a volta do crescimento econômico a partir de obras de infraestrutura. Projetos de investimento público direto e concessões ao setor privado seriam elencados, sem uma articulação entre eles.

O anúncio, primariamente destinado a injetar ânimo na plateia, não encantou ninguém por um robusto conjunto de razões:

- O plano lembra duas tentativas semelhantes que acabaram por resultar em períodos muito ruins: o II PND e a década perdida dos anos 80; e o PAC do PT e a grande recessão de 2014/2016.

- A comparação com o Plano Marshall peca, naturalmente, pela notável ausência do Tesouro americano.

- O plano não menciona como o capital externo, ora em fuga do País, voltaria a fluir em grandes proporções.

- O plano não menciona como seria financiado: com novos impostos? Com emissões? Estourando o teto de gastos? Isso num momento em que as despesas necessárias para enfrentar a pandemia resultarão numa piora substancial de nossa posição fiscal. Mais ainda, passada a emergência, caberá uma correção nas prioridades de gasto, incluindo a saúde. Mais uma razão para que não abracemos um rumo que já se mostrou fracassado mais de uma vez.

- Finalmente, o plano foi desenvolvido e anunciado sem a participação do Ministério da Economia, que, claramente sinalizou sua contrariedade.

Luiz Carlos Azedo - A “gripezinha”

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Passou da hora de o presidente Bolsonaro ir a Manaus para ver o colapso do SUS. Os profissionais de saúde precisam de mais apoio e distanciamento social”

O biólogo e escritor britânico Richard Dawkins, professor emérito do New College da Universidade de Oxford — autor de O Gene Egoísta e Evolução, entre outras obras —, num comentário no Twitter, chama a atenção para um artigo da revista Science Magazine, da Associação Americana para Avanço da Ciência (AAAS), intitulado Como o coronavírus mata?, publicado no dia 17 deste mês. De autoria dos médicos Meredith Wadman, Jennifer Couzin-Frankel, Jocelyn Kaiser, Catherine Matacic, é um dos melhores textos sobre a pandemia, segundo Dawkins: “Se as pessoas na administração entenderem isso ou se importarem com isso, haveria um resultado melhor para a sociedade”, avalia.

Tratar desse assunto pode parecer chover no molhado, pois não se fala de outra coisa, mas o artigo realmente é muito bom. Ele faz um relato de como o novo coronavírus ataca o corpo humano e seus efeitos devastadores, “do cérebro aos pés”, ultrapassando o senso comum do diagnóstico de que é apenas uma síndrome resporatória aguda. “Pode atacar quase tudo no corpo, com consequências devastadoras”, segundo o cardiologista Harlan Krumholz, da Universidade de Yale e do Hospital Yale-New Haven, que lidera vários esforços para reunir dados clínicos sobre a Covid-19. “Sua ferocidade é de tirar o fôlego e é humilhante.”

O artigo corrobora o relato dos sobrevientes da doença e o testemunho dos médicos e de outros profissionais da saúde que atuam nas unidades de terapia intensiva aqui no Brasil. Muitas vezes esses últimos são duplamente derrotados: além de perderem pacientes, acabam adoecendo também e, em alguns casos, até morrem. Já passou da hora de o presidente Jair Bolsonaro ir a Manaus para ver o que é um colapso do Sistema Único de Saúde (SUS) em meio à pandemia e parar de falar bobagens sobre a “gripezinha”. Tudo o que os profissionais de saúde precisam neste momento dramático é de mais apoio (equipamentos de proteção, respiradores, medicamentos) e distanciamento social.

Ricardo Noblat - Porque Bolsonaro esconde os resultados dos exames de Covid-19

- Blog do Noblat | Veja

Um mentiroso compulsivo

Esgotou-se, ontem, o prazo de 48 horas dado pela juíza federal Ana Lúcia Petri Betto, da 14ª Vara Cível Federal de São Paulo, para que o presidente Jair Bolsonaro tornasse público os laudos com os resultados de todos os exames que fez para o novo coronavírus.

A mesma juíza, na semana anterior, havia dado um prazo de cinco dias que não foi cumprido pelo presidente. Para descumprir o segundo prazo, Bolsonaro entrou com uma ação no Tribunal Federal Regional da 3ª Região, em São Paulo.

E, ali, a desembargadora Mônica Autran Machado concedeu-lhe um terceiro prazo. Ele ganhou mais cinco dias. Segundo a desembargadora, esse será o tempo necessário para que a Justiça decida se existe não interesse público nos resultados dos exames.

Alega a defesa de Bolsonaro que tornar público os resultados seria uma invasão de sua privacidade. Que ele já disse que fez duas vezes testes para saber se fora infectado e que os resultados foram negativos. A palavra dele, portanto, seria suficiente.

Sem essa de zelo por sua privacidade e de confiança em sua palavra! Desde quando Bolsonaro se preocupou em defender sua privacidade? Mal terminou de ser operado depois da facada que levou em Juiz de Fora, seu corpo foi filmado e exposto na internet.

Pode-se ver o tamanho do corte que ele sofreu e detalhes da costura feita pelo cirurgião que o operou. Viu-se, também, o senador evangélico que rezava sobre seu corpo invocando as divindades para que o socorresem em hora tão difícil.

Vinicius Torres Freire - Brasil não vai tão mal na epidemia

- Folha de S. Paulo

Dado o tamanho da população, país tem menos mortes que Europa, mas situação desanda

O Brasil não vai tão mal no ranking mundial da pandemia de coronavírus, embora faça força para subir na tabela do morticínio. O horror é grande, mas há piores, quando as comparações são feitas de modo mais preciso. Não se trata de menosprezar as já mais de 6 mil mortes, mas de pensar melhor o ritmo da epidemia e o que se pode fazer a respeito.

Quarenta dias depois da décima vítima da Covid-19, o Brasil contava 23,6 mortes por milhão de habitantes. EUA, 66,8. Alemanha: 63,5. Itália: 254. Reino Unido: 298. Espanha: 363. Coreia: 3,6 mortes por milhão. Japão: 1,3. A Europa inteira: 62,4.

Como é fácil perceber, a comparação pondera o número de mortes pelo tamanho da população. Considera também o número de mortes em estágios similares da epidemia: dias equivalentes depois da décima morte. Um país pode ter mais ou menos mortes apenas porque está no início ou em fase mais tardia do espalhamento da doença.

Este exercício é baseado em trabalho de Pedro Hallal, epidemiologista e reitor da Universidade Federal de Pelotas. Hallal também coordena o primeiro estudo brasileiro que tenta estimar a taxa real de infecção por coronavírus no Brasil, por testes em amostras da população. Duas rodadas da pesquisa já foram realizadas no Rio Grande do Sul. O estudo nacional começa na semana que vem.

Persio Arida* – O trilhão, Zé com Zé e a conta salgada

- Folha de S. Paulo / Ilustríssima

[RESUMO] Uma vez que a dívida pública pode chegar a 100% do PIB neste ano, economista diz que o drama não é o patamar alto, mas a percepção de que ela poderia estar em rumo explosivo, sendo fundamental estabilizar tal relação.

Espero que o país saia desta crise o mais brevemente possível, com um senso maior de justiça e solidariedade e evitando a tragédia humana que decorreria da inação e da indiferença em relação à Covid-19. Espero que o custo social da crise seja relativamente pequeno. Espero que sejamos capazes de diferenciar os governantes responsáveis dos incapazes e malandros.

Esperanças à parte, o fato é que não sabemos como e quando a epidemia vai passar. A menos que haja um surpreendente avanço da ciência no curto prazo, teremos provavelmente repiques da infecção e quarentenas intermitentes. E passada a epidemia, além de todos os desafios econômicos e sociais que já existiam, um novo surgirá: a dívida pública será muito maior do que era.

Com exceção dos libertários adeptos do darwinismo social, ninguém discorda da necessidade de o governo sustentar a economia diante do extraordinário desafio que enfrentamos. Por razões humanitárias, devemos gastar o que for necessário na saúde e na rede de sustentação dos mais necessitados. Temos que evitar o desemprego em massa que decorreria de recuperações judiciais e falências, apoiando pequenas e médias empresas e setores específicos.

Há o apoio na forma de empréstimos com garantia do Tesouro, como o Brasil tem feito, e o apoio direto através de pagamentos a fundo perdido de parte substantiva da folha salarial, como em alguns outros países. A proporção entre pagamentos a fundo perdido e empréstimos com garantias do Tesouro varia de país para país, assim como o total da ajuda. Alguns países fazem mais e melhor que outros, mas no mundo todo os governos estão tendo que se endividar para sustentar suas economias.

No Brasil, a dívida pública deve aumentar de 75% do PIB em 2019 para cerca de 90% ao final deste ano. É um patamar inédito na nossa história. O salto decorre do aumento dos gastos públicos (mais dívida), mas também da recessão (menor PIB).

E a dívida pode facilmente chegar a 100% do PIB se pressões políticas tornarem os gastos emergenciais permanentes ou o governo cair na tentação de turbinar a economia para ganhar a eleição em 2022. A pergunta se impõe: qual nosso futuro com um grau de endividamento tão elevado?

Janio de Freitas – Na cabeça do poder

- Folha de S. Paulo

Bolsonaro tem se proclamado chefe supremo, mas é o STF que está com as chaves do poder

Bolsonaro piora. “Eu realmente sou a Constituição.” “Quem manda sou eu.” “Não é assim [decisão adversa do Supremo] que se trata o presidente.” “O chefe supremo sou eu.” A prepotência extravasa.

O pouco que havia de insegurança e perplexidade com sua transição, de desprezível figurante na Câmara ao quase repentino pouso na Presidência da República, cede a uma noção de poder exacerbada pelo desarranjo mental. Bolsonaro agiganta-se aos seus próprios olhos. Psicanalistas, psicólogos e psiquiatras sabiam dessa progressão.

As produções do desatino passaram de ocasionais a frequentes, daí a diárias, já são várias no mesmo dia. Bolsonaro está no ponto avançado em que confessou a criação de “uma quase crise institucional”. “Estivemos muito perto”, com sua pensada e contida reação ao veto, pelo Supremo, da entrega da Polícia Federal a um amigo dos seus filhos investigados. “Não engoli.” “Não engulo.”

Na mesma medida em que Bolsonaro avança no desvario, os níveis institucionais e os segmentos sociais menos desinformados arrefecem seu pasmo e suas inquietações com as atitudes tresloucadas de Bolsonaro. Passam a ser recebidas quase com naturalidade, satisfazendo-se os zeladores das instituições com a emissão de notinhas e declarações em três linhas, anódinas na intenção e no efeito. Deveriam vir de carimbos, para poupar trabalho inútil.

Elio Gaspari - A fila única para a Covid está na mesa

- Folha de S. Paulo / O Globo

Rede privada tem 15.898 leitos de UTIs, com ociosidade de 50%, e a rede pública tem 14.876 e está a um passo do colapso

O médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto defendeu a instituição de uma fila única para o atendimento de pacientes de Covid-19 em hospitais públicos e privados. Nas suas palavras:

“Dói, mas tem que fazer. Porque senão brasileiros pobres vão morrer e brasileiros ricos vão se salvar. Não tem cabimento isso”.

Ex-diretor da Agência de Vigilância Sanitária e ex-superintendente do Hospital Sírio-Libanês, Vecina tem autoridade para dizer o que disse. A fila única não é uma ideia só dele. Foi proposta no início de abril por grupos de estudo das universidades de São Paulo e Federal do Rio. Na quarta-feira, o presidente do Conselho Nacional de Saúde, Fernando Zasso Pigatto, enviou ao ministro Nelson Teich e aos secretários estaduais de Saúde sua Recomendação 26, para que assumam a coordenação “da alocação dos recursos assistenciais existentes, incluindo leitos hospitalares de propriedade de particulares, requisitando seu uso quando necessário, e regulando o acesso segundo as prioridades sanitárias de cada caso.”

Por quê? Porque a rede privada tem 15.898 leitos de UTIs, com ociosidade de 50%, e a rede pública tem 14.876 e está a um passo do colapso.

O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta (ex-diretor de uma Unimed) jamais tocou no assunto. Seu sucessor, Nelson Teich (cuja indicação para a pasta foi cabalada por agentes do baronato) também não. Depois da recomendação do Conselho, quatro guildas da medicina privada saíram do silêncio, condenaram a ideia e apresentaram quatro propostas alternativas. Uma delas, a testagem da população, é risível, e duas são dilatórias (a construção de hospitais de campanha e a publicação de editais para a contratação de leitos e serviços). A quarta vem a ser boa ideia: a revitalização de leitos públicos. Poderia ter sido oferecida em março.

Bruno Boghossian – O líder de carreata

- Folha de S. Paulo

Campanha delirante de Bolsonaro faz efeito e seguidores mudam de lado pelo fim do isolamento

Dias depois da primeira morte por coronavírus no país, três a cada quatro brasileiros concordavam com medidas de isolamento para reduzir a disseminação da doença. Entre os que aprovavam o desempenho de Jair Bolsonaro na crise, 75% também achavam que o governo deveria proibir as pessoas de saírem às ruas por algum tempo.

Naquela segunda quinzena de março, apoiadores de Bolsonaro enxergavam a pandemia mais ou menos como o restante da população, segundo o Datafolha. Metade deles achava que haveria poucas vítimas, mas a maior parte considerava o vírus um problema muito sério. Então, o presidente decidiu atrapalhar.

As últimas pesquisas mostram que, embora a maioria da população ainda apoie o isolamento, os bolsonaristas passaram a se mover rapidamente em sentido contrário.

Não foi por acaso. Nos últimos 40 dias, Bolsonaro reforçou sua cruzada contra as restrições impostas por governadores e prefeitos. No fim de março, ele fez o pronunciamento delirante na TV em que chamava a doença de resfriadinho. Depois, o governo encomendou uma campanha publicitária para incentivar a volta ao trabalho no meio da pandemia.

Hélio Schwartsman - Podemos usar cobaias humanas?

- Folha de S. Paulo

Instituições podem beneficiar-se do risco assumido por indivíduos?

Até onde vai a autonomia das pessoas? Qual o nível de perigo que cada um de nós está autorizado a correr? Instituições podem beneficiar-se do risco assumido por indivíduos?

Ainda não temos uma vacina contra a Covid-19, mas estão em curso várias iniciativas para desenvolvê-la.

Fala-se, não sem uma boa dose de otimismo, em um ano e meio até que uma esteja disponível. O ponto central aqui é que, em tese, seria possível reduzir em vários meses o tempo de testes da vacina se permitirmos que voluntários que a tenham tomado se inoculem de propósito com o vírus para descobrir rapidamente se o imunizante de fato funciona. É ético fazê-lo?

No plano individual, não penso que haja muito espaço para dúvida. Se eu posso tentar escalar o Everest, por que não poderia correr um risco menor participando de um experimento em que me contaminasse propositalmente com o Sars-CoV-2? No primeiro caso, eu atenderia apenas a meu ego alpinístico, no segundo, estaria prestando um serviço à humanidade.

Ruy Castro* - Do riso à revolta

- Folha de S. Paulo

Uma maravilha da literatura de humor se torna o 'Eu Acuso' de Émile Zola

Entre as atividades de Marty Konigsberg, proeminente cidadão do Brooklyn, em Nova York, nos anos 40, estavam vender palpites para lutas "arranjadas" e receptar objetos, digamos, roubados. Ninguém ficou rico por sua causa, porque ele só trabalhava com lutadores de quinta, mas um dos objetos —uma máquina de escrever Underwood, que ele levou por dois dólares e deu a seu garoto— teve um nobre destino. Dela saíram os primeiros textos, frases e roteiros de Woody Allen.

Esta é uma das histórias contadas por Woody em sua autobiografia recém-lançada, "Apropos of Nothing" —a respeito de nada. O título é enganador. Em suas 288 páginas, Woody fala de tudo e se dedica, inclusive, a uma autodepreciação em regra, impensável para as plateias que seus filmes seduziram nos últimos 50 anos.

Woody zomba de sua imagem de "intelectual" —que atribui ao fato de usar óculos— e cita uma longa lista de livros que, até em seu prejuízo, nunca leu. Em jovem, por exemplo, a garota que ele queria namorar insistia em citar um sujeito chamado Stendhal, enquanto ele só queria falar das bochechas de "Cuddles".

Antônio Claudio Mariz de Oliveira e Fábio Tofic* - Há crime quando não há ética nem há política

- O Estado de S.Paulo

O rancor, a arrogância e a prepotência podem se transformar em fatores criminógenos

O direito penal nunca deixou de ser assunto na vida nacional, mas de uns anos para cá assumiu um protagonismo fora do normal. Restrito antigamente às páginas policiais ou lembrado vez ou outra em algum evento da política, nos últimos anos roubou a cena, de modo que não há dia em que ao menos uma grande manchete do caderno de política não seja sobre crime, acusações, inquéritos, sentenças, etc...

A pandemia de covid-19 parecia que ia pôr um fim ao penal-centrismo, com forte viés punitivo, a que o País vinha assistindo. No entanto, o direito penal no Brasil parece predestinado a ocupar lugar de destaque mesmo em momentos excepcionais como este que vivemos.

Primeiro foi o próprio Executivo federal criando polêmica com a edição de portarias que anunciavam risco de prisão a quem descumprisse regras de isolamento e quarentena, prisões que até chegaram a ser feitas, como noticiado pela mídia.

Foi, porém, o pronunciamento do ex-ministro Sergio Moro, ao anunciar sua saída do governo, o responsável por trazer de volta, e a galope, o direito penal para o centro do debate político nacional.

Moro desfiou um rosário de crimes que podem ter sido cometidos pelo presidente da República, desde falsidade ideológica até corrupção, prevaricação, passando ainda pelo novato crime de obstrução de Justiça. A fala cifrada do ex-ministro põe suspeitas até sobre sua própria conduta, como no caso de ter admitido que solicitou ao presidente a edição de uma lei que, em caso de atentado, pudesse garantir alguma salvaguarda financeira à sua família.

Joaquim Falcão* - ‘Eu sou realmente a Constituição’

- O Globo

Quando Bolsonaro interfere através da PF, está, em cascata, interferindo no próprio Supremo

No dia seguinte ao seu discurso em frente ao Quartel do Exército, para um grupo, o presidente Bolsonaro justificou-se: “Eu sou, realmente, a Constituição.”

Não é, evidentemente. Nem precisa explicar.

O importante é ter revelado um drama psíquico-político. Quase shakespeariano. Como me manter constitucionalmente no cargo, não sendo eu a Constituição? Com constituição alheia? A Constituição são os outros.

Já foi dito. Não basta ser eleito constitucionalmente. É preciso se manter constitucionalmente.

Cerca de 30% da opinião pública parecem preferir Bolsonaro como Constituição.

Mas o Supremo discorda.

Alexandre de Moraes e Celso de Mello lideram a defesa da Constituição em vigor. Moraes proibiu que a Polícia Federal lhe retirasse os delegados que trabalham diretamente com ele em inquéritos. Limitou. Proibiu a posse do delegado Ramagem como chefe da Polícia Federal. Limitou.

Celso de Mello aceitou a denúncia contra Jair Bolsonaro. Limitou. E mais. Para que não houvesse demora nas investigações e coleta de provas, determinou a ouvida de Sergio Moro em apenas cinco dias. Limitou outra vez.

No direito processual, o prazo pode ser o senhor da Justiça. Não há que se correr riscos.

A Constituição de Bolsonaro reage. Permite-lhe atacar o Supremo e a democracia com ameaças de crise constitucional. Acusa de interferência política a proibição de Moraes da posse de Ramagem.

Bernardo Mello Franco - Ruy Fausto via longe

- O Globo

Morto na sexta, o filósofo Ruy Fausto definia Bolsonaro como “autoritário” e “obscurantista”. “Nunca se mentiu e se enganou tanto no Brasil”, escreveu

Primeiro de Maio levou o filósofo Ruy Fausto. Professor emérito da USP, ele era um exemplo de intelectual público. Participava ativamente do debate brasileiro, sem fazer concessões para agradar torcidas.

Homem de esquerda, Fausto teceu duras críticas ao PT na eleição de 2018. Ao mesmo tempo, advertiu que a vitória de Jair Bolsonaro daria início a um “período de trevas” no país.

Para ele, o triunfo do bolsonarismo não representaria uma alternância normal de poder. “É um fenômeno que se aparenta aos populismos de extrema direita que vicejam pelo mundo. São movimentos neoliberais e antidemocráticos”, definiu, em entrevista à “Época” antes do segundo turno.

Entre a eleição e aposse, Fausto antecipou que Bolsonaro atacaria as universidades, a imprensa e o Judiciário. “Não se deve dar ouvidos aos ‘cientistas políticos’ que nos garantem que as instituições brasileiras são ‘sólidas’. Hoje, menos do que destruir as instituições, os inimigos da democracia as ocupam e as cristalizam em seu proveito”, afirmou, na “Folha de S.Paulo”.

Ivan Alves Filho* - A contribuição do PCB à vida brasileira

O ano de 1922 foi central para o entendimento do Brasil. Nele tivemos a Semana de Arte Moderna, o surgimento das reivindicações feministas, a formação do Centro Dom Vital, o início do que se convencionaria denominar por Tenentismo e, ainda, a criação da Seção Brasileira da Internacional Comunista. Um ano de cortar o fôlego. Provavelmente, o centenário da Independência obrigou o país a se repensar.

O Partido Comunista surgia como uma agremiação ao mesmo tempo nacional, isto é, buscando o enraizamento no país, e internacional, na esteira dos acontecimentos que sacudiam a Rússia em 1917.

Foi o único partido comunista no mundo saído diretamente do movimento anarquista.

O enraizamento interno tinha que ver com sua condição de partido da classe trabalhadora. Mas, rapidamente, já no final dos anos 20, o Partido percebia que não poderia praticar uma política de classe contra classe. O Brasil se diversificava, apresentando uma conformação social mais sofisticada e complexa. Ao lado da classe operária e do campesinato despontava uma nova camada, composta pelos setores médios. Eis o que abria a via para o diálogo com intelectuais e militares, por exemplo. Astrojildo Pereira foi o grande artífice dessa primeira grande mudança.

Outras viriam tão profundas quanto essa. Após atravessar a repressão do Estado Novo de Vargas e as vicissitudes da chamada Guerra Fria, os comunistas do PCB mudam novamente, acrescentando a seu ideário a questão democrática. Isso se deu com a Declaração de Março de 1958. Não por acaso, seu principal redator seria Armênio Guedes, o dirigente mais próximo de Astrojildo e de Giocondo Dias. Foi com esse espírito que o PCB evitou o esfacelamento por ocasião da ditadura militar. Apostando na aliança com os liberais e na luta de massas, o Partido apontou o caminho, jogando suas fichas na derrota e não na derrubada do regime. A História daria razão ao PCB.

Surgido no bojo das batalhas travadas pela Rússia Soviética, o PCB passaria por nova transformação após o esgotamento do chamado socialismo real, em 1991. Sabendo tirar as lições do fim da União Soviética e do processo iniciado em 1917, os comunistas brasileiros mudam o nome do partido e abandonam seu símbolo, a foice e o martelo. Mudaram o partido e não de Partido. Nascia o PPS em 1992. Ou seja, souberam preservar suas partes vivas, a saber a ética, a democracia e a noção de justiça social. Essa a maior herança do comunismo brasileiro. Mais do que qualquer outro partido, o PCB organizou o mundo do trabalho contra o grande capital, lutou pela cultura nacional e integrou o bom combate pela democracia. Este o seu grande legado.

Hoje, mais uma mudança. Surge, em cena, o Cidadania23. Se antes era soviets mais eletrificação, atualmente é Democracia mais automação. Em tempos de profundas alterações no aparato produtivo e no modo de vida das pessoas, o PPS estabeleceria vínculos com os movimentos surgidos nas ruas, em 2013, e nas redes sociais ativadas em computadores e celulares. Muitos eram de corte liberal. O Partido entendeu que o liberalismo político era uma conquista do processo civilizatório, afirmando o papel do indivíduo perante o Estado, o que não entrava em contradição com os direitos sociais que os comunistas sempre defenderam.

O que a mídia pensa - Editoriais

• Sérias decisões a serem tomadas nesta crise – Editorial | O Globo

Os políticos e a sociedade aceitam manter o Brasil da mesma forma como este que o vírus expõe?

A crise excita o espírito populista que existe no Congresso. Se ele é sempre avesso a fazer contas, neste momento a aversão aumenta e se mistura com a louvável mas desinformada intenção de se fazer “justiça social” não importa como, e que vai na contramão da lógica, por vias que estrangulam a única fonte de geração de empregos em uma situação como esta, a empresa privada. São feitas propostas que podem ser bem-intencionadas, como “empréstimo compulsório” e aumento da carga tributária sobre as pessoas jurídicas, mas justo quando as empresas veem seus caixas se esgotarem na queda em parafuso das receitas dragadas pela recessão. Não faz sentido.

O mergulho na recessão, com o fechamento de empresas, aumento de desemprego e toda uma série de malefícios que estrangulam também os cofres públicos, causa uma corrida no setor público em busca de novas receitas — mesmo que a base a ser taxada por aumento de impostos ou novos gravames esteja sendo estreitada pela redução da renda e da receita de pessoas físicas e jurídicas. Com o estrangulamento desta fonte de receitas do Estado, repete-se a piada do cavalo acostumado pelo dono a comer cada vez menos, até que um dia morre. Dentro da tradição nacional, não se fala em corte de gastos para ajudar no reequilíbrio das finanças públicas.

Música | Teresa Cristina - As forças da Natureza (João Nogueira)

Poesia | Fernando Pessoa - Pecado original

Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?
Será essa, se alguém a escrever,
A verdadeira história da humanidade.

O que há é só o mundo verdadeiro, não é nós, só o mundo;
O que não há somos nós, e a verdade está aí.

Sou quem falhei ser.
Somos todos quem nos supusemos.
A nossa realidade é o que não conseguimos nunca.

Que é daquela nossa verdade — o sonho à janela da infância?
Que é daquela nossa certeza — o propósito a mesa de depois?

Medito, a cabeça curvada contra as mãos sobrepostas
Sobre o parapeito alto da janela de sacada,
Sentado de lado numa cadeira, depois de jantar.

Que é da minha realidade, que só tenho a vida?
Que é de mim, que sou só quem existo?

Quantos Césares fui!

Na alma, e com alguma verdade;
Na imaginação, e com alguma justiça;
Na inteligência, e com alguma razão —
Meu Deus! meu Deus! meu Deus!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!