O ATIVISMO JUDICIAL MAL COMPREENDIDO
Luiz Werneck Vianna
Faz tempo que a afirmação do Poder Judiciário na cena política brasileira não é mais objeto de controvérsia, fato reconhecido por analistas de diversas procedências ideológicas e pelos partidos políticos. Nada mais natural, uma vez que a Carta de 1988 definiu este Poder como um lugar estratégico a fim de que os princípios e os direitos fundamentais nela previstos ganhassem condições de eficácia, impondo inclusive limites à expressão da vontade majoritária quando viesse desalinhada da vontade geral consubstanciada no seu texto.
A chamada judicialização da política deve sua origem tanto ao legislador constituinte quanto à cidadania que, progressivamente, foi se apropriando, em suas práticas, dos novos institutos criados pela Carta, e não, como em outros contextos nacionais, pelo ativismo dos seus magistrados. Aqui, por várias razões, entre as quais o peso de uma formação positivista na cultura jurídica dos juízes, a judicialização da política encontrou mais resistência do que adesão, do que é exemplo mais forte o destino do mandado de injunção, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) converteu em letra morta.
Nesse sentido, a origem da judicialização da política deve ser buscada, de um lado, na iniciativa do legislador, e, de outro, nas demandas da cidadania no sentido de encontrar proteção dos seus direitos contra o Estado e as empresas. A origem de um processo social, porém, não contém em si todas as possibilidades do desenvolvimento da sua trajetória, sujeito, no seu curso, a muitas outras influências. Assim com os juízes — de início estranhos à nova institucionalidade, quando não refratários a ela —, que, com as transformações geracionais produzidas em seu corpus, com a emergência de uma nova bibliografia, e, talvez sobretudo, diante da crise do sistema da representação política, passam a se orientar pela filosofia política expressa na Constituição que pressupõe um Judiciário, na medida em que compreendido a serviço do ideal da igual liberdade, como instrumento de concretização dos direitos fundamentais.
A adesão a esta orientação, que se generaliza na corporação, não deve ser identificada a um ativismo judicial que ignore as fronteiras que apartam o juiz do político, e que pretenda, em nome do justo e da salvação pública, investir a Justiça do papel de um legislador providencial. A judicialização da política não deriva de um eventual sistema de orientação dos juízes, mas da nova trama institucional trazida pela moderna sociedade capitalista, que pôs o direito, seus procedimentos e instituições no centro da vida pública, e, neste preciso sentido, ela já é parte constitutiva das democracias contemporâneas.
Instituir o juiz como legislador, tal como, na prática, significa a pretensão dos Tribunais Eleitorais de recusarem registro a candidaturas a cargos eletivos sem base na lei, e apenas em nome do princípio da moralidade, é contrapor o justo ao direito. Quem e como se definir um candidato de “ficha suja”, e, como tal, sem direito a concorrer às eleições? Cada caso será um caso, examinado na ausência de qualquer regra prévia? Mas o juiz não será livre, nem livre e responsável, pontua com lucidez J. Derrida, “se não se referir a nenhum direito, a nenhuma regra ou se, por não considerar nenhuma regra como dada para além da sua interpretação, ele suspender sua decisão, detiver-se no indecidível ou então improvisar, fora de qualquer regra e de qualquer princípio” (Força da lei. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 45).
Na ausência de regras, a relevância do atual movimento de importantes setores da magistratura, contando com a presença da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), que visa interditar a via eleitoral para candidatos de “ficha suja” — em si, um objetivo legítimo por critérios éticos e de moralidade pública —, ao insistir apenas no caminho judicial, perde de vista as amplas possibilidades que se apresentam aos seus propósitos na sociedade civil e na esfera pública, especialmente na arena parlamentar.
A opção pela via do ativismo judicial diante de oportunidades reais para a consecução do mesmo objetivo no campo da política institucionalizada não consiste em uma boa alternativa. Longe de ampliar apoios e alianças para os fins perseguidos pode, muito contrariamente, indispor contra eles, em razão do meio utilizado, o sistema político e seus principais personagens, e, ainda pior, tornar vulnerável a arquitetura constitucional que reservou ao Judiciário um papel saliente para a concretização dos direitos fundamentais.
O ativismo judicial, quando bem compreendido, estimula a emergência de institucionalidades vigorosas e democráticas e reforça a estabilização da nossa criativa arquitetura constitucional. Quando mal compreendido, entretanto, este ativismo é sempre propício à denúncia de um governo de juízes, de uma justiça de salvação, referida casuisticamente aos aspectos materiais em cada questão a ser julgada. Mal compreendido leva a concepções de uma justiça que abdica da defesa da integridade do Direito, tal como a conceituam, na esteira de Dworkin, Nonet e Selznick, e se torna, mesmo que em nome das melhores intenções, um instrumento do seu derruimento.
Rio, 14 de agosto de 2008.
Luiz Werneck Vianna
Faz tempo que a afirmação do Poder Judiciário na cena política brasileira não é mais objeto de controvérsia, fato reconhecido por analistas de diversas procedências ideológicas e pelos partidos políticos. Nada mais natural, uma vez que a Carta de 1988 definiu este Poder como um lugar estratégico a fim de que os princípios e os direitos fundamentais nela previstos ganhassem condições de eficácia, impondo inclusive limites à expressão da vontade majoritária quando viesse desalinhada da vontade geral consubstanciada no seu texto.
A chamada judicialização da política deve sua origem tanto ao legislador constituinte quanto à cidadania que, progressivamente, foi se apropriando, em suas práticas, dos novos institutos criados pela Carta, e não, como em outros contextos nacionais, pelo ativismo dos seus magistrados. Aqui, por várias razões, entre as quais o peso de uma formação positivista na cultura jurídica dos juízes, a judicialização da política encontrou mais resistência do que adesão, do que é exemplo mais forte o destino do mandado de injunção, que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) converteu em letra morta.
Nesse sentido, a origem da judicialização da política deve ser buscada, de um lado, na iniciativa do legislador, e, de outro, nas demandas da cidadania no sentido de encontrar proteção dos seus direitos contra o Estado e as empresas. A origem de um processo social, porém, não contém em si todas as possibilidades do desenvolvimento da sua trajetória, sujeito, no seu curso, a muitas outras influências. Assim com os juízes — de início estranhos à nova institucionalidade, quando não refratários a ela —, que, com as transformações geracionais produzidas em seu corpus, com a emergência de uma nova bibliografia, e, talvez sobretudo, diante da crise do sistema da representação política, passam a se orientar pela filosofia política expressa na Constituição que pressupõe um Judiciário, na medida em que compreendido a serviço do ideal da igual liberdade, como instrumento de concretização dos direitos fundamentais.
A adesão a esta orientação, que se generaliza na corporação, não deve ser identificada a um ativismo judicial que ignore as fronteiras que apartam o juiz do político, e que pretenda, em nome do justo e da salvação pública, investir a Justiça do papel de um legislador providencial. A judicialização da política não deriva de um eventual sistema de orientação dos juízes, mas da nova trama institucional trazida pela moderna sociedade capitalista, que pôs o direito, seus procedimentos e instituições no centro da vida pública, e, neste preciso sentido, ela já é parte constitutiva das democracias contemporâneas.
Instituir o juiz como legislador, tal como, na prática, significa a pretensão dos Tribunais Eleitorais de recusarem registro a candidaturas a cargos eletivos sem base na lei, e apenas em nome do princípio da moralidade, é contrapor o justo ao direito. Quem e como se definir um candidato de “ficha suja”, e, como tal, sem direito a concorrer às eleições? Cada caso será um caso, examinado na ausência de qualquer regra prévia? Mas o juiz não será livre, nem livre e responsável, pontua com lucidez J. Derrida, “se não se referir a nenhum direito, a nenhuma regra ou se, por não considerar nenhuma regra como dada para além da sua interpretação, ele suspender sua decisão, detiver-se no indecidível ou então improvisar, fora de qualquer regra e de qualquer princípio” (Força da lei. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 45).
Na ausência de regras, a relevância do atual movimento de importantes setores da magistratura, contando com a presença da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), que visa interditar a via eleitoral para candidatos de “ficha suja” — em si, um objetivo legítimo por critérios éticos e de moralidade pública —, ao insistir apenas no caminho judicial, perde de vista as amplas possibilidades que se apresentam aos seus propósitos na sociedade civil e na esfera pública, especialmente na arena parlamentar.
A opção pela via do ativismo judicial diante de oportunidades reais para a consecução do mesmo objetivo no campo da política institucionalizada não consiste em uma boa alternativa. Longe de ampliar apoios e alianças para os fins perseguidos pode, muito contrariamente, indispor contra eles, em razão do meio utilizado, o sistema político e seus principais personagens, e, ainda pior, tornar vulnerável a arquitetura constitucional que reservou ao Judiciário um papel saliente para a concretização dos direitos fundamentais.
O ativismo judicial, quando bem compreendido, estimula a emergência de institucionalidades vigorosas e democráticas e reforça a estabilização da nossa criativa arquitetura constitucional. Quando mal compreendido, entretanto, este ativismo é sempre propício à denúncia de um governo de juízes, de uma justiça de salvação, referida casuisticamente aos aspectos materiais em cada questão a ser julgada. Mal compreendido leva a concepções de uma justiça que abdica da defesa da integridade do Direito, tal como a conceituam, na esteira de Dworkin, Nonet e Selznick, e se torna, mesmo que em nome das melhores intenções, um instrumento do seu derruimento.
Rio, 14 de agosto de 2008.