sábado, 8 de maio de 2021

Opinião do dia – Fernando Henrique Cardoso*

Escrevi “nossos valores”. Quais? Há alguns conflitantes e essa é a beleza do jogo democrático: não se sabe de antemão se a escolha foi boa, mas tem-se a certeza de que haverá chance de refazê-la. Desde que a maioria mude de opinião. Convém, portanto, não apenas aceitar resultados eleitorais, mas propor alternativas. É esta a fase em que estamos: os arreganhos de uns e outros deixam entrever que há vários caminhos. É hora para os candidatos se apresentarem e dizer o que propõem. E me refiro aos candidatos de diversos partidos. Além de que, como se sabe, há mais de um candidato em alguns partidos.

Que pelo menos se comprometam a respeitar o jogo democrático; se ocupem de defender nossos interesses, como povo e como cultura; e tenham a capacidade de decidir, qualidade que é indispensável nos regimes presidencialistas. Talvez esta seja a crítica mais geral que se possa fazer a quem ganhou as últimas eleições. Têm-se a impressão de que o eleito foi “uma família”, e não seu chefe. E que este às vezes se cerca mal. E talvez fique, em certos momentos, menor do que a cadeira que ocupa.

Se dentre os candidatos houver um ou dois capazes de cumprir esses requisitos, o barco retornará a andar. O País, nesse sentido, é mesmo grande: é só mostrar o rumo que ele caminha. Isso, se não serve de consolação, pelo menos explica como foi possível chegar aonde chegamos. Com muitas mazelas, é certo, mas caminhando para melhorar as condições de vida. Por enquanto, não de todos, mas talvez de boa parte. Está passando da hora de querer que seja pelo menos a condição de vida da maioria. E venha quem vier, se não enveredar pelo caminho do crescimento econômico e de mais renda para muitos, que encontre, se não a oposição – que seria salutar –, pelo menos o desprezo da maioria.

*Sociólogo, foi presidente da República. ‘Hora de decisão’, O Globo/O Estado de S. Paulo, 2/5/2021.

Sérgio Augusto* - 8 de maio, 1945

- O Estado de S. Paulo

Os alemães acabaram sendo os primeiros a anunciar o fim da guerra pelo rádio

O melhor e mais festivo 8 de maio de todos os tempos foi aquele que em 1945 selou o fim da 2ª Guerra Mundial. É a segunda data histórica mais cultuada aqui em casa. A primeira ainda é o 6 de junho de 1944, o D-Day, dia do desembarque das tropas aliadas na Normandia, prelúdio da libertação de Paris e da tomada de Berlim pelo exército soviético, o xeque-mate no Reich nazi-fascista. 

Como não há a menor chance de anunciarem a derrocada da covid-19 e o fim da pandemia nas próximas horas, o 8 de maio a ser hoje celebrado é, mesmo, o de 76 anos atrás. Óbvio que só sei como ele foi pelos relatos que li e ouvi. 

De leitura, minha última fonte foi Year Zero: A History of 1945, de Ian Buruma, editado em 2014 pela Penguin. Mas há outro livro, muito bom, em cujas 470 páginas já cisquei várias vezes: The Day the War Ended, May 8, 1945, de Martin Gilbert (Henry Holt & Company, 1995), que retrata como o fim do conflito foi recebido em todos os países nele mais diretamente envolvidos. 

À cata de uma pauta para esta coluna, fiquei em dúvida entre abordar a CPI do Genocídio e falar de Anitta – não o vermífugo receitado pelo negacionismo como outro “santo remédio” contra a covid, mas a cantora e sua The Girl From Rio, que, diga-se, só fui conhecer depois que o correspondente da Associated Press me procurou para comparar as duas garotas, a de Ipanema e a do Piscinão de Ramos. Resultado: acabei empacado em outra encruzilhada, indeciso entre a revogação da Lei de Segurança Nacional e os 76 anos do dia mais feliz do século passado.

João Gabriel de Lima - Uma razão para ter orgulho do Brasil

- O Estado de S. Paulo

A semente da ‘espiral positiva’ germinou seis anos depois, com o Acordo de Paris

Uma ideia que ajudou a mudar o mundo nasceu, como algumas canções da bossa-nova, em guardanapos de papel. Era o ano de 2009 e almoçavam, em Brasília, a secretária nacional de Mudança Climática, Suzana Kahn Ribeiro, e o ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc. O assunto: o que o Brasil poderia sugerir na COP 15, a Conferência do Clima de Copenhague? Suzana rabiscou um esquema no guardanapo. Nascia a “espiral positiva”. 

A ideia era simples. Suzana e Carlos achavam que o Brasil deveria propor, unilateralmente, a redução de suas emissões de carbono. Mais: fixar metas concretas. Ainda mais: expor-se ao escrutínio internacional, abrindo seus números. Houve resistências dentro do governo, cujo discurso – recorrente entre os caramurus à esquerda e à direita – era cheio de “não podemos abrir mão de nossa soberania” e “eles devastaram suas próprias florestas, não se metam com a nossa”.

Oscar Vilhena Vieira* - A exceção como regra

- Folha de S. Paulo

O que a imagem de corpos pretos ensanguentados reforça é a realidade bruta de que a lei não é para todos

Ao nomear como “Exceptis” a operação que invadiu a comunidade de Jacarezinho, na capital fluminense, na última quita feira (6), o governo já deixava claro que a lei não condicionaria a ação dos seus agentes, antecipando o que se converteu numa das maiores chacinas no do Estado do Rio de Janeiro nas últimas décadas.

O fato é que o ideal civilizatório de que todas as pessoas e, em especial, os agentes públicos (civis e militares) devem pautar as suas condutas pela legalidade jamais se consolidou no Brasil. Certamente, os dois regimes de exceção, fundados na ruptura da ordem constitucional, exercidos por meio do arbítrio e coroados pela impunidade daqueles que cometeram crimes contra a humanidade, não contribuíram para fortalecer, em nossa acidentada história republicana, a noção básica de império da lei.

A incompletude do estado de direito no Brasil transcende, porém, os regimes propriamente autoritários. A profunda e persistente desigualdade, o racismo estrutural e a forte hierarquização social têm se demonstrado obstáculos intransponíveis para que todas as pessoas sejam reconhecidas como sujeitos de direitos e, portanto, tratadas como igual respeito e consideração.

Demétrio Magnoli - A democracia não milita

- Folha de S. Paulo

Lei do Estado democrático deve se circunscrever à ação violenta contra as instituições

Câmara revogou a Lei de Segurança Nacional, com módico atraso de 32 anos. No seu lugar, aprovou uma Lei do Estado Democrático que flerta, aqui e ali, com a criminalização da opinião política. Paira no ar o perigoso conceito de democracia militante.

A LSN já vai tarde. Bolsonaro e seu assecla André Mendonça a invocam, dia sim e outro também, para tentar intimidar críticos do governo. Mas, como o Bombril, a lei da ditadura tem mil e uma utilidades: o STF também achou conveniente brandi-la quando inaugurou o infindável inquérito das fake news. No percurso, diante do arruaceiro deputado Daniel Silveira, enfiou numa sacola única o elogio retórico do AI-5 e os crimes de incitação à violência e ameaça. Ao redigir a Lei do Estado Democrático, a Câmara avaliza a manobra dos supremos juízes.

“A Constituição não permite a propagação de ideias contrárias ao Estado democrático”, escreveu o STF ao tornar réu o parlamentar bolsonarista. Falso! Nada, na Carta de 1988, proíbe defender ideias autoritárias. Silveira tem o direito de elogiar o regime militar e suas leis, assim como comunistas da velha estirpe estão cobertos pelo princípio da liberdade de expressão ao propor a substituição do Congresso pelos sovietes. O que é proibido, para um como para os outros, é cruzar o limite entre a palavra e a ação.

Cristina Serra - Cortina de sangue no Rio

- Folha de S. Paulo

É assustador que parcela numerosa da sociedade aplauda a explosão de brutalidade

Na linguagem miliciana, foram 28 CPFs cancelados. Wilson Witzel já prometera atirar na "cabecinha". Seu substituto deve ter achado pouco. Menos de uma semana após assumir definitivamente o cargo, Cláudio Castro disse a que veio. Sob sua autoridade, uma operação policial resultou no maior banho de sangue já visto no Rio de Janeiro.

O estado tem histórico tenebroso de chacinas impunes, tanto aquelas produzidas por grupos de extermínio formados por policiais como as que decorrem de ações oficiais, supostamente para combater o tráfico, como agora na favela do Jacarezinho, com 27 civis e um policial mortos.

Alvaro Costa e Silva - Viver na favela é letal

- Folha de S. Paulo

Após a operação no Jacarezinho, as crianças continuam lá, desassistidas e à espera do próximo tiroteio

Um mural com o rosto de Wilson Witzel desenhado com milhares de balas de fuzil foi retirado do Palácio Guanabara. A obra, de exagerado mau gosto, deixou o prédio pela porta dos fundos, no último adeus ao governador deposto. Cláudio Castro, seu substituto, sonha com um retrato igual.

Ao assumir em definitivo o comando do estado, Castro afirmou que o Rio de Janeiro, olhado hoje pelo restante do país com desconfiança e descrédito, é "a Geni do Brasil" —referência à personagem da canção de Chico Buarque que leva pedrada, é feita para apanhar e é boa de cuspir. Cantor gospel, ele não prestou atenção à letra da música ou não sabe interpretá-la. Em sua essência desesperada e trágica, Geni é a população que vive nas favelas e que, em vez de pedrada, leva tiro.

Hélio Schwartsman - Um problema patente

- Folha de S. Paulo

Há situações em que a patente parece ainda ser importante

A decisão do presidente Joe Biden de apoiar a suspensão de proteções patentárias a vacinas durante a pandemia mostra que os EUA agora apostam no multilateralismo e estão atentos para as questões humanitárias. É um belo gesto político. No plano prático, porém, mesmo que a medida seja aprovada, terá papel limitado sobre a oferta de imunizantes no curto prazo.

O principal entrave à produção de vacinas hoje não são as patentes, mas a capacidade produtiva. O Brasil é um bom exemplo. Já temos em princípio acordos de transferência de tecnologia que nos permitirão fabricar por aqui dois imunizantes, mas ainda não conseguimos pôr de pé a estrutura fabril para fazê-lo.

Carlos Alberto Sardenberg - A patente não é o obstáculo

- O Globo

Vamos supor que a Organização Mundial da Saúde, com apoio dos países ricos e poderosos, decretasse hoje a quebra de todas as patentes de vacinas contra a Covid-19. O que aconteceria? Aumentaria a produção?

A resposta é não.

No curto prazo, a carência de vacinas não tem nada a ver com patentes. Simplesmente, não há capacidade de produção na escala necessária para atender ao mundo. Faltam fábricas e insumos — o que não é surpreendente. Afinal, de um momento para outro, passou a existir uma demanda global de vacinas para a qual a economia global não estava preparada.

De outro lado, e simplificando, há dois tipos de vacinas. Aquelas feitas com tecnologias conhecidas há tempos, como a CoronaVac, uma progressão em relação às vacinas contra a gripe.

E há outras, de novíssima tecnologia, como aquela inventada pela alemã BioNTech, fabricada e distribuída pela Pfizer.

No caso das primeiras, já está ocorrendo uma abertura. O fabricante chinês transferiu tecnologia e licenciou o Butantan, antigo produtor de vacinas antigripais, para produzir aqui a CoronaVac. Do mesmo modo, o complexo Oxford/AstraZeneca se relacionou com a Fiocruz.

Ascânio Seleme - Privatizando o SUS

- O Globo

Segundo grupos de estudos, governo está aproveitando a pandemia para “passar a boiada” em favor das operadoras de planos de saúde

governo federal está realizando consulta pública para implantar uma certa “Política Nacional de Saúde Suplementar para o enfrentamento da Pandemia da Covid-19” que, na visão de especialistas e instituições dedicadas à saúde pública, significa um pedido de autorização para “privatizar” o SUS. A consulta foi autorizada pelo Consu, o Conselho Nacional de Saúde Suplementar, formado pelos ministros da Saúde, da Casa Civil, da Economia e da Justiça, assumindo competência que tecnicamente deveria ser da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Segundo dois grupos de estudos, um da Faculdade de Medicina da USP e outro do Instituto de Saúde Coletiva da UFRJ, o governo está aproveitando a pandemia para “passar a boiada” em favor das operadoras de planos de saúde.

A consulta, lançada na plataforma digital Participa + Brasil, da Presidência da República, tem 18 pontos. Segundo o Grupo de Estudos sobre Planos de Saúde da Faculdade de Medicina da USP (Geps) e o Grupo de Pesquisa e Documentação sobre Empresariamento na Saúde da UFRJ (GPDES), todos os pontos atendem aos interesses privados das operadoras em detrimento do interesse coletivo. Ao instituir a política, a consulta propõe integrar as ações da saúde suplementar ao SUS. Segundo os dois grupos, as práticas da saúde pública e da complementar são heterogêneas e muitas vezes divergentes, o que inviabiliza esta integração. A menos que se queira transformar o SUS numa “rede protetora das operadoras privadas”.

Vera Magalhães - Os 3 caminhos da CPI para 'encher o saco' de Bolsonaro

- O Globo

Jair Bolsonaro pode se preparar para continuar irritado. A CPI da Pandemia pretende juntar munição para "encher o saco" do presidente, como ele demonstrou temer em seu mais recente ataque verborrágico.

Transcorrida a primeira semana de depoimentos da CPI da Pandemia, os senadores do chamado G7, o grupo dos independentes e oposicionistas que tem a maioria na comissão, já definiu três linhas principais de investigação que podem levar à responsabilização de Jair Bolsonaro e de Eduardo Pazuello, em cuja gestão à frente do Ministério da Saúde ocorreu a disparada do número de mortes e casos de covid-19.

São os seguintes os eixos a partir do qual devem ser organizados os depoimentos, e que deverão nortear também o relatório final de Renan Calheiros:

Marcus Pestana* - Uma agenda para o Brasil pós-pandemia

Atravessamos um período gravíssimo de nossa história, onde há uma combinação explosiva entre a nefasta pandemia, desemprego e o agravamento da miséria e da fome. Já são 420 mil vidas brasileiras perdida. Para além da retórica política de quem quer que seja, há uma evidência: o Brasil tem 2,7% da população mundial e 12,9% das mortes causadas pela COVID-19.

Talvez a morte do tão querido ator e humorista Paulo Gustavo nos abra os olhos e nos sensibilize para o sofrimento das milhares de famílias que anonimamente perderam seus parentes. A não ser que haja uma adesão coletiva à cínica afirmação de Stalin, ditador da antiga URSS, que afirmou: “Uma única morte é uma tragédia, um milhão de mortes é uma estatística”.

De qualquer forma é preciso repensar o futuro do país. Qual é o Brasil que queremos quando a tempestade passar? O debate público é centrado em torno de personalidades, seus atributos e defeitos. As candidaturas tem conteúdo mais personalista do que programático.

Marco Antonio Villa - A CPI pode salvar o Brasil

- Revista IstoÉ

As tímidas reações das oposições não inibem o governo. Pelo contrário, Bolsonaro fica ainda mais estimulado, fortalecido

Jair Bolsonaro não dá qualquer esperança — nem ao doutor Pangloss — de que possa em algum momento da sua Presidência se converter a democracia e liderar, de forma republicana, o Brasil nesta crise, a mais grave da história republicana. A cada dia deixa claro seu descompromisso com a Constituição e o Estado Democrático de Direito.

As ameaças golpistas são repetidas ad nauseam — é como fossem instrumentos naturais da democracia, apenas uma forma de agir em situação de crise política.

Se Bolsonaro permanece, em plena pandemia, solapando as instituições e em um cenário econômico dramático, nada indica, portanto, que poderá desempenhar um papel construtivo que o País necessita, como nunca nos tempos recentes, de liderança positiva, da construção de ações conjuntas entre as várias correntes políticas, governadores, prefeitos, em um trabalho de união para enfrentar a pandemia. A vacinação em massa é indispensável para iniciarmos o processo de recuperação econômica. Sem ela permaneceremos assistindo a morte de milhares de brasileiros e a propagação do vírus em larga escala.

Monica de Bolle* - Biden, o centrista

- Revista Época

Ao buscar que a polarização se dê mais ao centro, tomando alguma distância dos extremos, o presidente dos Estados Unidos tenta de forma pragmática construir uma democracia mais sólida a partir de tudo que Trump abalou

No Brasil, o presidente dos Estados Unidos já foi chamado de esquerdista, comunista, socialista. Na Argentina, ele tem sido chamado de Juan Domingo Biden, em alusão a Perón. A atual vice-presidente, Cristina Kirchner, deu-se inclusive ao trabalho de fazer um longo fio no Twitter explicando por que Biden seria a expressão mais pura do peronismo — um exagero porém não muito. Devo dizer que é uma delícia ler os pseudodebates das mídias sociais e as interpretações latino-americanas sobre o político Joe Biden e sua agenda. Mas, por experiência própria, insisto que não é possível travar um debate minimamente inteligente nas mídias sociais. Fim da digressão.

A ideia de que democracias não combinam com polarização tem muitos adeptos. De fato, quando a polarização se radicaliza, abrem-se os flancos para extremismos que, de modo geral, são antitéticos à democracia. Contudo, a polarização, entendida como posicionamentos distintos expressos por dois polos a respeito de temas variados, é endógena à democracia. É muito difícil conceber a ideia de democracia sem a existência de conflitos. A democracia é construída a partir de pactos feitos em torno de conflitos. Tais conflitos não deixam de existir porque se alcançou a possibilidade de coexistência. Ao contrário, caso deixassem de existir por força de algum tipo de união que os dissolvesse em uma opinião única sobre tudo, não haveria mais democracia. União não é sinônimo de visão única. É, antes, uma formação baseada em sentidos compartilhados sobre pertencimento e cidadania que não requerem a resolução de conflitos; ao contrário, supõem os conflitos e têm por propósito garantir a sua possibilidade, o que implica excluir formas violentas e antipluralistas de resolvê-los.

Dora Kramer - Manda quem pode

- Revista Veja

O poder de autorizar ou desautorizar governantes ao que quer que seja não é dos gritos de fiéis no meio da rua. É da Constituição e das instituições

Em matéria de manifestações de rua, não há dúvida de que os apoiadores do presidente Jair Bolsonaro marcam vantagem no placar do embate ora em curso no país. Entre outros motivos, porque aglomeração é com eles mesmos.

O 1º de Maio deste ano mostrou que são bons de mobilização dos seus, ainda mais quando não há o contraponto para que se estabeleça uma comparação. Como não vivemos tempos normais, não há como saber se um movimento de oposição ao governo reproduziria a maioria de insatisfeitos expressa nas pesquisas de opinião.

A impossibilidade de medição retira o confronto de posições da cena e reduz o efeito das manifestações. Daí o espaço relativamente discreto dado no noticiário aos atos daquele sábado, motivo de muita reclamação e acusações de parcialidade por parte da imprensa, que estaria com isso dando vazão à hostilidade contra o presidente da República. A queixa denota desconhecimento sobre a dimensão relativa de fatos.

A ausência de noção precisa a respeito do funcionamento das coisas em regimes de equilíbrio institucional, contra o qual se insurgem os devotos do presidente, evidenciou-se mais uma vez na escolha da pauta do, digamos, protesto, cuja palavra de ordem era “autorizamos”. Uma resposta à declaração de Bolsonaro dias antes de que aguardava apenas “um sinal” do povo para “tomar providências”.

Murillo de Aragão - Modo crise como estratégia

- Revista Veja

A ordem é alimentar uma situação de tensão institucional

No Brasil, vemos um fenômeno curioso em curso: a segunda onda personalista da Nova República. A primeira foi com Lula. Agora, é a vez de Bolsonaro. Fora os dois, nenhum outro presidente, desde a redemocratização, conseguiu criar um culto personalístico com potencial de se transformar em movimento político. Quais são os limites do fenômeno?

Lula foi longe ao gerar o lulismo, que, mais do que um conjunto de valores, é uma forma de fazer política. Por isso depende muito mais de seu próprio criador para sobreviver do que de suas ideias. Vide o fracasso de Lula com Dilma Rousseff, que nem seguiu sua metodologia nem sua visão de mundo. O lulismo provavelmente morrerá com Lula, assim como o varguismo morreu com Getúlio Vargas.

Bolsonaro, desde que se posicionou como candidato, estimula a criação do bolsonarismo como um movimento que se ampara em narrativas que misturam elementos do tenentismo, do conservadorismo e do reformismo institucional com elevadas doses de ambiguidade. A estratégia é clara e pouco se fala sobre ela. Vamos tentar reduzir as incertezas e estabelecer alguns limites.

Alon Feuerwerker - O atraente bidenismo

- Revista Veja

No Brasil, talvez não seja viável uma virada como a do americano

A política econômica do governo Joe Biden vem atraindo certo entusiasmo nas correntes políticas da oposição, pela esquerda, ao governo Jair Bolsonaro. É compreensível. Após muitos anos de difusão do chamado Consenso de Washington, eis que na capital de mesmo nome surge uma administração a propor, entre outras coisas, emitir moeda, reforçar o papel do investimento estatal e taxar quem tem mais para distribuir a quem tem menos.

A mudança ali, com as ondas de influência irradiadas mundo afora, soma-se vetorialmente por aqui a uma certa frustração com a colheita das políticas aplicadas desde pelo menos a Ponte para o Futuro de Michel Temer. Na sequência veio a dupla Bolsonaro-Paulo Guedes. É razoável admitir que existe alguma continuidade nas orientações definidas para a economia pelos governos que mandam no Planalto desde a ruptura de 2016.

Carlos Andreazza - Sobre o massacre do Jacarezinho

- O Globo

A Polícia Civil saiu para cumprir 21 mandados de prisão no Jacarezinho. Cumpriu apenas três. Três entre os que deveriam ser presos morreram. A Polícia Civil saiu para cumprir 21 mandados de prisão e voltou com 25 mortos – entre os quais, um policial. Um fracasso. E muito mais que um fracasso.

Dois cidadãos feriram-se enquanto estavam no transporte público. Uma operação, supostamente lastreada em inteligência, preparada no curso de dez meses, que vai a campo, por exemplo, sem demandar a interdição do funcionamento de metrô e trem. Que inteligência é essa? O que será, então, estupidez?

Em nenhum lugar, em nenhum lugar em que haja fronteiras entre Estado e barbárie, uma operação policial que acabe com 25 mortos poderia ser tratada como um sucesso. E defendida pelo governador.

Não se pode considerar natural que – em nome do enfrentamento ao crime organizado – os procedimentos do Estado assumam a forma das práticas da bandidagem. Vale tudo é a lógica do criminoso. Num país sério, o chefe da polícia tinha caído e o governador estaria se desculpando. Não Claudio Castro. Aliás, em nenhum lugar do mundo, em que, claro, haja limites legais, o que houve ontem no Jacarezinho seria chamado de operação policial. Mais que um fracasso, um massacre. Um massacre, não importando quem fossem os mortos.

Bolívar Lamounier* - Leôncio Martins Rodrigues

- O Estado de S. Paulo

Grande intelectual, um pilar de nossa vida universitária, cidadão exemplar

Conheci Leôncio Martins Rodrigues no primeiro trimestre de 1970, logo que me mudei para São Paulo. Lembro-me perfeitamente da situação. Foi num fim de tarde, num encontro promovido por Fernando Henrique Cardoso, que, naquela época, residia numa casa próxima ao Palácio dos Bandeirantes. Leôncio e eu ficamos trocando ideias sobre nossos respectivos interesses, num canto do jardim interno.

Gentil, simpático, falante, discorreu longamente sobre as pesquisas que andava a fazer sobre a formação da classe operária industrial e as mudanças que começavam a se operar no meio do antigo sindicalismo pelego da era getulista. Nesse campo, ele deu um vigoroso impulso à tradição da USP, que remontava aos trabalhos dos professores Aziz Simão e Juarez Rubens Brandão Lopes.

Não tive o privilégio de ser aluno dele. Tendo feito os estudos de graduação em Minas Gerais e a pós-graduação nos Estados Unidos, nutria a aspiração de lecionar numa universidade federal. Mas um fato insólito se interpôs entre meu regresso dos Estados Unidos e essa aspiração. Em abril de 1969, o governo decretou a aposentaria compulsória de certo número de docentes de várias universidades e entidades de pesquisa. Por alguma razão que Deus um dia me explicará, fui incluído entre os “aposentados”, embora não tivesse emprego algum, nem público nem privado. Lastreada no AI-5, essa medida não era suscetível de apreciação judicial. Daí decorreu que apenas pude lecionar por alguns anos na PUC-SP, passando depois à atividades de consultoria. Mas, decididamente, há males que vêm para bem. Na pós-graduação da PUC vim a conhecer minha mais que querida amiga Maria Teresa Sadek, que viria a ser a segunda esposa do Leôncio. Dessa forma, meus laços de amizade com ele se estreitaram muito.

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

EDITORIAIS

 Chega de barbárie

Folha de S. Paulo

Morticínio policial no Rio é mais um exemplo da estupidez da guerra às drogas

estúpida operação deflagrada pela Polícia Civil do Rio de Janeiro na favela do Jacarezinho, na zona norte da cidade, constitui mais uma evidência de que as estratégias de combate ao tráfico de drogas no Brasil precisam ser reformuladas.

Se há êxitos dignos de nota em algumas ações baseadas na boa técnica investigativa e no uso da inteligência, o que se verifica há décadas em grandes centros urbanos é a prevalência da lógica de guerra entre a polícia e quadrilhas armadas que atuam na ponta da venda de entorpecentes em bairros vulneráveis e abandonados pelo Estado.

No Rio, em particular, as renovadas incursões em morros e favelas voltam-se com frequência exasperante, de maneira brutal e indiscriminada, contra populações inteiras, sem que se observem direitos constitucionais básicos.

Invadem-se residências, bens são danificados, atira-se a esmo, matam-se inocentes e suspeitos desarmados; cenas são alteradas para evitar a perícia de possíveis execuções. Tudo é concebido para instalar uma atmosfera de pânico, que repete, em nome da repressão a traficantes, a mesma tática por estes utilizada.

Música | Geraldo Azevedo - Lembrando Carlos Fernando

 

Poesia - Carlos Drummond de Andrade - Sociedade