quinta-feira, 2 de julho de 2020

Merval Pereira - Da noite para o dia

- O Globo

Por mais que queira mostrar-se contido, apaziguador, negociador, o verdadeiro Bolsonaro sempre prevaleceu

Além da nomeação do novo ministro da Educação, que teria um perfil técnico, ao contrário do guerrilheiro de direita Weintraub de triste memória, há comentários insistentes em Brasília de que o presidente Bolsonaro, nessa fase de calmaria pós prisão do Queiroz, tiraria do governo outros dois ministros problemáticos, o das Relações Exteriores Ernesto Araujo e o do Meio-Ambiente Ricardo Salles.

Seriam medidas saneadoras, para melhorar a imagem do governo, sobretudo externamente. Bom se fosse verdade. Mas não acredito, simplesmente porque os ministros citados, e outros, não fazem o que fazem por que querem, mas porque representam uma visão de mundo que é de Bolsonaro.

Seria preciso mudar o software que comanda o retrocesso nessas e em outras áreas, não apenas o hardware. Por mais que queira mostrar-se contido, apaziguador, negociador, o verdadeiro Bolsonaro sempre prevaleceu, não dando margem a uma mudança de comportamento por ter sido eleito presidente do Brasil.

Se tivesse capacidade para fazer esse jogo político, Bolsonaro teria pelo menos tentado. Como fez Lula ao ser eleito. Alguém imagina Bolsonaro convidando para sua equipe um ícone da esquerda, como Lula fez ao colocar no Banco Central o banqueiro internacional Henrique Meirelles, que havia acabado de ser eleito deputado federal pelo arqui-inimigo PSDB?

Míriam Leitão - Forças Armadas, para que servem?

- O Globo

Atuação das Forças Armadas na pandemia fica encoberta pela mistura que Bolsonaro faz entre elas e os seus objetivos políticos

O ministro da Defesa, Fernando Azevedo, estava ontem em território Ianomâmi. Foi numa viagem de rotina para acompanhar a operação de atendimento médico e orientação nas aldeias. Os aviões da FAB já deram o equivalente a 11 voltas ao mundo, em três meses, só levando e trazendo material e equipamento médico que antes eram deslocados pela aviação comercial. Sete mil e quinhentos militares foram contaminados com o vírus, exatamente porque eles estão presentes em muitas frentes ao mesmo tempo. Há uma sensação nas Forças Armadas de que seu trabalho no combate ao Covid-19 não aparece em função dos enormes ruídos causados pela discussão política sobre o risco de um novo golpe.

— Estamos apanhando mais atualmente do que nos últimos 30 anos. Assuntos que já estavam resolvidos voltaram com uma força enorme — disse um oficial superior.

O relato do que as Forças Armadas estão fazendo neste momento é interessante porque ilumina exatamente o seu papel no meio de uma pandemia num país continental, com gigantescos desafios. Sendo, como têm que ser, uma instituição do Estado, e não braço de um governo, tudo fica mais fácil de ver e de valorizar. Lá dentro se diz que é nisso que as tropas estão realmente pensando, no seu papel tradicional. Enquanto isso, manifestantes bolsonaristas fazem passeatas pedindo intervenção militar, e o próprio presidente fez constantes ameaças que alimentaram velhas dúvidas e temores. Certos fatos incendiaram ainda mais o debate, como o dia em que o ministro Azevedo sobrevoou com o presidente uma dessas manifestações que pediam o fechamento do Supremo.

Carlos Alberto Sardenberg - A falta que faz uma boa direita

- O Globo

A agenda anticorrupção já era. A agenda de Paulo Guedes está funcionando só na cabeça de Paulo Guedes

A Procuradoria-Geral da República, sob o comando de Augusto Aras, já não esconde nem disfarça: está em campanha para liquidar a Lava-Jato, o conjunto de forças-tarefas organizadas em Curitiba, São Paulo e Rio. O argumento, alinhado em documento do vice-procurador Humberto Jacques de Medeiros, não chega a dizer que essas forças são ilegais, mas é isso mesmo que se quer dizer. Ou seja, que a Lava-Jato se tornou uma espécie de monstro fora de controle da cúpula do Ministério Público Federal. E que não é mais eficiente.

Nenhum argumento resiste. Comecemos pela eficiência: em apenas seis anos, a operação instaurou 1,6 mil processos nas três instâncias do Judiciário, firmou 298 acordos de colaboração premiada, dos quais 183 homologados pelo Supremo Tribunal Federal. Aliás , há 71 inquéritos no STF oriundos da Lava-Jato, com 126 denunciados.

Esse combate à corrupção se fez com os métodos mais modernos do mundo — tanto que 12 países da América Latina montaram suas próprias operações com base em fatos apurados pela parte brasileira. Grandes empresas brasileiras, como a Odebrecht, levadas por Lula, espalharam a corrupção mundo afora. A Lava-Jato foi atrás e apanhou gente mundo afora. E trouxe de volta para o Brasil bilhões de reais que haviam sido roubados do contribuinte.

Ascânio Seleme - Quem são os inimigos?

- O Globo

Extremos devem ser isolados, impedindo-se que cresçam e se espalhem

A índole antidemocrática do presidente Jair Bolsonaro, um extremista de direita e falso liberal, enseja uma discussão entre as forças políticas sobre quem são de fato os inimigos a serem combatidos. A esta altura deve estar evidente para a esquerda e para centro-esquerda que os inimigos não são os seus reflexos com sinal trocado do outro lado do espectro político. Estes são seus adversários. Da mesma forma, direita e centro-direita devem enxergar assim quando olham para o campo antagônico. Os inimigos de verdade residem nos extremos. São os que atropelam leis, desrespeitam outros poderes, ameaçam a democracia, ou os que pregam a ruptura democrática.

De um lado desses extremos estão agremiações como o Partido da Causa Operária (PCO) e o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado (PSTU). Do outro lado, estão partidos por onde trafega Bolsonaro, como o Patriotas e o Partido Social Liberal (PSL). Ao lado destes, os satélites de sempre, que são de direita mas podem ser de extrema direita se levarem alguma vantagem pecuniária com isso. Alguns, bem pagos, já foram até de esquerda. Nem partidos são. Formam uma aglomeração fisiológica e navegam sempre a favor do vento.

Luiz Carlos Azedo - Eleições em novembro

- Nas entrelinhas | Correio Braziliense

“Bolsonaro não deu sinais de que pretende interferir diretamente nas eleições municipais, mas já pululam candidatos bolsonaristas de primeira hora”

A Câmara aprovou ontem, por 402 votos a favor e 90 contra, com quatro abstenções, a emenda constitucional que adia as eleições de 4 e 25 de outubro para 15 e 25 de novembro, em primeiro e segundo turnos, respectivamente. A proposta foi articulada com êxito pelo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Luís Roberto Barroso, e os presidentes do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ). Houve resistência por parte do Centrão, principalmente do PL, com 41 deputados, cujo líder na Câmara, Wellington Roberto (PB), comandou a oposição à mudança. O texto volta ao Senado para promulgação.

O adiamento das eleições era pedra cantada, em razão da pandemia da covid-19. Além do risco de contaminação dos eleitores nas seções eleitorais, existe a dificuldade criada pela situação sanitária do país para preparação do pleito por parte da Justiça eleitoral. O mais importante na discussão sobre o adiamento foi evitar a prorrogação de mandatos de prefeitos e vereadores, como alguns defendiam, inclusive, com propostas de coincidência do pleito com as eleições gerais de 2022. Esse risco foi afastado, embora o texto aprovado tenha um gatilho que permite ao Congresso, caso um município ou estado não apresente condições sanitárias para realizar as eleições em novembro, editar um decreto legislativo designando novas datas para a realização do pleito, tendo como data-limite o dia 27 de dezembro de 2020. A proposta original atribuía essa prerrogativa ao TSE, mas foi modificada.

Maria Hermínia Tavares* - A lista de Bachelet

- Folha de S. Paulo

Há correspondência entre a perversidade de Bolsonaro no trato da pandemia e do ambiente e a nossa política externa

Reunido em Genebra, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas ouviu nesta terça-feira (30) o relatório da alta comissária Michelle Bachelet sobre os efeitos da Covid-19 para a situação dos direitos humanos no mundo.

A ex-presidente do Chile censura de maneira forte e direta a atitude dos governos que, ao negarem o perigo de contágio pelo vírus e ao mesmo tempo apostarem na polarização política, pode agravar a severidade da pandemia. O seu relatório chama pelo nome os países que a preocupam: Belarus, Brasil, Burundi, Nicarágua, Tanzânia —e, naturalmente, Estados Unidos.

A crítica de Bachelet acrescenta outra demão de desgaste à corroída imagem internacional do Brasil. Agora é o descaso do governo em face da pandemia; nas duas semanas anteriores foi o seu descompromisso com a proteção ambiental. Vinte e nove fundos europeus de investimento e pensão, além de eurodeputados e importantes organizações do bloco empenhadas na defesa do meio ambiente, foram a público denunciar que a conivência de Brasília com o desmatamento criminoso da Amazônia põe em risco o aporte de capitais de risco ao país, nossas exportações de commodities e o futuro do acordo comercial Mercosul-União Europeia.

Fernando Schüler* - A era da saturação política

- Folha de S. Paulo

Das relações pessoais ao consumo, cada vez mais espaços são definidos pela política

Quase todo mundo tem uma história pra contar sobre desavenças que surgiram, nos últimos anos, em função da brigalhada política. Tempos atrás vi um tuíte de uma filha dizendo que o pai era um homem bom e que o “perdoava”, mesmo tendo ele votado no candidato que ela detestava.

O filósofo Robert Talisse comenta que encontrou mais de 40 milhões de entradas digitais com instruções sobre como escapar dos temas politicamente delicados e sobreviver aos encontros familiares no Dia de Ação de Graças americano.

Achou curioso não ter encontrado nenhuma vez a sugestão simples de que talvez a própria celebração entre as pessoas fosse mais importante do que as crenças políticas de cada um.

A partir desse incômodo ele escreveu “Overdoing Democracy”, um livro que faria bem ser lido por aqui. O ponto de Talisse é o que ele chama de “saturação política da vida social”. A ideia obsessiva de que “tudo é política” e é ela que deve pautar nossas relações pessoais, hábitos de consumo e juízos sobre qualquer coisa.

Lendo o livro me veio à mente o tema das identidades. A percepção de que, para além da retórica habitual, não é o gênero ou cor da pele que define o respeito, em regra, no mundo público, mas a opção política.

Bruno Boghossian – Qualquer coisa

- Folha de S. Paulo

Vexame na Educação é sintoma de uma máquina que desmorona desde o primeiro dia

Ao chegar ao Planalto, a tropa de choque de Jair Bolsonaro anunciou uma demissão em massa. Sob o marketing da "despetização" da máquina pública, o governo mandou para casa até os servidores responsáveis por exonerações e nomeações. Resultado: faltou gente para oficializar a saída dos indesejados e a entrada de seus substitutos.

Da burocracia palaciana à Esplanada dos Ministérios, o governo desmorona desde o primeiro dia. O país se aproxima dos 50 dias sem um comando definitivo na Saúde, assiste a um processo desastrado de sucessão na Educação e vê um presidente incapaz de montar até os escalões inferiores do governo.

Os sinais da incompetência sempre foram claros. Quando inaugurou o mandato, Bolsonaro escolheu um publicitário que não era fluente em inglês para dirigir a Apex (Agência de Promoção de Exportações). Ele durou menos de dez dias no cargo.

Mariliz Pereira Jorge - Máscara é coisa de comunista?

- Folha de S. Paulo

Essa liberdade de escolha pelo uso vale para aborto e drogas também?

Há uma profusão de cenas de conservadores americanos metidos em confusão ao se recusarem a usar máscara em locais públicos. Numa reunião em que cidadãos de Palm Beach puderam se manifestar, houve quem dissesse que o direito era o mesmo de não vestir calcinha. Um médico foi "ameaçado" de prisão por crimes contra a humanidade. Não faltaram os argumentos de que é parte de um plano comunista e de que o adereço era contra as leis de Deus. Tudo isso por causa de uma máscara.

Essa mesma politização da Covid-19 está prestes a ter capítulos patéticos no Brasil agora que grandes cidades, como o Rio, entram em nova fase de flexibilização. Já tivemos alguns casos, mas deve piorar.

Gabriela Prioli - Bolsonaro emudeceu

- Folha de S. Paulo

As sombras do poder circundam o palácio

Um silêncio sepulcral ecoa no Palácio do Planalto. As paredes reverberam o som de antigos brados, mas as novas conversas se tornaram murmúrios. Onde estão os “cala a boca!” ou os “acabou, porra!”? Para onde foram os discursos inflamados sobre a picape na frente do quartel general ou os desfiles a cavalo?

Se a maior epidemia, que já colocou na cova mais de 60 mil brasileiros, não pôde sensibilizar o nosso governante, agora o desenrolar da história —e um ministro ou outro do STF— o faz.

Nesse palácio mal assombrado, os fantasmas que vagam são tipos específicos de assombração. De um lado: o inquérito das fake news. Por detrás da cortina que tremula: o inquérito sobre a interferência na PF. Como se não bastasse, o amigo e antigo assessor parlamentar, tal qual alma penada, aparece na casa do advogado da família do presidente, num sítio em Atibaia. Melhor consultar também os astros...

Ricardo Noblat - Os desafios de Bolsonaro dois ponto zero

- Blog do Noblat | Veja

Para além das palavras ou do silêncio

A desejar que se acredite em sua nova versão, a de um presidente moderado, convertido aos valores da democracia que antes execrava e disposto a trabalhar em harmonia com os demais Poderes, Jair Bolsonaro poderia aproveitar o momento para trocar algumas peças defeituosas de um governo empenhado em se reinventar. Ou não se trata de reinvenção? Ou é só maquiagem?

Os céticos dizem, e eles têm razões de sobra para dizer, que a nova postura de Bolsonaro pouco ou nada tem de sincera. Decorre do medo que se apossou dele de não completar o mandato. E do medo de que seus filhos, os três zeros, possam ter suas carreiras políticas interrompidas ou prejudicadas pelos supostos crimes que cometeram de peculato, corrupção e formação de quadrilha.

Não importa. Por isso ou por aquilo, faria bem ao governo e, por extensão, ao país se Bolsonaro fosse além das palavras ou do silêncio a que se recolheu. Que tal valorizar as duas áreas apontadas em todas as pesquisas como as que mais afetam a vida dos brasileiros, para o bem ou para o mal – Educação e Saúde? Por sinal, as duas nesta hora estão sem titulares.

A da Saúde tinha começado bem o governo. Tudo o que ali Luiz Henrique Mandetta fez foi jogado fora por Bolsonaro, inclusive o próprio ministro. No lugar de Mandetta entrou um médico que durou pouco, e depois um general especialista em logística. Não se cobre dele que entenda de Saúde porque médico não é. Cobre-se por não ter se cercado de quem entende. Preferiu colegas de farda.

Bernardo Mello Franco - Efeitos do cometa

- O Globo

. Desde a posse, o capitão segue a tática do morde e assopra. Sempre que se sente acuado, ele abaixa as armas. Superado o perigo, rompe a trégua e volta a radicalizar

Desde que o Ministério Público enterrou aquele cometa, Jair Bolsonaro nunca mais foi o mesmo. O presidente completa hoje duas semanas sem atacar as instituições ou ameaçar um golpe. O voto de silêncio coincidiu com a prisão de Fabrício Queiroz.

Calado, o capitão não precisou explicar fatos inexplicáveis, como a presença do faz-tudo na casa do seu advogado. Também não foi questionado sobre o dinheiro vivo que pagava as contas do primeiro-filho.

Mesmo sem falar, o presidente conseguiu produzir mais uma crise. Seu novo ministro da Educação não se segurou cinco dias no cargo. Caiu antes de tomar posse, derrubado por um currículo que não parava em pé.

William Waack - A Lava Jato é o alvo

- O Estado de S.Paulo

A força-tarefa terá de compartilhar seu principal ativo: informações sigilosas

A disputa no Ministério Público Federal sobre os dados coletados pela força-tarefa Lava Jato durante os últimos anos já é um clássico da intriga política, da luta pelo poder, do empenho em criar uma narrativa político-eleitoral e, principalmente, uma janela para entender muito do que aconteceu no Brasil nos últimos anos. E está só no começo.

É um clássico de intriga política pois a disputa é, no fundo, sobre quem tem o domínio de imenso arsenal de informações sigilosas obtidas por meio de quebras de sigilo, colaborações premiadas, escutas telefônicas e mais de mil inquéritos. O controle e o vazamento seletivo dessas informações – com a cumplicidade de grandes grupos de comunicação – foram armas relevantes no período em que a Lava Jato foi o instrumento central para apear um grupo corrupto do poder, o que era comandado pelo PT.

É impossível entender a eleição de Jair Bolsonaro sem o fenômeno da Lava Jato e a amplitude do apoio político e popular que recebeu. Mas, uma vez derrotado o PT, a onda disruptiva espraiou-se e estilhaçou em seus vários componentes, nos quais aquele apelidado de “lavajatismo” (ou “vale qualquer coisa para pegar corruptos, danem-se os princípios legais”) perdeu muito de sua força. A aura de que “só Lava Jatos” mudam o País permanece, porém.

Eugênio Bucci* - Extra, extra: o dia em que o Planalto derrubou a Constituição

- O Estado de S.Paulo

Ainda bem que logo o episódio se revelou insignificante. Mas prenhe de significação

Foi um evento insignificante, mas nenhum outro poderia vir mais carregado de significação. Há pouco mais de uma semana, no começo da noite de 22 de junho, quem entrasse no site planalto.gov.br para acessar o texto da Constituição federal daria com a cara na porta – ou na tela. Aconteceu comigo.

Naquela segunda-feira, por volta das 7 da noite, eu mesmo dei com a cara na tela. Como faço sempre que preciso consultar o texto constitucional, entrei no site do Planalto, cliquei nos links de costume e, então, no lugar da Lei Maior encontrei um aviso deseducado e mal diagramado. Era um alerta em tons esfuziantes: “Ocorreu um erro!”. Assim, com ponto de exclamação. Na linha de baixo, um complemento enigmático: “O conteúdo não foi encontrado”. Gelei.

Fui buscar a Constituição no site do Senado Federal e, ufa!, lá estava ela, intacta, com todos os seus artigos, tal como os conheço.

Mesmo assim, um incômodo perturbador não se esvaía de meus nervos crispados: aquele ponto de exclamação. Como podia ser?

“Ocorreu um erro!”. Por que a exclamação? Parecia que, do outro lado, alguém comemorava o sumiço da norma.

Telefonei para um jornalista, que telefonou para outro jornalista, que telefonou para a Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom). Duas horas depois, quando já passava das 9 e meia da noite, veio a resposta: “Prezado jornalista, verificamos com a área técnica que houve uma instabilidade no link, mas esta já foi corrigida. A página já está disponível. Atenciosamente, SECOM”.

Fui conferir. De fato, a vigência da nossa Lei Fundamental já se tinha restabelecido no endereço eletrônico do Palácio do Planalto. Era uma boa notícia. Um alívio. Mas, de novo, algo ali me incomodava: desta vez não um ponto de exclamação (não havia nenhum índice de júbilo no comunicado da Secom), mas uma palavra solerte: “instabilidade”.

Maria Cristina Fernandes - Os sócios do vírus

- Valor Econômico

Ninguém a desejava, mas há quem se beneficie da pandemia

A pandemia do coronavírus matou, em quatro meses, 60 mil brasileiros, o que deixa o país na condição de vice-campeão mundial em número de vítimas. No mesmo período, o Brasil acumulou mais de 28 milhões de desempregados e desalentados.

O vírus, no entanto, não fez apenas vítimas. Ao longo desse tempo, angariou também muitos sócios. Ninguém desejava a pandemia, mas há quem mais do que sobreviver, está a tirar vantagem dela. Na política e na economia, as desigualdades pregressas só se acentuam com as medidas governamentais.

A queda de juros, por exemplo, melhora a vida de todo mundo, mas beneficia muito mais a das grandes empresas que, em condições de emitir debêntures (dívidas) com taxas mais baixas do que aquelas que vigoravam antes da pandemia, se capitalizam não necessariamente para investir agora, mas para largar na frente quando a atividade voltar. Até porque da sucessão de reformas trabalhistas pré-pandemia às medidas provisórias mais recentes, as empresas puderam reduzir custos trabalhistas.

Mas não são apenas as medidas do governo que produzem sócios do coronavírus, mas a falta delas. O presidente Jair Bolsonaro se elegeu, em grande parte, não para mudar o Estado mas para dizimá-lo. A covid-19 mobilizou as atenções e facilitou a tarefa em áreas como o meio-ambiente, como tão bem traduziu Ricardo Salles na reunião ministerial de 22 de abril. Um mês depois, os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostraram que o ministro escancarou a passagem da boiada, com um aumento de 55% no desmatamento no primeiro quadrimestre do ano em relação ao mesmo período de 2019.

Ribamar Oliveira - O QE tupiniquim está limitado

- Valor Econômico

Descuido na redação da PEC deixou de excluir operação do BC do teto de gastos

Durante a atual situação de calamidade pública decretada pelo Congresso Nacional, em virtude da pandemia de covid-19, o Banco Central terá um poder muito grande de intervenção nos mercados. Por meio da emenda constitucional 106, promulgada em maio desse ano, o BC foi autorizado a comprar e a vender títulos de emissão do Tesouro, nos mercados secundários local e internacional, e os ativos, em mercados secundários nacionais no âmbito de mercados financeiros, de capitais e de pagamentos.

Na aquisição dos ativos, o BC dará preferência aos títulos emitidos por microempresas e por pequenas e médias empresas. A única condição é que os ativos tenham classificação em categoria de risco de crédito no mercado local equivalente a BB- ou superior, conferida por pelo menos uma das três maiores agências internacionais de classificação de risco e preço de referência publicada por entidade do mercado financeiro credenciada pelo BC.

O objetivo de todo esse poder que os representantes do povo brasileiro deram ao BC foi para que ele evite uma depressão econômica no Brasil, adotando uma política monetária flexível que, durante a monumental crise financeira de 2008/2009 ficou conhecida como QE - sigla para o termo em inglês “Quantitative Easing”.

A taxa de desemprego não é mais a mesma

Taxa de subutilização da força de trabalho e o nível de ocupação devem ser preferíveis para a aferição do mercado de trabalho

Por João Hallak Neto* e Esther Dweck* - Valor Econômico

No mês de junho o IBGE divulgou a Pnad Covid 19, uma nova pesquisa que traz os primeiros dados sobre o mercado de trabalho durante a pandemia. Esta pesquisa semanal tem seus resultados iniciais com referência no mês de maio de 2020, portanto, já no período de isolamento social que começou na segunda quinzena de março em diversas cidades do país. Sendo assim, para análises comparativas entre o antes e o depois desse período atípico torna-se necessário o uso de bases de dados que possuam séries históricas mais amplas, como a Pnad Contínua, também do IBGE, e o Caged, do Ministério da Economia.

Os resultados mais recentes da Pnad Contínua revelam que a taxa de desemprego (ou taxa de desocupação, que é a denominação adotada pelo IBGE), indicador que normalmente chama mais atenção, situou-se em 12,9% no trimestre encerrado em maio, apresentando pouca variação em relação ao valor de igual período do ano anterior, 12,3%. Entretanto, essa relativa estabilidade contrasta com outros indicadores apresentados. A mesma pesquisa indicou uma redução de 7 milhões de pessoas ocupadas, sendo cerca de 2,5 milhões com carteira de trabalho assinada, quando comparada a igual período ano passado. Já o novo Caged apontou para uma queda de 1,5 milhão de empregos formais no trimestre finalizado em maio, além de 4,4 milhões de contratos de trabalho suspensos e 3,5 milhões com redução de até 70% das horas trabalhadas, em abril em relação ao mês de março de 2020.

Roberto Macedo* - Mais sobre a gravíssima situação da economia brasileira

- O Estado de S.Paulo

Está faltando um rumo claro e confiável para a retomada do crescimento

A pandemia da covid-19 pegou a economia fragilizada por depressão que a acometeu desde 2015, começando então com uma “recessão técnica”, que os economistas definem como uma queda do produto interno bruto (PIB) por dois trimestres consecutivos. Vieram oito quedas trimestrais, prejudicando todo o biênio 2015-2016. Essa recessão só findou após o aumento do PIB por dois trimestres consecutivos no início de 2017. Mas esse crescimento foi fraco, e isso continuou em 2018 e 2019, sem que o PIB voltasse ao seu valor de 2014.

Em números: as taxas de variação do PIB nesse período foram -3,55% (2015), -3,28% (2016), 1,32% (2017), 1,32% (2018) e 1,14 (2019). Do que fica claro que as positivas dos últimos três anos não reconduziram o PIB ao seu valor de 2014. Usando um índice, com o PIB de 2014 = 100, ele chegou a 97,1 em 2019. E mais: a julgar pela variação do PIB prevista para 2020 pelo último boletim Focus, do Banco Central – uma queda de 6,5% –, o índice deste ano cairia para 90,8, bem mais longe do valor 100 de 2014, acumulando queda de 9,2% (!) relativamente a ele.

É como se o PIB caísse num buraco em 2015, fosse mais fundo em 2016 e, após rastejar rumo à superfície no triênio seguinte, ainda não havia chegado lá em 2019. Esse buraco configura uma depressão, algo mais forte e duradouro do que uma recessão.

Zeina Latif* - Vamos falar de trabalho?

- O Estado de S.Paulo

Será necessário redirecionar recursos para abertura de novas empresas

O s números do mercado de trabalho preocupam. Houve uma redução de 7 milhões de pessoas ocupadas no trimestre encerrado em maio em relação ao mesmo período do ano passado. Os informais são, de longe, os mais afetados (menos 5,7 milhões).

As medidas do governo para conter a queda do emprego com carteira, no entanto, ajudaram a evitar um quadro bem pior. O programa de redução temporária de salários e de suspensão de contratos beneficiou 11,7 milhões de trabalhadores até o dia 26 de junho.

Os dados do emprego com carteira do Caged reforçam essa avaliação, pois o 1,4 milhão de vagas líquidas fechadas na mesma comparação decorreu muito mais da baixa geração de vagas do que de demissões.

Comparações mundiais são particularmente complexas, até porque as diferentes legislações trabalhistas têm impacto na flexibilidade para contratar e demitir. Mesmo assim, vale citar que, de uma lista de 32 países com informações disponíveis em maio último, o Brasil está no grupo de países mais preservados em termos de aumento da taxa de desemprego (12,9% ante 12,3%), em que pese o fato de partir de uma base elevada, das piores no mundo, sofrendo as consequências da recessão passada e do baixo crescimento.

Everardo Maciel* - Um imperativo de responsabilidade

- O Estado de S.Paulo

Corrupção e a violência se inscrevem num contexto marcado por difamações recíprocas e intolerância

Tomo emprestado conceito desenvolvido pelo filósofo Hans Jonas (1903-1933) para, em meio às enormes incertezas que pairam sobre a humanidade em vista da pandemia, seguir explorando caminhos para enfrentar problemas que se acumulam. Infelizmente, esse imperativo de responsabilidade, no Brasil, é embaraçado por um ambiente estigmatizado por múltiplas torpezas.

É certo que esse ambiente não é de origem recente. Ao contrário, há muito a corrupção e a violência criaram raízes profundas em nossa sociedade, projetando-se sobre o Estado. Erradicá-las de nosso convívio é missão que requer muita energia política, o que não se vislumbra em horizonte próximo.

Mais grave é que a corrupção e a violência se inscrevem num contexto marcado por difamações recíprocas, tagarelice perniciosa, linguagem chula, intolerância abjeta até mesmo contra a intolerância, sobrevalorização de questiúnculas, “militância” política de financiamento escuso, 
vilanias veiculadas nas redes sociais. Perdemos a amabilidade, reconhecido traço cultural brasileiro. Exilamos a moderação, a discrição e o autocontrole, que os gregos identificavam na figura mítica de Sofrósina (Sobriedade, para os latinos). Essas dificuldades não podem, entretanto, converter-se em óbice intransponível, mas desafio a ser enfrentado, que deve animar os que assumem a responsabilidade de refletir e propor.

Projeto das fake news tem um bom início – Editorial | O Globo

O que foi aprovado no Senado é um avanço, mas são necessários aperfeiçoamentos na Câmara

Não faltam subsídios à disposição do Congresso a fim de que produza uma legislação competente para coibir as fake news, sem agredir a liberdade de expressão e outros direitos, sempre em defesa dos espaços privados e da democracia. A aprovação terça-feira, no Senado, de projeto de lei com esta intenção tem o mérito da iniciativa em si. Mas, como o debate continuará na Câmara, mudanças ainda poderão ser feitas para aperfeiçoar a proposta.

A circulação de informações falsas é usada com os mais diversos propósitos. Há campanhas incontáveis na internet feitas com base em mentiras, assim como existe todo tipo de fraude. E no universo do embate político-ideológico o meio digital foi transformado em espaço aberto também para ilegalidades.

São necessários ritos e regras jurídicos para reduzirem ao máximo os prejuízos causados por fake news, ao mesmo tempo em que se responsabilizem e se punam os responsáveis, sem esquecer as próprias plataformas. Na velocidade com que conteúdos trafegam nas redes e com as tecnologias de adulteração de imagem e som sempre em evolução, é uma dura tarefa, mas que precisa ser executada sempre.

O projeto procura, acertadamente, facilitar a identificação de autores e o rastreamento de mensagens. O percurso de conteúdos disparados por no mínimo cinco pessoas para mais de mil precisará ser registrado e ficar disponível por até três meses. Acesso ao material, só com ordem judicial. O bombardeio de mensagens em época de campanha é recurso que já foi usado pelo PT e serve de base para processo que a chapa Bolsonaro-Mourão enfrenta no TSE. As armas digitais não discriminam ideologia.

Alvo errado – Editorial | Folha de S. Paulo

Solução para desinformação nas redes não pode sacrificar privacidade de usuários

O projeto de combate às fake news aprovado pelo Senado na noite de terça (30) é mais uma tentativa desajeitada dos políticos brasileiros de fazer algo para enfrentar a praga da desinformação na internet.

Resultado de discussões conduzidas de forma atropelada em meio à pandemia do novo coronavírus, a propositura nasceu com inúmeros vícios —e foi enviada à apreciação da Câmara dos Deputados com vários deles intocados.

Foram abandonadas algumas ideias esdrúxulas das primeiras versões, incluindo dispositivos que ameaçavam a liberdade de expressão, abriam caminho para censurar opiniões nas redes sociais e ofereciam proteção especial a políticos.

Ainda assim, o texto final preservou mecanismos que põem em risco a livre circulação de ideias e a privacidade dos usuários da internet, sem criar instrumentos capazes de impedir o uso das redes por organizações criminosas e outros grupos que agem de má-fé.

Destruição ambiental eleva pressão externa contra Brasil – Editorial | Valor Econômico

Por inúmeros motivos, seria importante começar, ainda que tarde, a fazer a coisa certa

O cerco contra a destruição ambiental no Brasil está se fechando. O mais recente episódio, não o único nem o mais eloquente, foi a decisão do presidente da França, Emmanuel Macron, de protelar a aprovação do acordo da União Europeia com o Mercosul, e de impedir acertos com quem não respeitar o Acordo de Paris. No mesmo dia, 265 organizações civis da Europa e América Latina denunciaram o governo brasileiro por agressões ao ambiente e aos direitos humanos.

Depois de sua conduta execrável em relação ao maior desmatamento na Amazônia em dez anos, em 2019 (10,1 mil km2) e refutar os fatos, demitindo cientistas que os divulgaram, o governo Bolsonaro diminuiu sua exposição na área. Isso não significou que suas ações contra o ambiente cessaram, apenas que seguem agora em silêncio, tão longe dos olhos públicos quanto possível. A ideia de “passar a boiada” enquanto as atenções estiverem voltadas para a covid-19 explicita um programa de governo.

Salles, que teve sigilo bancário de seu escritório de advocacia quebrado em investigação por suposto enriquecimento ilícito enquanto foi secretário do governador Geraldo Alckmin, desestruturou os órgãos como ICMBio e Ibama, militarizou as direções regionais ou as entrega a neófitos, agora indicados pelo Centrão. Anteontem foi nomeado como superintendente do Ibama em Santa Catarina, um administrador de empresas que desde 2014 está com bens bloqueados pela Justiça devido a ação pública por improbidade administrativa pelo Ministério Público (O Estado de S. Paulo, 1-7).

Educação, fundamento do País – Editorial | O Estado de S. Paulo

Deve ser intolerável submeter a educação a interesses eleitoreiros, políticos ou ideológicos. O MEC precisa de homens e mulheres responsáveis à sua frente

Ao concluir 18 meses, o governo de Jair Bolsonaro perdeu seu terceiro ministro da Educação. No dia 30 de junho, Carlos Alberto Decotelli entregou seu pedido de demissão após a revelação de sérias incongruências de seu currículo Lattes. Ao contrário do que afirmava, Decotelli não tinha o título de doutor pela Universidade Nacional de Rosário (Argentina), não era professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e não fez um pós-doutorado na Universidade de Wuppertal (Alemanha). Além disso, foram descobertos indícios de plágio em sua dissertação de mestrado. Diante de tal sequência de falsificações, era obviamente insustentável sua permanência na chefia do Ministério da Educação (MEC).

Assim, a pasta da Educação acumulou, no governo de Jair Bolsonaro, mais uma triste história. Além de ter batido recordes de ineficiência e agressividade, o ministro anterior, sr. Abraham Weintraub, saiu às pressas do País. O imbróglio de sua exoneração mostrou que o responsável, no plano federal, por orientar e coordenar a formação das novas gerações estava mais preocupado em escapar das consequências da lei brasileira. Dias antes, o STF mantivera-o como investigado no inquérito referente a ameaças contra a Corte.

Música | Gal Costa - Saudade da Bahia (Dorival Caymmi)

Poesia | Castro Alves – Ode a 2 de julho

Era no dois de julho. A pugna imensa
Travara-se nos cerros da Bahia...
O anjo da morte pálido cosia
Uma vasta mortalha em Pirajá.
"Neste lençol tão largo, tão extenso,
"Como um pedaço roto do infinito...
O mundo perguntava erguendo um grito:
"Qual dos gigantes morto rolará?!..."

Debruçados do céu... a noite e os astros
Seguiam da peleja o incerto fado...
Era a tocha — o fuzil avermelhado!
Era o Circo de Roma - o vasto chão!
Por palmas - o troar da artilharia!
Por feras - os canhões negros rugiam!
Por atletas - dous povos se batiam!
Enorme anfiteatro — era a amplidão!

Não! Não eram dois povos, que abalavam
Naquele instante o solo ensanguentado...
Era o porvir - em frente do passado,
A Liberdade - em frente à Escravidão,
Era a luta das águias — e do abutre,
A revolta do pulso - contra os ferros,
O pugilato da razão — com os erros,
O duelo da treva - e do clarão!...

No entanto a luta recrescia indômita...
As bandeiras — como águias eriçadas —
Se abismavam com as asas desdobradas
Na selva escura da fumaça atroz...
Tonto de espanto, cego de metralha,
O arcanjo do triunfo vacilava...
E a glória desgrenhada acalentava
O cadáver sangrento dos heróis!...

Mas quando a branca estrela matutina
Surgiu do espaço... e as brisas forasteiras
No verde leque das gentis palmeiras
Lá do campo deserto da batalha
Uma voz se elevou clara e divina:
Eras tu— Liberdade peregrina!
Esposa do porvir-noiva do sol!...

Eras tu que, com os dedos ensopados
No sangue dos avós mortos na guerra,
Livre sagravas a Colúmbia terra,
Sagravas livre a nova geração!
Tu que erguias, subida na pirâmide,
Formada pelos mortos de Cabrito,
Um pedaço de gládio — no infinito...
Um trapo de bandeira — n'amplidão!...