quarta-feira, 23 de setembro de 2020

Merval Pereira - Falácias na ONU

- O Globo

 "Os satélites não mentem”, me disse certa vez a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva. Fazia referência justamente a uma alegação feita ontem pelo presidente Bolsonaro no discurso de abertura da Assembléia Geral da ONU, a de que o Brasil sofre uma “das mais brutais campanha de desinformação sobre a Amazônia”.  

Ao mesmo tempo em que garante, também na tribuna da ONU, que o Brasil é o país que mais preserva o meio ambiente historicamente, Bolsonaro coloca em dúvida os dados brasileiros sobre o desmatamento coletados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e manobra para transferir o acompanhamento das queimadas para o Exército.  

Já estamos há mais de um ano com números crescentes de desmatamento na Amazônia, e o vice-presidente, Hamilton Mourão, que comanda o Conselho da Amazônia, desconfia que os dados são divulgados por algum inimigo interno do governo, para desmoralizá-lo, mesmo sendo eles públicos. Em acordo com o ministério da Defesa, houve a inclusão no orçamento de verba de R$ 145 milhões para comprar um novo satélite, para fazer o mesmo acompanhamento que é feito pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), cujo orçamento vem sendo desidratado.  

O Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam) faria o acompanhamento do desmatamento, aglutinando os dados de vários órgãos. No Inpe, uma reorganização interna leva a que se tema o esvaziamento do órgão. O que o governo parece desconhecer, ou não levar em conta, é que dados que vierem de uma reorganização desse setor estarão marcados pela desconfiança, pois o Inpe é reconhecido internacionalmente por sua qualidade técnica.  

Assim como estão marcadas as palavras do presidente Bolsonaro em seu discurso na ONU, onde descreveu uma realidade paralela que é rejeitada pelos interlocutores internacionais.

Bernardo Mello Franco - Na ONU, Bolsonaro falou para o curralzinho do Alvorada

- O Globo

A pandemia esvaziou o plenário da ONU e obrigou Jair Bolsonaro a mandar seu discurso por vídeo. Para o Brasil, foi um bom negócio. O capitão se dirigiu ao mundo como se estivesse no curralzinho do Alvorada. O país voltou a passar vergonha, mas deixou de gastar com diárias de hotel em Nova York.

Bolsonaro ignorou a comunidade internacional. Falou para seus seguidores fiéis, sem se preocupar com checagens ou desmentidos. Seu discurso empilhou mentiras, distorções e teorias conspiratórias. Tudo o que já estamos acostumados a ouvir por aqui.

O presidente se disse vítima de “uma das mais brutais campanhas de desinformação” sobre a Amazônia e o Pantanal. Em vez de explicar as queimadas, ele atacou quem se preocupa com o fogo. Vociferou sobre “interesses escusos” e brasileiros “impatrióticos”.

Desta vez, ele não tentou culpar o ator Leonardo DiCaprio. Atribuiu os incêndios a caboclos e índios que “queimam seus roçados”. O capitão mirou nos pequenos para proteger os grandes. Deixou de mencionar grileiros e latifundiários que devastam a floresta com a cumplicidade do governo.

Bolsonaro disse ter “tolerância zero com o crime ambiental”. A frase não combina com os fatos. Sua gestão desmontou órgãos de fiscalização, reduziu a aplicação de multas, deu carona a garimpeiros em avião da FAB.

Ricardo Noblat - Que país é esse que o presidente Jair Bolsonaro diz governar

- Blog do Noblat | Veja

Para alimentar o apetite dos seus devotos

Mentira nada tem a ver com fingimento, polêmica, controvérsia, desacerto ou engano. Mentira é uma afirmação ou negação que se faz sabendo-se de antemão que é falsa, o contrário da verdade.

O discurso do presidente Jair Bolsonaro, ontem, na abertura de mais uma Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), está repleto de mentiras e de meias verdades.

Foi um discurso coerente com sua trajetória desde o tempo dos quartéis quando planejou implodir um deles com a ajuda de bombas, à sua longa estadia na Câmara, e até chegar onde está.

Por isso não choca quem o conhece. Não foi um discurso feito para convencer ninguém, nem mesmo seus devotos, convencidos e obedientes. Esses só precisam ser bem alimentados.

No mundo da pós-verdade, onde cada um escolhe no que acreditar, Bolsonaro destilou as suas, nenhuma original, uma vez que ele as repete sem cansar nem ligar para seus efeitos.

Disse que durante a pandemia do Covid-19 concedeu auxílio emergencial de aproximadamente mil dólares a 65 milhões de brasileiros mais pobres (mentira).

Disse que estimulou, ouvindo profissionais da saúde, o tratamento precoce da doença. (Não disse que o fez exaltando os supostos benefícios do uso de uma droga ineficaz.)

Luiz Carlos Azedo - Chauvinismo e xenofobia


- Na entrelinhas | Correio Braziliense

 Além do preconceito étnico, há um viés de intolerância religiosa muito forte na fala de Bolsonaro, porque o caboclo é uma “entidade” do sincretismo religioso entre africanos e índios

Nicolas Chauvin foi um soldado francês condecorado por Napoleão Bonaparte por sobreviver a vários combates, severamente mutilado, depois de ser ferido 17 vezes. Tornou-se uma lenda para os franceses, até que as comédias escrachadas de vaudeville começaram a ridicularizar sua ingenuidade e fanatismo, dando origem ao termo que hoje é muito utilizado para caracterizar o sentimento ultranacionalista que leva os indivíduos a odiar as minorias e perseguir os estrangeiros. Na década de 1970, as feministas dos Womens`s Lib deram uma conotação mais abrangente ao termo, ao chamar os machistas de “porcos chauvinistas”.

Por causa de seu discurso de ontem na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), o presidente Jair Bolsonaro entrou para o rol dos líderes políticos chauvinistas da atualidade, o que não é bom para nenhum chefe de Estado nem para o Brasil, em particular. Seu discurso nacionalista não chegou a ser histriônico, mas fugiu à verdade e ignorou a realidade, sendo muito contestado interna e externamente. Além do chauvinismo, Bolsonaro revelou certa xenofobia, ao culpar os caboclos e índios pelos incêndios na Amazônia e Pantanal.

Xenofobia é outra palavra muito feia. Refere-se ao sentimento de hostilidade e ódio manifestado contra pessoas por elas serem estrangeiras ou serem enxergadas como estrangeiras. Trata-se de um preconceito social muito comum no mundo por causa do fluxo de migrações. Árabes e muçulmanos sofrem com isso na Europa, mexicanos e latinos nos Estados Unidos. Geralmente, a xenofobia está associada ao racismo. A forma como Bolsonaro trata os índios no Brasil sempre teve essa conotação xenófoba; a novidade é o preconceito que revelou na ONU em relação aos caboclos brasileiros.

Certos fenômenos da vida brasileira não se explicam pela sociologia ou pela ciência política, somente podem ser compreendidos quando nos socorremos da antropologia. A eleição de Bolsonaro, por exemplo, sua capacidade de se amalgamar aos evangélicos e capturar o sentimento de preservação da família unicelular patriarcal nas camadas mais pobres da população, ameaçada pelas dificuldades econômicas e as mudanças de costumes. Em contrapartida, Bolsonaro não consegue entender o nosso sincretismo religioso e o peso da miscigenação na formação da identidade brasileira. Se entendesse, não trataria com tanto preconceito os indígenas e os caboclos da Amazônia.

Vera Magalhães - Odorico, Severino e Bolsonaro

- O Estado de S.Paulo

 Brasil se destaca na ONU pela caricatura, e não pela diplomacia

Desde 1947 cabe ao Brasil abrir a Assembleia-Geral das Nações Unidas, na sede da ONU, em Nova York. O primeiro a fazer uso da prerrogativa foi Oswaldo Aranha. De lá para cá, nossa representação só deteriora. Com Jair Bolsonaro já são dois anos de negacionismo, mentiras e blablablá ideológico. Em 2019, presencial; ontem, em vídeo. Não importa, a vergonha é a mesma.

Infrutífero comparar as falas de Bolsonaro com outras igualmente infelizes de presidentes que o antecederam. De jaquetão e bigode engomado, José Sarney exibiu um inglês macarrônico. Mas não mentiu nem criou fantasias persecutórias aos olhos do mundo, nem tampouco exibiu desconexão completa da realidade.

Dilma Rousseff discursou várias vezes e sua fala recebeu merecidas críticas, por edulcorar os escândalos de corrupção que ajudaram a pavimentar seu impeachment, logo depois, por tergiversar com ataques à democracia em países de esquerda. Mas ela se conteve, por exemplo, e não falou em golpe ao discursar em abril, já às vésperas de ser afastada, para não levar assuntos domésticos e, mais, uma interpretação dos fatos, a um palco internacional.

Com Bolsonaro não há paralelo possível. Quando se pensava que nada poderia superar a fala do ano passado, na deste ano o presidente brasileiro disse cinicamente que o Brasil tem um dos melhores resultados no enfrentamento da covid-19, isso com mais de 137 mil mortos nas costas, enalteceu nossa política ambiental mesmo com a Amazônia e o Pantanal queimando aos olhos do mundo, converteu o auxílio emergencial em dólar e somou todas as parcelas para vender uma bonança dos mais pobres que é falsa e ainda inventou um conceito, a “cristofobia”, que, se bem explorado pelos seus ideólogos reacionários, pode fornecer mais empulhação para as eleições de 2022.

Elio Gaspari - Discurso de caçamba de caminhão

- Folha de S. Paulo | O Globo

Setor moderno do agronegócio faz o possível para se afastar de Bolsonaro

Jair Bolsonaro abriu os debates da Assembleia Geral da ONU com um discurso de vereador em caçamba de caminhão. Defensivo, com momentos de delírio, viu-se “vítima de uma das mais brutais campanhas de desinformação sobre a Amazônia e o Pantanal”.

Faz tempo, quando um oficial brasileiro perguntou ao general americano Vernon Walters quais eram os interesses dos Estados Unidos na Amazônia, ele respondeu: “A Amazônia é de vocês, cuidem dela”. Walters conhecia o Brasil como poucos, chegou a percorrer de carro a Rodovia Belém-Brasília.

As imagens de satélites e as fotografias da floresta mostram que não se está cuidando direito da Amazônia. Bolsonaro, contudo, estava na sua realidade paralela. Falou mal dos outros, bem de si, de seu governo e reclamou do preço da cloroquina.

A retórica dos agrotrogloditas encurralou Bolsonaro, e hoje o setor moderno do agronegócio faz o possível para se afastar dele. Afinal, já houve épocas em que o governo brasileiro viu-se em posições canhestras no cenário internacional, mas D. Pedro II nunca saiu pela Europa defendendo a escravidão. Astuto, enquanto pôde, fechou o acesso dos estrangeiros à navegação na Amazônia. Fez muito bem, pois alguns burocratas americanos pensaram na possibilidade de mandar para lá seus negros. Esse foi um tempo em que o andar de cima nacional mamava no atraso, mas fingia que era inglês. Pela primeira vez, desde a chegada das caravelas portuguesas, o governo brasileiro está orgulhosamente apenso à agenda do atraso.

A fala de Bolsonaro foi antecedida por um pronunciamento do ministro-general Augusto Heleno que denunciou “nações, entidades e personalidades estrangeiras” com um “interesse oculto mas evidente” de “derrubar o governo Bolsonaro”.

Bruno Boghossian - Faltou coragem a Bolsonaro

- Folha de S. Paulo

Na ONU, presidente posou como injustiçado, escondeu barbárie e atribuiu desastres ao acaso

Jair Bolsonaro nunca escondeu suas convicções sobre temas como direitos humanos, meio ambiente e saúde pública. O deputado polemista construiu fama com declarações selvagens e tentou transformar a barbárie em política de governo. Agora, ele quer esconder o fracasso dessas escolhas.

Faltou coragem ao presidente para defender suas posições primitivas na Assembleia Geral da ONU, nesta terça (22). No discurso, Bolsonaro posou como injustiçado e pintou as catástrofes que produziu como frutos de mero acaso.

O presidente manteve a linha negacionista diante da pandemia do coronavírus, mas não quis contar a seus pares que fez campanha contra a saúde dos cidadãos. Ele abriu o pronunciamento dizendo “lamentar cada morte ocorrida”. Se fosse mais transparente, poderia ter contado quantas vezes deu de ombros para as vítimas. “Não sou coveiro, tá?”, disse em abril.

Bolsonaro voltou a culpar a imprensa por disseminar “pânico entre a população”. Faltou ali a audácia de um líder que previu 800 mortes na pandemia e abriu mão da responsabilidade por uma crise que já matou mais de 130 mil pessoas.

Especialistas veem falsidades novas e antigas no discurso

Para especialistas, fala de Bolsonaro só mirou público interno

Por Daniela Chiaretti | Valor Econômico

SÃO PAULO - O discurso do presidente Jair Bolsonaro na abertura da 75ª Assembleia Geral das Nações Unidas foi “um inventário de fake news requentadas e de falsidades novas”. A frase do ex-ministro do Meio Ambiente Rubens Ricupero sintetiza o sentimento de ambientalistas, ex-ministros e pesquisadores.

“Não há uma palavra que corresponda à realidade, um pingo de honestidade. Se imaginaria que ele poderia, 12 meses depois do agravamento de problemas, reconhecer a realidade e dizer o que o governo fez. Mas, não”, segue o embaixador. “Repete todos os chavões do negacionismo sobre Amazônia e Pantanal. Atribui a conspirações, a campanhas internacionais, a interesses escusos a cobiça pela Amazônia.”

 “E ainda tem o desplante de botar a culpa nos mais vulneráveis, os índios e os caboclos”, diz. “O discurso nunca foi concebido para a Assembleia Geral da ONU. É para o público doméstico.”

A ex-ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira aponta “o tom errado” do discurso. “A fala sugere ruptura ou muita desconfiança de uma sociedade multicultural e diversificada como a brasileira”, diz Izabella, reagindo aos ataques de Bolsonaro às ONGs. “Não se pode escolher interlocutores em um regime democrático. Tem que se falar com todos.”

“Ele faz um discurso que lista os interesses do mundo contra o Brasil. Somente os interesses do Brasil são legítimos?”, questiona.

Para João Paulo Capobianco, vice-presidente do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), o discurso de Bolsonaro “é meio fanfarrão”. Ele explica: “Aparentemente ele luta contra os fatos e não apresenta proposta nenhuma.”

Capobianco era secretário-executivo do Ministério do Meio Ambiente durante a gestão de Marina Silva, quando se aplicou um rigoroso plano de combate ao desmatamento, que caiu de forma consistente, ano a ano.

Em relação à fala do fogo causado por índios e caboclos, Capobianco contesta. “Isso não é verdade. A maior parte das queimadas ocorre em áreas que eram florestas e foram derrubadas.”

Míriam Leitão - Erros econômicos de Bolsonaro na ONU

- O Globo

 Por Alvaro Gribel (interino)

O discurso do presidente Jair Bolsonaro na ONU foi marcado por imprecisões e erros na economia. O auxílio emergencial foi menor do que ele afirmou, o investimento estrangeiro caiu no primeiro semestre e as emissões de carbono do Brasil estão acima da participação do país no PIB mundial. Ao falar sobre os valores destinados ao combate à pandemia, Bolsonaro também misturou transferência de recursos com liberação de compulsório e empréstimos concedidos a consumidores e empresas.

O auxílio emergencial não chegou a US$ 1.000, como disse Bolsonaro. Somando-se todas as parcelas, o valor transferido à baixa renda alcançará R$ 4.200 até dezembro, algo em torno de US$ 777. O presidente parece não estar acompanhando a alta da moeda americana, pois utilizou a cotação do câmbio de janeiro deste ano para fazer a conta. Nesse período, o dólar disparou de R$ 4,20 para R$ 5,40, até 21 de setembro, dia anterior ao discurso.

No Investimento Estrangeiro Direto (IED), outro erro. Ao contrário do que disse Bolsonaro, ele caiu no primeiro semestre. Segundo o Banco Central, de janeiro a junho do ano passado entraram US$ 32 bilhões via IED, 27% acima dos US$ 25,3 bilhões do mesmo período deste ano. É falsa, portanto, a frase de que “no primeiro semestre de 2020, apesar da pandemia, verificamos um aumento do ingresso de investimentos, em comparação com o mesmo período do ano passado.”

Bolsonaro defendeu a política ambiental do governo e disse que o Brasil, apesar de estar entre as dez maiores economias do mundo, emite apenas 3% dos gases de queima de carbono. A comparação não faz sentido. Segundo dados do FMI, a economia brasileira representa 2,4% do PIB mundial. Por essa lógica, portanto, nossas emissões são maiores do que o tamanho do país na economia global.

Vinicius Torres Freire - Colegas de Guedes não confiam nele

- Folha de S. Paulo

Mercado desconfia do governo, juros voltam a subir, dólar continua caro, Bolsa trava

Credores do governo e negociantes de dinheiro em geral não andam confiando muito em Paulo Guedes. A opinião dos colegas de profissão do ministro sobre o futuro das contas públicas e da economia voltou a piorar desde meados de agosto. Não era tão ruim desde maio, pelo menos, quando o país sentia os efeitos recentes do atropelamento da pandemia e estava perto do auge a campanha golpista de Jair Bolsonaro.

A opinião dos negociantes de dinheiro fica registrada do modo mais objetivo nas taxas de juros que cobram para fazer empréstimos ao governo, por exemplo. As taxas para empréstimos mais longos têm subido. Mais precisamente, tem ficado maior a diferença entre as taxas de cinco anos ou mais e a taxa de um ano, que foi para perto do chão por decisão, na prática, do Banco Central (que assim o fez por não ver risco imediato de inflação).

E daí? Taxas de juros mais altas desestimulam investimentos das empresas em expansão de negócios. Outras medidas da opinião dos negociantes de dinheiro, como dólar anormalmente alto no Brasil e Bolsa travada ou caindo, também contribuem para o que os economistas chamam de “aperto das condições financeiras”. Se a coisa continuar assim malparada, haverá problemas adicionais para alguma recuperação econômica daqui em diante.

A explicação dos motivos da opinião dos negociantes de dinheiro, “o mercado”, é sujeita a mais controvérsia. O que os povos dos mercados têm dito é que as taxas longas subiram porque há menos confiança de que o governo Bolsonaro vá cumprir o contrato fiscal: manter o teto de gastos, fazer um programa de redução de despesas e, se der, outras “reformas”.

A desconfiança teria aumentado porque o governo daria sinais de que pode estourar as contas a fim de criar um Bolsa Família Verde Amarelo e investir mais em obras. Ou porque terá dificuldade de manter o teto sem tirar dinheiro dos servidores públicos, arrocho que Bolsonaro não quer fazer. Em resumo, não se sabe o que será do Orçamento nem em 2021.

Monica De Bolle* - Não estamos mais nos anos 80

 

- O Estado de S.Paulo

As décadas passam e os hábitos podem até permanecer os mesmos. Mas, as crises mudam

O título desse artigo parafraseia famoso artigo de um dos economistas latino-americanos mais brilhantes de sua geração, Carlos Díaz-Alejandro. Em 1984, Díaz-Alejandro publicou paper para o Brookings Papers on Economic Activity (BPEA) intitulado “Latin American Debt: I don’t think we are in Kansas anymore”. O artigo tratava da crise da dívida latino-americana dos anos 80, porque sua manifestação fora tão severa, com olhar reflexivo e em desalinho com o senso comum. Em essência, Díaz-Alejandro argumentava que a visão consensual de que a severidade da crise resultara dos erros de política econômica dos diversos países da região não fornecia um quadro suficientemente abrangente para entender a complexidade dos problemas enfrentados. Portanto, no lugar da versão em preto e branco – o Kansas no filme O Mágico de Oz que o autor referenciava – havíamos entrado em mundo technicolor, onde uma explicação tão somente de “senso comum” não mais dava conta do recado.

Teria grande curiosidade em ouvir o que diria Díaz-Alejandro sobre o momento atual da América Latina. Mais curiosidade ainda teria em escutar Dionisio Dias Carneiro, que hoje completaria 75 anos. Coube às coincidências fortuitas dessa vida que eu escrevesse nesse espaço tanto no aniversário de dez anos do seu falecimento, quanto no próprio dia de seu aniversário. Dionisio era o ocupante original dessa coluna – foi com grande honra que passei a escrever em seu lugar há quase exatos 10 anos. Mas, divago. 

Vejo com estranheza argumentos que remontam à década de 80 para explicar os perigos que corre o Brasil. Não que o Brasil não corra perigos. A epidemia descontrolada, as mortes crescentes, a tragédia das vidas, a falta de rumo de um governo que acaba de nos proporcionar mais um vexame na abertura da Assembleia Geral da ONU. Na economia, o Brasil corre grandes perigos. Contudo, entre eles não consta o risco de que o País não possa mais pagar o que deve como aconteceu no início dos anos 80. Muita gente pergunta, quando ouve a menção feita por alguns economistas, o que significa um país “quebrar”. O uso dessa palavra para se referir a uma nação de fato confunde. Mas, um país “quebra” – ainda que o termo seja bastante impreciso – quando já não tem mais condições de honrar suas dívidas.

Rosângela Bittar - Sem favorito

- O Estado de S.Paulo

Candidatos em SP estão todos no mesmo barco do amplo desgaste e baixa credibilidade

A mais prudente, equilibrada e consistente das apostas para a eleição municipal de São Paulo não arrisca um vencedor. Nem um nem dois, admitindo-se como provável o segundo turno. Mesmo com a nitidez da pesquisa Estadão/Ibope, publicada domingo, a demonstrar a força eleitoral de cada um.

São dois grupos, um à frente, na faixa de 6% a 24%, e outro bem atrás, entre 1% e 2% da preferência. O que se apresenta, portanto, é um quadro de amplas possibilidades. Tudo pode acontecer nos próximos 55 dias de campanha. Inclusive, nada. Não será surpresa se prevalecer o instantâneo deste momento.

Bruno Covas (PSDB) conta com apoio da maioria à sua administração e tem obras e programas sociais como provas de suas promessas de campanha. O eleitorado guarda dele uma imagem de dedicação à cidade, por haver se mantido no comando enquanto se submetia a um duro tratamento de quimioterapia. É seu o maior tempo para propaganda na TV e conseguiu uma coligação que reúne o apoio de dois grandes partidos, MDB e DEM.

Márcio França (PSB) ficou com uma fatia significativa da esquerda, desde o PDT aos sindicatos, e soma os efeitos residuais de sua passagem pelo governo. Ninguém lhe tira a condição de principal candidatura anti-Doria, seu último adversário de campanha, ainda na memória. É este o papel que vai encarnar, com vontade.

Embora na vala comum dos que marcaram 1% nesta largada, o PT deve reagir. A expectativa é de crescimento, depois que as pesquisas sobre a chance da candidatura Lula em 2022 forçaram a união interna e a reacomodação dos grupos.

O que pensa a mídia – Opiniões / Editoriais

Na ONU, Bolsonaro nada explica sobre queimadas – Opinião | Valor Econômico

Sem levar a sério a preservação do ambiente, será cada vez mais difícil fazer negócios - qualquer negócio

A abertura da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (75 anos), com um discurso do presidente Jair Bolsonaro, e, na sequência, outro do presidente dos EUA, Donald Trump, ilustrou o que representa a guinada do multilateralismo para um nacionalismo primitivo e tosco. Bolsonaro e Trump mostraram vários pontos em comum em suas palavras. O Brasil tem o segundo maior número de vítimas da covid-19 (137 mil) e os EUA, o primeiro (200 mil), mas seus dois presidentes gastaram tempo para explicar porque consideram ter feito um grande trabalho a respeito. Trump pôs a culpa na China, enquanto Bolsonaro jogou a responsabilidade na mídia, que “politizou o vírus, disseminando o pânico entre a população”. Trump encerrou sua fala como se estivesse em seu clube de golpe dando conselho a amigos: “Estou orgulhosamente colocando os EUA em primeiro lugar, assim como vocês deveriam colocar seus países em primeiro lugar”.

Bolsonaro fez basicamente um discurso defensivo, e, como era esperado, debitou as queimadas devastadoras na Amazônia e no Pantanal a “interesses escusos” que visam “prejudicar o Brasil”. Na véspera, o ministro do GSI, general Augusto Heleno, foi um pouco mais enfático, ao dizer que esse conluio entre organizações, países e personalidades que criticam a fogaréu desmedido na Amazônia buscam “derrubar o governo de Jair Bolsonaro”. Em 2019, nessa mesma época, a floresta já ardia, mas Bolsonaro dedicou seu tempo na ONU a perorar contra o socialismo, a Venezuela, Cuba, o Foro de São Paulo, deixando em segundo plano a Amazônia.

 “O Brasil é líder em preservação de florestas tropicais”, disse Bolsonaro, que deveria usar o verbo no passado para ser fiel à realidade. O presidente de um governo ativamente engajado em desmontar as estruturas de proteção ao ambiente negou sua responsabilidade nos incêndios criminosos, declarando-se “vítima de uma brutal campanha” com interesses comerciais de países que não conseguem competir com o Brasil.

Resta explicar então ao planeta o aumento das queimadas, um paradoxo para o qual o governo não tem justificativas críveis, mas apenas hipóteses estranhas. Anteontem, o general Augusto Heleno deu a entender que a Amazônia sofre de auto-combustão espontânea (“fenômenos naturais”). Em seu discurso na ONU, Bolsonaro apresentou outra versão, igualmente extravagante. “Nossa floresta é úmida e não permite a propagação do fogo em seu interior”, disse. “Os incêndios acontecem praticamente nos mesmos lugares, no entorno leste da Floresta, onde o caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência, em áreas já desmatadas”.

Se é possível entender alguma coisa dessa algaravia, é que não há aumento do desmatamento, mas sempre o mesmo fogaréu, no mesmo lugar, provocado por caboclos e índios em um ciclo ancestral de plantio que depende do fogo.

Para decifrar esse enigma, que os satélites do Inpe desmentem, o governo destinará R$ 578 milhões para o Ministério da Defesa adquirir novos sistemas de detecção que indicarão provavelmente a mesma coisa: grileiros, garimpeiros e fazendeiros inescrupulosos destruindo a floresta, como ocorre há décadas e cuja ação se intensificou agora porque o governo simplesmente desmontou a vigilância e a fiscalização e desistiu de puni-los.

A pressão para que o governo brasileiro faça algo aumentou muito e agora vem não mais apenas de Ongs, mas de banqueiros, investidores, cadeias de supermercados e países que se empenham para ampliar suas ações contra o aquecimento global. Uma das consequências evidentes, para o qual o governo já foi alertado, é a de que a União Europeia, por exemplo, tende a não permitir no futuro a compra de bens de países que agridem a natureza e destroem o ambiente. Ainda que seu efeito seja protecionista, não faz sentido obrigar 27 países a adotarem normas custosas por décadas para permitir que quem não fez sacrifícios se iguale aos que fizeram.

Ontem, o general Augusto Heleno subiu alguns decibéis em suas invectivas e disse que o governo pode retaliar países que boicotem produtos brasileiros por questões ambientais. É possível que tarifas sejam impostas pelo maior bloco comercial do planeta, a UE, mas isso parece ser apenas um detalhe diante do destemor brasileiro. Mas há uma encrenca séria a ser desarmada no acordo UE-Mercosul e não será com bravatas que isso vai acontecer. Sem levar a sério a preservação do ambiente, será cada vez mais difícil fazer negócios - qualquer negócio.

Bolsonaro não ajuda o Brasil na ONU – Opinião | O Globo

É impossível dar explicações que tirem do governo responsabilidades sobre o meio ambiente e a pandemia

Música | Fernanda Takai - Odeon

 

Poesia | Vinicius de Moraes -Natureza humana

 Cheguei. Sinto de novo a natureza

Longe do pandemônio da cidade

Aqui tudo tem mais felicidade

Tudo é cheio de santa singeleza


Vagueio pela múrmura leveza

Que deslumbra de verde e claridade

Mas nada. Resta vívida a saudade

Da cidade em bulício e febre acesa

 

Ante a perspectiva da partida

Sinto que me arranca algo da vida

Mas quero ir. E ponho-me a pensar

 

Que a vida é esta incerteza que em mim mora

A vontade tremenda de ir-me embora

E a tremenda vontade de ficar