Devemos notar muito bem o dualismo que observamos na economia brasileira, a saber, de um lado, o sistema colonial que nele prevalece; doutro e esboçando-se no interior daquele sistema, novas formas econômicas que apontam na direção de um desenvolvimento diferente que sempre tivemos no passado. Essa distinção é essencial para se ter um panorama adequado da economia brasileira e para nele se orientar, pois doutro modo resulta a ilusão, tão freqüente na observação e interpretação de nossa economia, que podemos passar como que automática e espontaneamente de uma para outra linha de desenvolvimento; e, mesmo que não há que preocupar-se com o assunto, uma vez que de qualquer maneira todos caminhos levam num mesmo sentido que não se procura caracterizar suficientemente e que se inclui indiferenciadamente na expressão vaga e indeterminada de “desenvolvimento.”
Voltamos assim à questão da presumida unicidade do desenvolvimento que já consideramos em capítulo anterior. Essa concepção se afirma particularmente, como se viu, na Teoria do Desenvolvimento esboçada sobretudo pelos economistas da CEPAL para os países da América Latina. A noção de “desenvolvimento” aparece muitas vezes nos trabalhos desses economistas como simples efeito de uma difusão da técnica moderna, difusão essa que é tomada num sentido muito semelhante e podemos dizer mesmo idêntico àquele que encontramos na Antropologia com relação à difusão cultural. É assim que Prebisch, depois de assinalar que a moderna técnica industrial “irrompe na Grã-Bretanha, espalha-se para o continente europeu ... alcança os Estados Unidos.... finalmente manifesta-se no Japão...”, conclui que esse processo de difusão atinge agora os países periféricos do mundo moderno, e escreve: “Examinado de perto, verifica-se que o desenvolvimento econômico dos países que formam a periferia constitui uma nova fase de propagação universal dos novos métodos da técnica produtiva, ou melhor, no processo de desenvolvimento orgânico da economia mundial”.
Esse decalque de métodos empregados pela Antropologia na reconstituição da história de povos primitivos (e que somente assim restritivamente empregados se justificam) não tem no domínio da interpretação de uma história econômica, que é de ontem, razão de ser. E, quando proposto como premissa de uma análise econômica de que se pretendem tirar conclusões e soluções práticas, é de um simplismo elementar. O problema de países periféricos de nosso tipo não consiste simplesmente em serem atingidos pela “propagação da técnica moderna” e adotarem em conseqüência essa técnica; e sim de criarem as condições para isso, o que é bem diferente. E, sobretudo, colocarem essa técnica a serviço de um objetivo de antemão determinado; determinação essa que constitui o ponto mais complexo da questão. De altíssimo nível técnico são as refinarias de petróleo da Venezuela e do Oriente, mas nem por isso elas significam muita coisa para esses países e suas populações.
Além disso, atribuir o eventual progresso da técnica em países periféricos a um “progresso de desenvolvimento orgânico da economia mundial” é jogar no mesmo saco as finanças de Wall Street, que constituem sem dúvida um dos mais salientes traços daquele “desenvolvimento orgânico da economia mundial”, e o esforço de libertação econômica dos países coloniais que pretende colocar aquele progresso da técnica a serviço de uma tal libertação.
Em suma e no essencial, o desenvolvimento de países como o nosso pode representar simplesmente, como aliás já se viu antes, um crescimento dentro dos mesmos moldes de sempre e que nada trazem de substancialmente novo. O que se verificou no Brasil, durante um século e mais, no domínio da economia cafeeira, é uma evidência disso. Não discuto aqui, por enquanto, a eventual preferência por esse tipo de desenvolvimento. Mas sejamos claros, pelo menos, quanto à natureza dessa preferência; e, ao escolhermos o futuro econômico do Brasil, saibamos precisamente em que consiste a nossa escolha.
Essa resenha, sumária embora, das nossas possibilidades no terreno da produção primária e dos horizontes que ela oferece já não digo para a expansão da economia brasileira, mas para uma simples conservação de valores e manutenção do nível material e tão baixo da população do país, uma tal resenha é suficiente para atenuar e contrabalançar o otimismo, sincero ou não, daqueles que pretendem deixar as coisas como estão, na esperança que algum dia, por obra de não sabemos que acaso, tudo se resolva satisfatoriamente. Mas ao invés dessa esperança aleatória parece-me impor-se uma conclusão mais concorde com os fatos e é que a história do Brasil como exportador de produtos primários atingiu sua última etapa e se está céleremente encerrando. E se acima propus a alternativa de conservar ou transformar, já agora creio não haver exagero na substituição do “conservar” por “perecer.”
Mas transformar como? A proposição não é nova; ela já nem mais pertence unicamente a vozes isoladas, mas forma correntes de pensamento, inclusive em círculos que por outros lados são nitidamente conservadores. Entre outras manifestações de envergadura com tal caráter, lembrarei o amplo movimento esboçado em 1944 e liderado pelo industrial e economista Roberto C. Simonsen, movimento esse que repercutiu fundamentalmente nas esferas oficiais e em congressos de classes conservadoras e que se propunha, sem restrições, uma reestruturação básica da economia brasileira. Não caberia aqui discutir essas e outras manifestações da mesma natureza, nem os fatores, sobretudo de ordem política, que nos últimos anos amorteceram ou desviaram tais impulsos renovadores de suas finalidades; e lembro-os unicamente para mostrar como a questão se propõe agudamente há muito tempo e já sob forma de programas concretos de ação. Não estou portanto no domínio da pura especulação teórica, nem muito menos fantasiando situações como pretexto para dissertações doutrinárias.
Consideremos esses projetos reformadores e as idéias dominantes no assunto, observando particularmente, como é natural aqui, as suas implicações de teoria econômica. Eles se acentuam em dois pontos: de um lado, no desenvolvimento das forças produtivas e do aparelhamento material do país; no aumento em suma da produtividade, a ser conseguido através de um largo planejamento da economia brasileira; e doutro, na questão dos capitais necessários para realizar um esforço reconstrutivo, isso considerando a carência desses capitais no Brasil e a insuficiência, entre nós, do processo de capitalização. Em rigor, esses dois pontos se conjugam e completam, uma vez que se poderia dizer que é através da solução dada ao segundo que se resolveria o primeiro. Na realidade todavia, eles são em geral propugnados por diferentes pessoas e correntes de opinião, acentuando-se umas no aspecto do planejamento, sem maior preocupação com o processo de capitalização; outros, pelo contrário, insistem mais nesse processo. Entre os primeiros, encontramos o acima citado Roberto C. Simonsen, bem como o Conselho Nacional de Política Industrial e Comercial que organizou o mais completo programa de planejamento já formulado no Brasil; programa esse aprovado pelo Congresso Brasileiro da Indústria realizado em 1944. Lembremos ainda a Conferência das Classes Produtoras de Teresópolis em 1945, onde o princípio do planejamento foi por unanimidade apoiado.
Doutro lado, aqueles que insistem mais (aliás muito deles exclusivamente) no problema dos capitais e do processo de capitalização, encontra-se em primeiro lugar um grupo de economistas reunidos sobretudo em torno do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas, que se tem dedicado à análise técnica do assunto. O principal título contudo com que se apresenta aquela tendência (e é por isso que a trago para cá) é que ela reúne efetivamente o consenso de grande número de opiniões muito generalizadas entre nós que antepõem a qualquer programa de desenvolvimento econômico a questão de carência de capitais.
Essa diferença de orientação é maior do que se possa à primeira vista julgar – aliás, como já referi, parece mesmo não haver no caso divergência alguma e, pelo contrário, ambas as tendências se harmonizariam e completariam perfeitamente bem. Em todo caso, não pretendo aqui discutir o assunto que tem no momento um interesse secundário e levaria a terreno estranho à matéria em foco. Tanto mais que as duas posições citadas se prendem no plano teórico a uma mesma idéia dominante e fundamental que é a de acentuar, na solução do problema econômico brasileiro, o aspecto em particular da produção e da produtividade, em prejuízo de outro. No planejamento, o que se tem sobretudo em vista e o que condiciona em geral o plano, são a produção, o aparelhamento técnico e a mobilização dos recursos naturais. Quando àqueles que insistem no processo de capitalização, é óbvio que suas preocupações estão essencialmente voltadas para os empreendimentos produtivos de que a capitalização seria uma preliminar. Evidentemente essas questões não podem ser excluídas de qualquer solução a ser dada, no momento atual, aos problemas brasileiros. As minhas reservas são relativas ao destaque que lhes é dado, sem a consideração que a meu ver deveria ser preliminar ou, pelo menos conjunta e no mesmo plano, da questão do consumo e do mercado. No caso brasileiro, e entre os dois pólos do mecanismo econômico, a produção e o consumo, a oferta e a procura, escolheria o segundo como ponto de partida e baliza do assunto.
Mas antes de considerar especificamente o caso brasileiro, não será fora de propósito lembrar que a própria teoria econômica no que tem hoje de mais autorizado e acatado, vem deslocando há muito tempo (quase vinte anos pelo menos) seu ponto-de-vista antes e tradicionalmente fixado de preferência no lado da produção do valor, para o do fim a que se destina, pelo menos em princípio essa produção, a saber, o consumo. Durante um século e mais, ou seja praticamente da aurora da Economia Política, tal como a entendemos hoje, a teoria econômica ortodoxa se construiu na presunção da famosa lei atribuída ao francês Jean-Baptiste Say (e por isso conhecida por lei de Say, mas na realidade devida a James Mill) segundo a qual “a produção cria o seu próprio mercado.” As repetidas crises do sistema capitalista e finalmente a estagnação contemporânea às vezes interrompida por breves períodos de prosperidade (o inverso portanto do passado, quando a prosperidade era a regra e a depressão, o eventual e transitório) isso obrigou os economistas burgueses a confiarem menos na lei de Say e no presumido automatismo do ajustamento entre produção e consumo; e a voltarem suas atenções para o verdadeiro mecanismo desse ajustamento ou antes desajustamento, como a experiência tinha demonstrado. A chamada “revolução keynesiana”, hoje consagrada, não vem a ser em última instância senão uma explicação e tentativa de correção daquele desajustamento. Uma explicação, e tentativa apenas, entre outras muitas que as precederam no campo da Economia burguesa; e cujo valor maior que as anteriores está somente no fato de se proporem num momento mais oportuno para o capitalismo, isto é, quando ele já podia mais ostentar o otimismo do passado. Foi-lhe reconfortante uma explicação teórica e mais ou menos bem manipulada de suas crises e que não envolvesse expressamente a condenação do sistema que é o seu.
Mas seja como for, o que interessa para nós aqui é observar que a essência do keynesismo (como antes e paralelamente a ele já era da ação política de alguns estadistas práticos que procuravam por processos administrativos atenuar o efeito catastrófico das crises capitalistas) consiste em provocar o que pela lei de Say deveria resultar automaticamente da produção, isto é, o mercado para ela. Ora é precisamente isso que se propõe no Brasil, embora naturalmente em circunstâncias muito diferentes daquelas que inspiram a Economia Política dos grandes centros capitalistas do mundo atual; e por razões também diferentes. A que vêm então Keynes, seus antecessores e sucessores? Nisso que destruíram ou contribuíram para destruir em certos setores, justiça lhes seja feita, preconceitos que embora ainda tenham sua força, acham-se bem abalados; e atuariam muito mais, não fosse aquele desmentido da teoria oficial, embaraçando a solução de problemas que sem tais preconceitos se encaminharia muito mais facilmente.
Esse é o nosso caso. Embora as condições do Brasil sejam tão profundamente distintas daquelas para as quais teorizaram e medicaram os economistas da “revolução keynesiana”, essa “revolução” e a autoridade que traz no seu bojo podem servir entre nós pelo menos para facilitarem o deslocamento do ponto-de-vista de muitos economistas e orientadores da política econômica do país, da questão da produção para a do consumo; o que no Brasil e nas condições atuais é particularmente importante, como logo veremos. É claro, segundo penso, que toda a recente teoria econômica de prevenção e terapêutica anticíclicas não tem e não pode ter projeção futura muito grande, porque em matéria de aprofundamento das contradições do sistema capitalista, ela não vai muito além do reconhecimento que tais contradições são mais profundas do que pensava a Economia Política clássica; e que o “livre jogo dos fatores naturais” não é suficiente para corrigir os desajustamentos do sistema, como acreditavam os pais da Economia Política do século passado. Aquela teoria conserva-se por isso na superfície e exterioridade do mecanismo capitalista e pensa corrigir seus desarranjos com simples malabarismos financeiros ou pouco mais que isso. É assim insuficiente e improcede na prática: não resolverá as contradições do sistema capitalista, que dentro desse sistema são insolúveis. Mas considerada generalizadamente, constituiu sem dúvida uma grande mudança de concepções, pois reconhece-se com ela afinal (embora naturalmente sem confessá-lo expressamente e disfarçando com cuidado o fundo da questão) que a produção econômica não pode significar unicamente um processo para os titulares do capital se apropriarem do trabalho alheio sob a forma de lucros; e que em certos momentos pelo menos (até aí vão os “revolucionários” do keynesismo) é preciso restaurar a produção no seu verdadeiro papel que embora lhe seja aparentemente concedido pela Economia burguesa, de fato e no funcionamento real do sistema capitalista ocupa, um lugar secundário e serve sobretudo de pretexto; a saber, que a produção se destina a satisfazer necessidades humanas.
Obtém-se com esse reconhecimento (ou obtêm pelo menos aqueles que se aferram à tradição burguesa, porque para outros o caminho já se acha há muito desimpedido) uma base teórica sobre a qual é possível desenvolver uma nova Economia onde o consumo seja devidamente levado em conta. Isso não resolverá, como referi, as contradições do capitalismo e os problemas que se propõem naqueles países de grande desenvolvimento capitalista onde tais contradições chegaram ao auge. Mas no Brasil, país periférico do sistema e onde o capitalismo não é por enquanto senão função dessa posição marginal e complementar que ocupa, a questão se apresenta diversamente. Nós temos ainda, por assim dizer, que “construir” o nosso capitalismo; e é assim da maior oportunidade uma concepção que chama a atenção para uma das peças essenciais do sistema, o mercado, de que a Economia clássica nunca se preocupou devidamente porque era um dado implícito nas condições do Velho Mundo e depois dos Estados Unidos, por força do rumo que tomou lá a colonização; mas que no Brasil se apresenta em circunstâncias peculiares, isto é, não se integra com a produção num sistema de conjunto (no sentido da estruturação clássica do capitalismo), uma vez que a economia brasileira se organizou e dispôs suas forças produtivas não em função do consumo dos participantes nela e sim na de um mercado estranho. Não é consumo dos indivíduos engajados na produção que se faz o mercado dessa produção e sim o consumo de outros indivíduos completamente estranhos àquela produção e largamente dela apartados. Mas não insistirei num ponto já abordado mais acima e que constitui a linha central de pensamento nesta tese.
A nova Economia vem assim ao encontro, de certa forma, das necessidades teóricas de uma Economia a ser elaborada para nossas condições, nossos fins e propósitos. Não no seu conteúdo, repito, que envolve fatos bem distintos daqueles com que devemos lidar; e sim no seu ponto de partida, bem como na prática essencial a que leva e a que em derradeira instância se reduz; a saber, a do estímulo do consumo. Essa analogia, contudo, como logo se vê, é muito superficial e insuficiente para permitir que nos inspiremos na nova Economia, atribuindo-lhe maior significação, para nosso caso, que o de um lembrete, sem dúvida útil para muitos, mas não mais que isso. Para elaborarmos a nossa Economia e orientarmos com ela uma política econômica que leve aos fins almejados, é preciso que observemos os ensinamentos de nossa história, como foi esboçado nos capítulos anteriores. E o primeiro daqueles ensinamentos é que no ponto de partida da própria existência de nossa economia se encontra o estímulo comercial como fator singular e decisivo. A rigor mesmo, esse estímulo foi o responsável pela própria eclosão da nacionalidade brasileira, pois é lícito afirmar que se o Brasil surgiu e se fez uma nação, é porque esse território que hoje o constitui se mostrou adequado à satisfação de uma demanda comercial.
Essas circunstâncias se perpetuam através de nossa história e repetem-se nos diferentes ciclos econômicos nos quais e pelos quais se foi constituindo o Brasil. Isso se refletirá profundamente, como se viu anteriormente, na estrutura e natureza de nossa vida econômica. A atividade produtiva será estritamente condicionada pelo mercado e uma função direta dele. Isso pode parecer um truísmo e, de fato considerado teoricamente e, sobretudo, nos dias de hoje, assim é. Mas na prática a situação se apresenta diferentemente quando o mercado é uma realidade sempre presente e com o qual não há que preocupar-se ou pelo menos não há que preocupar-se essencialmente. É o que ocorreu na aurora do capitalismo e, até época relativamente próxima, salvo em situações muito particulares e temporárias que foram as crises periódicas (quando elas ainda tinham esse caráter esporádico). Lembremos que o problema econômico da Europa, onde nasceu o capitalismo, sempre fora o da produção; e, até o advento da revolução industrial, determinava-se aquele problema pela carestia e carência de produção capaz de satisfazer as necessidades da população européia. Cingia-se assim a questão à organização da produção. Aliás, o capitalismo industrial moderno não exprimiu senão uma tal organização no plano a que a revolução industrial elevara a técnica da produção.
É uma situação bem diferente da do Brasil, onde a organização da produção foi sempre um problema subsidiário e secundário em que o país se podia louvar nos conhecimentos e experiência de outros povos. De qualquer modo, nunca foi a insuficiência da produção que propôs nossos principais e mais graves problemas, nem foi ela que determinou nossas maiores dificuldades. O importante para a economia brasileira sempre foi a questão do mercado, o que nos grandes centros capitalistas nunca se propôs em geral, e sobretudo nos primeiros tempos, de maneira aguda. Na Europa, como depois nos Estados Unidos, a própria produção, na medida do seu desenvolvimento, foi criando o seu mercado. Na primeira fase do capitalismo, a lei do Say é perfeitamente justa; e não foi sem razão que ela se implantou tão solidamente no terreno da teoria econômica até época recente. Ora, isso não ocorreu no Brasil: o mercado, por ser externo (o interno, como vimos, era e é ainda função do externo) sempre independeu da produção; esta, portanto, não podia influir nele, no sentido que aqui nos interessa.
Por todos esses motivos, a afirmação de que a atividade produtiva e o estado geral da economia brasileira são função do mercado adquire um grande e particular sentido concreto. Deixa de ser a aparente tautologia que à primeira vista se afigura. A produção e o nível das atividades produtivas são efeito, não causa; e não há, em sentido contrário, ação apreciável; isto é, não constitui a produção e seu nível um fator ponderável, no essencial da economia brasileira, de estimulação econômica. Isso é exato mesmo para a situação criada no Brasil em sua última fase histórica, quando se formou no país ou começou a se formar um rudimento de mercado interno apreciável; e é exato ainda no que diz respeito a esse próprio mercado interno e às atividades que a ele se destinam. A razão é que, apesar de todas as transformações ocorridas, elas ainda não foram suficientes para deslocarem do mercado externo os fatores essenciais da conjuntura brasileira. O mercado externo continua sendo a base essencial de nossa economia; e o próprio mercado interno é função dele. Essa situação cria, aliás, uma situação complexa nas relações entre produção e mercado, pois se de uma parte o alargamento do mercado externo estimula o interno e, por conseguinte, a produção indígena que para ele se destina, doutra também favorece as importações que se farão muitas vezes em detrimento e prejuízo daquela produção. É o que ocorreu entre outros e de maneira flagrante nos anos que precederam à grande depressão de 1930, quando a alta conjuntura da exportação cafeeira determinou grave situação para setores importantes da produção brasileira, como em particular na indústria téxtil. Isso nos lembra mais uma vez que no processo econômico de países do nosso tipo entram variáveis que não se costumam ordinariamente considerar na teoria ortodoxa da Economia Política. Não é contudo essa a oportunidade própria para discutir o assunto mais a fundo.
Em conclusão, é no problema do mercado que em respeito à constante da economia brasileira que vimos acima, é aí que se há de acentuar em primeiro lugar a atenção da política econômica do país. Assim tem sido aliás desde sempre; só que até hoje e nos termos conservadores do sistema colonial dominante entre nós, aquele problema tem sido o do mercado externo. Tratando-se agora da transformação do sistema, mas necessariamente a partir dele e do legado que apresenta e respeitando, por conseguinte, as premissas que ele estabelece, é ainda do problema do mercado, mas dessa vez do interno, que se deve partir. Qualquer política econômica que pretenda realizar modificações substanciais da estrutura econômica do Brasil há de abordar a questão pelo ângulo da organização daquele mercado, que evidentemente existe, tanto efetiva como sobretudo potencialmente em proporções que são suficientes, como vimos, para abrirem perspectivas amplas à política de construção de uma economia verdadeiramente nacional. Quanto ao que diz respeito à produção, isso deverá ser considerado em função daquela organização do mercado. Trata-se de uma questão complementar que não se propõe por si e muito menos isoladamente como se faz tantas vezes. Mais precisamente, uma tal posição do problema se exprime generalizadamente pela norma de estruturar o mercado – isto é, mobilizá-lo e o organizar para a produção existente e desde logo possível no país; e como contrapartida também organizar e orientar a produção para o mercado existente e potencial que ofereça perspectivas de maior alcance e projeção futura. Isso poderá soar, assim de momento, como chuva no molhado. (...).
[1]Interpretação do Processo de Desenvolvimento Econômico, Revista Brasileira de Economia, março de 1951, p. 8.
[2]Eis a passagem de James Mill em que se encontra formulada a pseudolei de Say: “Não podem jamais faltar compradores para todas as mercadorias. Quem põe à venda uma mercadoria pede que lhe seja dada outra em troca e é, portanto, comprador pelo mesmo fato que é vendedor. Compradores e vendedores de todas as mercadorias tomadas em conjunto devem, portanto, por uma necessidade metafísica (metaphisical), se contrabalançarem. Se há mais vendedores que compradores de uma mercadoria é preciso que haja mais compradores que vendedores de outra mercadoria”(Elements of Political Economy. 3 rd. And revized edition, 1826).
* Este tópico foi extraído do capitulo 6 do livro Diretrizes para uma Política Econômica Brasileira, São Paulo, Brasiliense, 1954. O título acima é do organizador da coletânea.