- Gramsci e o Brasil
Julius Martov foi uma das mais proeminentes personagens da Revolução Russa de 1917. Líder dos internacionalistas, facção de esquerda dos mencheviques, ele se opôs à participação dos socialistas nos governos provisórios após a Revolução de Março e a abdicação do czar Nicolau II [1]. Foi também contrário à permanência da Rússia na I Guerra Mundial. A continuidade no conflito agravou a crise econômica do país e a insatisfação popular abriu caminho para a Revolução de Novembro, quando então os bolcheviques tomaram o poder, liderados por Vladimir Lenin [2].
No dia 8 de novembro, dia seguinte à insurreição, durante o 2º Congresso dos Sovietes — os conselhos de representantes de operários, camponeses, soldados e marinheiros — Martov propôs a formação de um governo de união de todas as correntes do socialismo russo para evitar que o país mergulhasse no caos. Para desespero de Martov, a maioria dos mencheviques e socialistas revolucionários se retirou do encontro em protesto contra o levante. O gesto dificultou a negociação apoiada por líderes bolcheviques como Grigori Zinoviev e Lev Kamenev. No entanto, a resposta da maioria bolchevique à proposta veio de Leon Trotski:
As massas populares seguiram nosso estandarte e nossa insurreição é vitoriosa. E agora nos dizem: Renunciem à vitória, façam concessões, cedam. A quem? Eu pergunto: a estes grupos deploráveis que nos abandonaram ou a quem apresenta tal proposta? [...] Ninguém na Rússia continua ao lado deles. Um acordo só pode ser firmado entre partes iguais [...]. Mas aqui não há acordo possível. Àqueles que nos deixaram e àqueles que nos aconselham a transigir, respondemos: Vocês são corruptos miseráveis, sua função acabou; vão para onde devem ir — para a lata de lixo da história.
Martov então se concentrou nas eleições para a Assembleia Constituinte, realizadas no final daquele mês. Porém, os mencheviques obtiveram uma votação de apenas 3%. Contrariando a arrogância e o sectarismo de Trotski, os vencedores foram os socialistas revolucionários, com 40% dos votos, ao suplantarem os 24% dados aos bolcheviques [3]. Os liberais do Partido Constitucional Democrata obtiveram 5% dos votos. Em minoria e com ajuda de soldados que participaram da insurreição, os bolcheviques fecharam a Constituinte.
Iniciada a guerra civil, Martov apoiou o Exército Vermelho contra a intervenção estrangeira e o Exército Branco, comandado por generais monarquistas. Apesar do apoio ao governo soviético no combate à contrarrevolução, o líder menchevique foi um crítico contundente da repressão generalizada, opondo-se ao fechamento de jornais liberais e às perseguições aos partidos que faziam oposição pacífica. As posições de Martov indicavam a possibilidade de uma alternativa democrática e socialista tanto ao último governo provisório — liderado pelo trudovique Alexander Kerensky —, quanto à ditadura comunista que se seguiu [4]. A bibliografia sobre Martov em português é quase inexistente. Após o fim da União Soviética, em 1991, foram publicados vários livros revalorizando o papel de Martov na Revolução Russa. Porém, a obra fundamental sobre ele foi publicada ainda em 1967 pela Editora da Universidade de Cambridge, do Reino Unido, em coedição com a Universidade de Melbourne, da Austrália. Intitulada Martov – A Political Biography of a Russian Social Democrat, é de autoria de Israel Getzler (1920-2012), professor da Universidade de Jerusalém, e continua inédita no Brasil.
A questão democrática
A obra de Getzler traz as polêmicas entre Martov e Lenin, como a de 1903, durante o 2º Congresso do Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR), sobre a organização do partido: se dirigido por um comitê centralizado, mas aberto à filiação de todos os que aderissem ao seu programa, como defendido por Martov, ou se por um círculo composto exclusivamente de revolucionários profissionais, como queria Lenin. A proposta vencedora foi a de Martov. O livro relata a ação posterior de Lenin para alcançar a maioria, pois, mesmo vencendo no Congresso, Martov e seus partidários ficaram em minoria no Comitê Central, o que causou a divisão do POSDR em duas alas: mencheviques (partidários da minoria, em russo) e bolcheviques (partidários da maioria).
A discussão sobre a forma de organização partidária revelava duas questões de fundo que marcarão todas as divergências entre Martov e Lenin: a avaliação que faziam do nível de desenvolvimento econômico da Rússia e a concepção de cada um sobre o Estado e a democracia. Lenin acreditava que o capitalismo estava suficientemente desenvolvido para uma revolução socialista e defendia um governo forte e centralizado — a ditadura do proletariado. Martov avaliava que o país não estava suficientemente industrializado, possuía um operariado pequeno e uma grande massa de camponeses analfabetos. Propunha uma estratégia democrática e reformista, como já praticada por socialistas franceses e alemães.