• Duas crises estão combinadas e podem levar o governo ao nocaute, mas se desenvolvem de forma desigual
- Correio Braziliense
O repertório de definições de crise é bastante sortido, tem para todos os gostos.
Das "revolucionárias", nas quais os de baixo já não obedecem e os de cima não conseguem governar; e de "renovação política", em que o velho está morrendo e o novo ainda não nasceu; às "crises econômicas", que são uma ameaça e uma oportunidade para os capitalistas, como no ideograma chinês que representa as duas palavras de uma só vez.
Em bom português, a palavra crise vem do grego krisis (decisão, julgamento), prima do verbo krinein, que quer dizer julgar, decidir, separar — na língua dos pais da filosofia e da democracia. No Dicionário Houaiss, há cinco definições: 1) estado de manifestação aguda ou agravamento de doença, física, mental e emocional; 2) manifestação repentina de um sentimento (ciúme, amabilidade); 3) estado de incerteza e vacilação (fé); 4) fase crítica de uma situação; e 5) momento de desequilíbio emocional.
O marketing ampliou esse espectro: uma crise pode envolver consumidores, clientes e usuários; públicos interno e externo; investidores, comunidades e poder público, além, é claro, das autoridades propriamente ditas, que, para isso, contratam marqueteiros e organizam gabinetes de crise para gerenciar sua imagem.
A presidente Dilma Rousseff, que ontem foi vaiada em São Paulo, ainda não se achou diante da crise que o país e seu governo atravessam. "O Brasil passa por um momento difícil, mais difícil do que tivemos em anos recentes, mas nem de longe estamos vivendo uma crise das dimensões que alguns dizem que estamos vivendo", minimizou, na 21ª Edição do Salão Internacional da Construção, em São Paulo.
Depois, a Secretaria de Imprensa da Presidência divulgou nota na qual reiterou que as manifestações contra o governo são legítimas e fazem parte do "jogo democrático", mas criticou atos violentos. Não houve isso.
Durante o evento, a presidente da República minimizou os problemas da economia, disse que seus fundamentos são sólidos e que as medidas de ajuste que o governo tem adotado nos últimos dias não vão comprometer as conquistas sociais, "tampouco vão fazer o Brasil parar".
O grande salto para frente, apregoado na campanha eleitoral, voltou a ser anunciado: "A conjuntura atual é muito mais difícil do que nos últimos anos, mas ela não pode ofuscar os avanços nem tampouco obscurecer que hoje temos as bases, o aprendizado para ir muito mais além do que já fomos, para dar saltos de produção e de competitividade ainda maiores". Quem acredita nisso?
Para justificar o rombo nas contas públicas, Dilma disse que a União absorveu "parte importante" da crise entre 2008 e 2014. "Estamos fazendo ajustes, mas não abdicamos nem abdicaremos em estabelecer as condições para que, o mais rápido possível, tenhamos uma economia competitiva e mais dinâmica."
Trata-se a União na ótica das velhas elites do Império, que organizaram o Estado brasileiro antes da formação da nação. Só que os recursos do Tesouro não vêm dos donos do poder, vêm dos impostos pagos pelos contribuintes, que deixam de consumir e poupar para tapar o buraco da gastança que garantiu a reeleição de Dilma. Esse é o grande "estelionato eleitoral" em curso.
Desigual e combinada
Não é à toa que, desde a viagem a Campo Grande, em 3 de fevereiro, Dilma não pode pôr os pés nas ruas sem levar uma vaia; só é aplaudida em ambientes fechados, previamente monitorados por sua "equipe precursora", que já foi muito melhor nesse trabalho.
O problema é que o coro dos "coxinhas", como os petistas chamam os que fazem oposição ao governo, está aumentando com a deriva dos eleitores da presidente da República frustrados porque suas promessas não correspondem aos fatos, diante da situação da economia e do escândalo da Petrobras.
A crise é desigual e combinada. Vamos por partes. Primeiro, há uma crise econômica decorrente mais do desequilíbrio das contas públicas do que da economia mundial, caso contrário, todos os países do continente estariam na situação da Argentina, da Venezuela e do Brasil, o que não é o caso. Graves problemas de infraestrutura, o desequilíbrio da balança comercial e a queda do preço do petróleo dificultam uma saída de curto prazo.
Segundo, instalou-se uma crise de governabilidade, catalisada pela Operação Lava-Jato da Polícia Federal, que investiga as principais lideranças do Congresso suspeitas de receberem propina do esquemas de corrupção na Petrobras.
Essas duas crises podem levar o governo ao nocaute, mas se desenvolvem de forma desigual no tempo e no espaço. A crise econômica demanda que a base política, acuada pelas denúncias, aprove um conjunto de medidas impopulares a toque de caixa. A crise política, para se resolver no curto prazo, exigiria um haraquiri coletivo das principais lideranças da base do governo no Congresso.
Como as duas coisas não vão acontecer, a crise de representação política e de imagem do governo transbordou para as ruas, que reagem à inflação, ao desemprego, o aumento de impostos, aos apagões, à falta d’água, ao aumento dos combustíveis e da conta de luz, tudo junto e misturado à corrupção na Petrobras e em outras empresas e órgãos públicos. Dilma sintetiza tudo isso.