Chefe do novo escritório da Anistia Internacional no Brasil, Atila Roque diz que a maior ameaça à segurança pública do país é o avanço crescente das milícias.
Ele elogia as UPPS no Rio, mas alerta que elas serão inúteis sem uma reforma da área de segurança
UPPs serão inúteis sem reforma da segurança pública
CHEFE DO NOVO ESCRITÓRIO NO BRASIL DA ONG ANISTIA INTERNACIONAL CRITICA SISTEMAS POLICIAL E JURÍDICO E VÊ MILÍCIAS COMO MAIOR AMEAÇA AO PAÍS
Samy Adghirni
SÃO PAULO - A situação dos direitos humanos no Brasil melhorou, mas ainda deixa a desejar, como mostra o deficit de segurança pública no país.
O diagnóstico é do militante e cientista político Atila Roque, chefe do novo escritório da Anistia Internacional no Brasil. A representação de uma das principais organizações de defesa dos direitos humanos no mundo está sendo reaberta no país após dez anos de ausência.
Desta vez, o escritório da Anistia ficará no Rio de Janeiro e funcionará a partir de dezembro com uma equipe de ao menos 12 funcionários, a maioria brasileiros.
Em entrevista à Folha, por telefone desde Brasília, onde ainda mora antes de se mudar para o Rio, Roque elogiou as operações policiais que varreram o narcotráfico em algumas favelas do Rio, mas alertou que o esforço será inócuo sem uma transformação radical dos métodos e cultura das autoridades de segurança pública.
Roque elogiou a recém-sancionada Comissão da Verdade e criticou a desocupação da reitoria da USP.
Folha - Por que a Anistia está voltando ao Brasil?
Atila Roque - Ainda que tenha obtido avanços importantes nos últimos 20 anos em direitos humanos e na área social, de combate à pobreza, o Brasil ainda tem um deficit de direitos gigantesco. Basta ver a segurança pública e o altíssimo número de homicídios.
Por outro lado, o Brasil reivindica um novo protagonismo na esfera internacional. O país é um dos principais atores do G20, quer assento no Conselho de Segurança da ONU e é membro dos BRICS [grupo que reúne também Rússia, Índia, China e África do Sul]. Mas isso vem acompanhado de uma maior responsabilidade na defesa dos direitos. Não pode haver omissão ou neutralidade que, na prática, penalizam quem está oprimido.
Diante dos contextos interno e externo, acho até que a Anistia demorou a recompor uma presença forte e de longo prazo no Brasil.
Por que a Anistia escolheu o Rio para sua sede brasileira?
Primeiro, porque o Rio está no centro do debate sobre a segurança pública, que tem implicações para o Brasil inteiro. O que acontece no Rio pode e deve servir de exemplo para pensar todo o tema da segurança pública do país.
Outra razão diz respeito à nova agenda de reforma urbana e desenvolvimento, que vem a reboque da Copa do Mundo e da Olimpíada e sugere repensar o espaço urbano como lugar de inclusão, e não de exclusão.
Como vê as recentes operações da polícia do Rio nos morros ocupados pelo tráfico?
O modelo UPP [Unidade de Polícia Pacificadora], que consiste em trazer para as favelas uma presença de segurança pública focada na reconquista do território, na retirada das armas e numa perspectiva de integração com outras ações de governo [sociais, culturais e econômicas], é uma inovação que precisa ser reconhecida.
O morador da favela tem o mesmo direito à segurança que o de Ipanema ou dos Jardins. A principal vítima do crime violento no Brasil é o morador da periferia, que tradicionalmente foi objeto de ação meramente repressiva. Mas todas essas iniciativas serão inúteis se não forem acompanhadas de um esforço mais amplo.
O que precisa ser feito?
O primeiro passo é fazer com que os diferentes subsistemas adotem um patamar comum de informação, gestão e integração, baseado na inteligência, qualificação do profissional e respeito aos direitos. É preciso romper com a cultura de subsistemas isolados e controlados a partir dos Estados.
Por mais virtuoso que seja algum modelo localizado, ele não pode avançar sem respaldo dentro do sistema de segurança como um todo.
A segurança pública no Brasil ainda sofre de distorções decorrentes de anos de autoritarismo e de baixíssimo nível de integração entre unidades federativas e União. Faltam instrumentos de informação e não há possibilidade de acessar dados on-line de crimes no Brasil.
É preciso ainda uma política que premie o agente que faz bem seu trabalho e puna rigorosamente aquele que rompe com a legalidade. E é fundamental a ênfase no diagnóstico, se não a gente não sabe onde investe nem como fazer política pública.
A agenda dos sonhos seria tratar a segurança de forma integral, não apenas como uma resposta a uma situação de emergência como a que encontramos em algumas favelas ocupadas pelo tráfico.
Remodelar a gestão é suficiente para reduzir a violência?
Claro que sim. O Brasil perde quase 50 mil vidas por ano em mortes violentas. Essas vítimas são, em sua maioria, jovens pobres entre 16 e 24 anos. Uma reflexão sobre o sistema de Justiça vai orientar a atividade repressiva para onde mais importa.
O assassinato é hoje um crime praticamente impune no Brasil porque a polícia não tem capacidade de investigação e só leva a processo o homicídio que tem testemunha imediata. O número de homicídios solucionados no Brasil é baixíssimo.
O país prende majoritariamente o jovem que comete crime não violento, enquanto quem comete crime violento não está sendo preso. O menino de 16 anos que cometeu um crime leve não precisa ser jogado a uma situação de perda de liberdade.
O que responde aos que acusam os defensores dos direitos humanos de proteger bandidos?
É preciso um esforço para se construir uma cultura de direito e uma percepção de valores fundamentais para a vida em sociedade. Entender que não há direitos para uns e direitos para outros reflete o grau civilizacional de uma sociedade.
No passado era muito mais forte a ideia de que direitos humanos eram defesa de bandido. Felizmente e gradualmente isso está mudando. Cada vez mais compreende-se que o Estado não pode, em nome do controle do crime, violar o direito das pessoas.
Mas é preciso continuar a desconstruir os estereótipos, para eliminar aquele medo irracional que gera insensibilidade e nos leva a ter medo da criança que está na rua.
Legalizar as drogas ajudaria a reduzir a violência?
Algum patamar de descriminalização e legalização de substâncias seria importante de alcançar. Hoje dedica-se um esforço brutal do aparelho do Estado para reprimir o pequeno consumidor e criminalizá-lo da mesma maneira que o grande traficante.
Atualmente qual é a maior ameaça à segurança pública?
É o avanço crescente da criminalidade organizada a partir do próprio aparato de segurança pública, que acabou de matar a juíza Patrícia Acioli e ameaça o deputado Marcelo Freixo (PSOL-RJ).
Se não houver uma atuação organizada contra as milícias, daqui a cinco anos estaremos numa situação muito mais grave do que a que tivemos com a ocupação do território pelo tráfico.
Como vê a Comissão da Verdade, recém-sancionada pela presidente Dilma?
A comissão deveria ter sido instalada há tempos. É muito positivo que o Estado e a sociedade brasileira finalmente comecem a examinar o que aconteceu nos anos de terrorismo de Estado no Brasil.
É inadmissível que ainda tratemos o tema da repressão com tabu e em meio a tanta dificuldade de acessar informação. As famílias precisam saber o que aconteceu com seus filhos. Não olhar com transparência e sem medo é se recusar a aprender com o próprio erro. É um tumor que segue consumindo as forças da democracia brasileira.
Qual a sua opinião sobre a recente desocupação da reitoria da USP pela polícia?
Foi uma expressão do grau de tensão gerado por tudo aquilo que envolve a polícia.
Acho que houve excesso e faltou inteligência e mediação por parte das autoridades policiais. Isso não significa que não se deva refletir sobre maneiras de garantir a segurança na universidade. Mas não foi uma cena agradável ver a polícia entrar [na reitoria] com toda aquela força e aparato.
Raio-X Atila Roque
ORIGEM
Nasceu no Rio de Janeiro e tem 52 anos
FORMAÇÃO
É graduado em história pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e mestre em ciência política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj)
CARREIRA
Foi pesquisador do Centro de Estudos da História Social da Escravidão da UFRJ e assessor de Betinho. Entre 2003 e 2006 foi diretor-executivo da ActionAid International, em Washington
FONTE: FOLHA DE S. PAULO