segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Marcus André Melo* - De centroavante a zagueiro

- Folha de S. Paulo

Mesmo como rainha da Inglaterra Guedes ainda é útil

Argumentei neste espaço quando a pandemia chegou que ela representava um choque exógeno no sistema político alterando os preços relativos das questões da agenda pública: os temas que levaram Bolsonaro à Presidência (segurança pública, corrupção, costumes) seriam eclipsados e o reformismo fiscal e econômico sairia da pauta. E que as questões fiscais adquiririam significado inteiramente novo face ao imperativo de expansão brutal do gasto.

O resultado líquido disso tudo é que “o ativo Guedes” perdeu valor.

O que efetivamente se seguiu não divergiu do script: a pandemia inviabilizou a agenda maximalista de Guedes e a debandada de membros de sua equipe é o melhor sinalizador disso. A janela de oportunidade para as privatizações foi fechada, pelo menos no curto prazo. Idem para algumas reformas microeconômicas. Mas ela não é o único fator: os efeitos do escândalo no clã familiar e a aproximação com o centrão eram previsíveis e se manifestam agora.

De antídoto anticaos social a sustentáculo da popularidade, o auxílio emergencial (cujo custo chega a 8,5% do PIB) revelou-se ex post crucial para a sustentação política do governo. Assim pandemia e escândalo desfiguraram a agenda Guedes; convertem o czar da economia em Torquemada do gasto muito além do papel que ministros da Fazenda normalmente cumprem. Sua agenda tornou-se inteiramente reativa: como o centroavante que decide o jogo que passa a jogar como zagueiro.

Ricardo Noblat - Se Bolsonaro não o mandar embora, Paulo Guedes ficará ministro

- Blog do Noblat | Veja

Ruim com ele, talvez pior sem ele

Sem o brilho do antigo Posto Ipiranga que se apagou e não foi de agora, e os companheiros que preferiram abandoná-lo à procura de novos e mais compensadores desafios, o ministro Paulo Guedes, da Economia, ficará no governo, quer emplaque ou não o programa Renda Brasil, quer o valor do auxílio emergencial a ser pago até dezembro fique abaixo ou acima dos 300 reais.

Guedes sempre se queixou de ter sido maltratado por seus colegas economistas. Não lhe reconheceram os méritos. A academia ignorou-o. Foi posto para escanteio na hora em que os da sua geração ascendiam. Era apontado apenas como um bom ganhador de dinheiro em proveito próprio. Nada mudou depois que ele tirou a sorte grande de ser descoberto por Jair Bolsonaro.

O que a Luzia ganhou atrás da horta? O que ganharia Guedes se pedisse as contas só por que seu plano de ajuste fiscal foi para o brejo? O plano mal foi posto de pé desde que ele sentou praça na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Por fim, foi deixado para as calendas gregas pela irrupção do coronavírus e a obstinada fixação de Bolsonaro em um segundo mandato.

Celso Rocha de Barros* - O presidente derrubou um governador?

- Folha de S. Paulo

É curioso que tanta gente no mundo da Justiça esteja tomando decisões claramente ilegais

Se o governador do Rio de Janeiro tiver caído por influência do presidente da República, a deterioração institucional brasileira deu um salto grande.

A decisão de afastar Witzel monocraticamente foi ilegal. Quem quiser saber por que, consulte o texto do professor Ricardo Mafei Rabelo Queiroz, da Faculdade de Direito da USP, no site da revista Piauí. É possível que a decisão do ministro Benedito Gonçalves, do STJ, não tenha sido uma tentativa de conseguir uma vaga no Supremo.

Mas é curioso que tanta gente no mundo da Justiça esteja tomando decisões claramente ilegais —a libertação de Queiroz, o dossiê contra os antifascistas, a perseguição a Hélio Schwartsman, o afastamento de Witzel —que coincidem perfeitamente com os interesses de Jair Bolsonaro, justamente o sujeito que vai decidir quem fica com a vaga no STF.

O afastamento de Witzel não é conveniente para Bolsonaro apenas porque o governador fluminense havia se tornado rival do presidente da República. No final deste ano, seja lá quem for o governador do Rio vai escolher o novo procurador-geral do Estado.

Como já noticiou a Folha, Bolsonaro quer influir nessa escolha para que o novo nome seja sensível aos interesses de seu esquema de corrupção familiar.

A escolha terá que ser feita dentro da lista tríplice, mas nada impede que os bolsonaristas inventem um candidato até lá e trabalhem por ele.

Se a decisão do STJ for um sintoma de aparelhamento da Justiça por Bolsonaro, pense bem no tamanho do que estamos discutindo.

Eloísa Machado de Almeida* - Decisão que afastou Witzel parece ter algo fora do lugar

- Folha de S. Paulo

Eleito em 2018, governador foi afastado do cargo por 180 dias em decisão de ministro do STJ

Ainda que o governador Wilson Witzel já tenha sido responsabilizado pelo Supremo Tribunal Federal pela condução de sua necropolítica durante a pandemia, com ordem para suspensão de operações policiais nas comunidades cariocas, que tenha contra si uma maioria sólida para um processo de impeachment e pululem indícios de corrupção com verbas de saúde, a decisão de seu afastamento preventivo como governador gerou desconforto.

A suspensão do exercício das funções públicas de Witzel por uma decisão monocrática de um ministro do Superior Tribunal de Justiça recolocou o tema sobre as imunidades constitucionais —e a forma com os tribunais a interpretam— no centro do debate jurídico e político do país.

A Constituição estabelece uma série de imunidades para detentores de cargos eletivos do Executivo e do Legislativo. São imunidades que procuram proteger a função relevante e representativa, impondo sobretudo limites mais severos à persecução criminal.

Parlamentares são invioláveis por suas palavras e votos, possuem foro por prerrogativa de função e não podem ser presos senão em flagrante de crime inafiançável, sendo tanto a prisão como o próprio processo criminal sujeitos à suspensão pelas Casas legislativas.

Para o cargo eletivo do Executivo, a Constituição é ainda mais exigente: a suspensão de mandato pela prática de crime comum se dá a partir de um duplo controle: a autorização prévia do Legislativo e o recebimento da denúncia pelo Judiciário.

As imunidades compõem uma série de controles judiciais e políticos que garantem não só estabilidade para o exercício da função como também reforçam a lógica da separação de Poderes. Mas não se trata apenas disso. A preservação do vínculo de representatividade entre eleitor e eleito é mais uma razão, talvez a maior delas, para a existência de imunidades a detentores de cargos eletivos.

A função é especialmente importante e protegida porque decorre de investidura vinda de voto.

As Constituições estaduais, na sua maior parte, reproduziram a mesma lógica da Constituição Federal: governadores só poderiam ser afastados do cargo com autorização prévia do Legislativo, seja no recebimento de denúncia por crime comum ou na hipótese de crime de responsabilidade.

Ainda que as regras constitucionais sejam consideravelmente claras, a interpretação dos tribunais tem sido vacilante quanto à sua extensão.

Leandro Colon - Como acreditar em Jair Bolsonaro?

- Folha de S. Paulo

Presidente celebra como dele obras de governos petistas e recuou de discursos de campanha

O presidente da República resolveu sair por aí inaugurando obras iniciadas em governos passados. Sem um portfólio para chamar de seu, fatura em cima da iniciativa alheia -no caso, do adversário.

Reportagem da Folha mostrou que Jair Bolsonaro montou um cronograma para celebrar a finalização de projetos iniciados nos governos Lula e Dilma Rousseff.

São ao menos 33 obras na lista de viagens no segundo semestre —25 nasceram nas gestões petistas, apenas duas na de Michel Temer (MDB), e sobraram 6 com origem no atual governo.

Portanto é importante deixar claro ao eleitor alvo dessas andanças eleitoreiras: o presidente apenas montou na garupa para levar essa obra até você.

Assim como tenta dar uma nova roupagem ao Bolsa Família, programa de transferência de renda com DNA petista. O Renda Brasil, que deve virar filhote do auxílio emergencial, carrega diretrizes sociais que Bolsonaro tanto criticou ao longo de sua vida pública.

Ruy Castro* - Palavras em turbilhão

- Folha de S. Paulo

Nos jornais do passado, a Redação era a continuação da rua. Ou você era safo ou se tornava

"Era melhor do que qualquer filme de ação", escreveu um jornalista americano chamado Pete Hamill. "Um caos organizado —editores dando ordens aos gritos, matérias sendo levadas às pressas para a oficina, homens e mulheres metralhando enormes máquinas de escrever, telefones tocando, telexes despejando papel e todo mundo fumando e apagando o cigarro no chão com o sapato." Foi o que Hamill viu ao entrar pela primeira vez numa Redação de jornal —a do New York Post, em 1960— e decidir que era o que ele queria.

O mesmo me aconteceu ao entrar no Correio da Manhã, aqui no Rio, para encontrar José Lino Grünewald, editor do Segundo Caderno. Eu lhe telefonara no jornal, dissera-me seu leitor e ele me convidou a ir lá num fim de tarde. Era janeiro de 1966 e eu ainda não fizera 18 anos. Cheguei ao prédio na Lapa, subi ao 2º andar e vi exatamente o que esperava —palavras em turbilhão. Um ano depois, José Lino me levou ao editor-chefe e saí de lá como repórter.

Bruno Carazza* - Panteras negras

- Valor Econômico

Reserva de recursos para candidatos negros não basta

Passaram-se longos 50 anos até que o Pantera Negra conseguisse chegar às telas do cinema. Quase duas décadas antes da criação do super-herói negro na HQ de Stan Lee e Jack Kirby, em 1947 Jackie Robinson rompeu a convenção que vedava o acesso de atletas de ascendência africana aos times da maior liga de beisebol norte-americana. Eleito o melhor jogador da temporada de 1949, em sua homenagem nenhuma equipe nos EUA utiliza mais o número 42 que o celebrizou - com uma única exceção anual, no “Jackie Robinson Day” (15 de abril) quando todos os jogadores, de todos os times, inclusive os técnicos, envergam 42 nos uniformes.

Nomeado em 1967, Thurgood Marshall foi o primeiro negro na Suprema Corte americana - sucedido por Clarence Thomas, eles são os únicos afrodescendentes num total de 102 pessoas que já ocuparam o cargo mais alto do Judiciário nos Estados Unidos desde 1789. No ano seguinte, em 5 de abril de 1968, um dia após o assassinato de Martin Luther King, James Brown realizou um concerto em Boston. Transmitido ao vivo pela TV pública local, o show serviu para acalmar os ânimos da população negra, que em vez de ir para as ruas protestar ficou em casa assistindo à apresentação do ídolo - o que gerou acusações do movimento black de que Brown estava servindo aos interesses dos governantes brancos contra a causa da igualdade racial. Em resposta, Brown gravou “Say it loud - I’m black and I’m proud”.

Todos esses personagens, vividos no cinema pelo ator Chadwich Boseman, falecido no sábado, revelam como é longa a luta por igualdade de direitos e oportunidades entre negros e brancos nas mais diversas áreas da sociedade. Em pleno 2020, o assunto permanece quente - haja vista os protestos nos Estados Unidos após o assassinato de George Floyd e o histórico boicote dos jogadores de basquete nos playoffs da NBA.

Denis Lerrer Rosenfield* - Assassinos!

- O Estado de S.Paulo

Urge investigação minuciosa sobre quem violou os direitos de uma criança abusada

Foi esse o grito da turba ensandecida diante de um hospital, no Recife, encarregado da interrupção da gravidez de uma menina de 10 anos, estuprada sistematicamente pelo tio. A manifestação seguiu um ritual de perseguição a todos os que se colocam, voluntariamente ou não, contra as convicções de um grupo de fanáticos que procuram impor de qualquer maneira suas ideias. O evento tornou-se ainda mais dramático por mostrar a falta de sensibilidade moral, para não dizer psicológica, diante de uma criança desprotegida. Onde fica o amor ao próximo?

Uma operação que deveria ser sigilosa, para a proteção da vítima, foi publicamente escancarada, tendo ela de entrar escondida no hospital. A ativista radical de extrema direita Sara Giromini, dita Sara Winter, já bem conhecida por seu acampamento anterior na Esplanada dos Ministérios, com a complacência de autoridades, divulgou em suas redes o endereço onde seria realizada a interrupção da gravidez. Acontece que há um problema da maior gravidade aqui envolvido. Onde ela obteve as informações sobre o hospital? Quem as forneceu? Tem contatos com autoridades? Sua responsabilidade é flagrante! Urge uma investigação minuciosa que produza resultados, visto que o ocorrido é intolerável jurídica e moralmente!

A história é aterradora. Essa criança foi abusada sistematicamente por seu tio desde os 6 anos de idade, ficando à mercê dele, com ameaças de que se não consentisse ele mataria seu avô, a quem é muito afeiçoada. Não se sabe exatamente o que acontecia naquela “família”, porém salta aos olhos que estamos diante de uma menina desprotegida. Não tinha nenhum domínio de si mesma.

Fernando Gabeira - Reflexões sobre o naufrágio

- O Globo

Aqui não há pianistas para nos distrair enquanto afundamos

‘O naufrágio das civilizações’. Quando esse livro chegou a mim, resolvi que ia lê-lo antes de outros que estão sobre a mesa. Interessam-me o título e o autor, Amin Maalouf.

Ele usa a imagem marítima, como a de grande barco afundando. Costumo usá-la como a perda do horizonte, uma outra forma de ver o naufrágio.

Maalouf começa se interrogando sobre o fracasso da modernização árabe, tão rica culturalmente na sua infância no Levante, um arquipélago de cidades comerciais, e na juventude em Beirute. Como foi que tudo se perdeu, que caminhos, que encruzilhadas transformaram o mundo árabe num lugar inseguro, desesperado a ponto de produzir legiões de suicidas?

Ele analisa o papel da grande figura de Nasser, sua vitória na luta anticolonial, mas constata que, de certa forma, Nasser jogou fora o bebê com a água de banho, perseguindo estrangeiros e limitando a liberdade de expressão. Sua trajetória se esgota na humilhante derrota da chamada Guerra dos Seis Dias, um desastre irreversível.

Maalouf avança para outros momentos da história e para outras regiões do mundo onde o naufrágio já aconteceu, como o Império Soviético, ou parece muito próximo, como o Ocidente.

Ele destaca uma data, 1979. E duas revoluções: a islâmica, no Irã, e a chegada ao poder de Margaret Thatcher na Inglaterra. A primeira pelo potencial de ódio que iria trazer para a tensão entre xiitas e sunitas. A segunda, pela consagração da ideia de que os interesses pessoais são o motor do progresso, que se realiza pela soma de todos eles, pela invisível mão do mercado.

Ana Maria Machado - Entre o vírus e o fogo

- O Globo

Eu choro por minha terra e minha gente

Quem temia que a vaca fosse para o brejo já tratou de se atualizar. Agora receia que não sobre uma única vaca, com este passar da boiada em direção ao atoleiro. No pântano nem há mais risco de que se atolem. O Pantanal era lugar de água, com cheias de rios que refletiam o céu. Agora é de chamas que não se apagam, por mais que se lute. Só se vierem chuvas fortes, que tardam. Seu regime foi alterado pelo desmatamento, enquanto os órgãos de fiscalização ambiental são desmantelados, para permitir a derrubada da mata, o garimpo ilegal, a invasão de terras indígenas, a grilagem. Num país que quer taxar livros e isenta igrejas. E onde presidente acha que pode ameaçar jornalistas.

Vemos há semanas que o Pantanal está pegando fogo — além do Pará, de áreas no Amazonas e por toda parte. Nem a Mata Atlântica escapa. Tivemos queimadas dias a fio na Mantiqueira e na Serra dos Órgãos. Além dos contumazes desmatadores, um sujeito tacou fogo no próprio carro em Araras para dar um golpe no seguro e incendiou a reserva florestal. Aprendera bem a lição nacional da impunidade para a esperteza de não produzir e se apropriar do alheio.

Cacá Diegues - Gladiador defunto mas intacto

- O Globo

Gláuber Rocha foi uma luz muito intensa

Há pessoas que, quando morrem, não é nem justo que não tenha nada melhor do lado de lá. Semana passada, no dia 22 de agosto, celebramos 39 anos da morte de Gláuber Rocha, nosso maior e mais discutido cineasta brasileiro. É até injusto reduzir seu talento e sua importância à palavra “cineasta”, aprisioná-lo nessa atividade. Gláuber foi tudo o que era possível ser no mundo da cultura, da criação e dos costumes, em seu tempo e para além dele.

Na Bahia, onde nasceu, ele começou sua agitação e fez seus primeiros filmes de curta-metragem, assim como os longas impactantes “Barravento” e “Deus e o diabo na terra do sol”. Além dos filmes e do cinema, Gláuber inaugurou uma vida de ideias e inquietações que o tornariam um pensador indispensável do Brasil e do mundo em que vivia. Segundo Nélson Pereira dos Santos, mestre de toda a nossa geração, “o Cinema Novo é quando Gláuber Rocha chega ao Rio de Janeiro”. Era ele que cobrava, de cada um de nós, a contribuição ao que deveria ser o Brasil nas telas. Ou as telas do Brasil.

É bobagem tentar decifrar os sonhos de Gláuber, tudo o que lhe atormentava como projeto. Gláuber não tinha sonhos, tinha delírios. Delírios tão belos e explosivos, destrutivos e criativos, quanto o mundo em que ele gostaria de ter vivido. Quase no fim de sua vida, em Sintra, Portugal, ele me deu a ler o roteiro de um novo filme que pretendia fazer na Europa. No final desse filme que nunca foi feito, depois de uma guerra planetária de extermínio, envolvendo forças políticas da época, todas sujas e repudiáveis, o mundo simplesmente se desfazia. Na última cena, o casal de heróis navegava em frágil embarcação, em direção à derradeira ilha tropical, onde iriam viver seu amor sozinhos e em paz.

Queda na renda do trabalhador freia reação da economia

Tombo de 15% no rendimento entre fevereiro e junho significou R$ 34 bilhões a menos na economia no período

Cássia Almeida e Cleide Carvalho | O Globo

RIO E SÃO PAULO - Os ganhos com o trabalho, que representam cerca de 70% do orçamento das famílias, estão em queda livre. A soma dos rendimentos de todos os trabalhadores teve queda recorde nos últimos 12 meses e foi concentrada no período da pandemia: entre fevereiro e junho, houve recuo de 15,4% da massa salarial, já descontada a inflação. Isso representou menos R$ 34 bilhões na economia nesses quatro meses.

Menos dinheiro circulando indica um freio no potencial de consumo do país, o que pode tornar a recuperação da economia ainda mais lenta do que se esperava. Como o investimento deve demorar mais a reagir, diante da falta de recursos do governo para investir e da incerteza que paralisa os projetos privados, especialistas esperam que a retomada venha primeiro pelo consumo. Mas com a renda do trabalhador em queda, consumidores pensarão duas vezes antes de gastar.

Segundo levantamento do pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Marcos Hecksher, o recuo inédito da renda total disponível foi causado tanto por corte de salário, em acordos de redução de jornada, quanto pelas demissões naqueles quatro meses. O rendimento médio do trabalhador ficou 3,8% menor no período, e o número de pessoas ocupadas recuou 12,1%.

Parte da perda dos recursos obtidos com trabalho tem sido compensada pelo auxílio emergencial, que alcançou 65 milhões de pessoas. Mas o problema é que se trata de um benefício transitório.

— A renda do trabalho caiu muito, a renda total (quando se incluem outras fontes de recursos) só não diminuiu por causa do auxílio. Com o fim dele e dos benefícios para manutenção do emprego, não vai ter geração de vagas para todas essas pessoas — diz Hecksher.

Auxílio emergencial sustenta o consumo nas regiões mais pobres

Para economistas, efeito é limitado e impacto do Norte e Nordeste no PIB, pequeno

Por Anaïs Fernandes e Hugo Passarelli | Valor Econômico

SÃO PAULO - O auxílio emergencial ajudou a sustentar o consumo, sobretudo de bens e serviços essenciais, em regiões mais pobres do país, segundo indicadores coletados pelo Banco Central e fontes privadas, como a Cielo e o Santander. Os dados atestam a recuperação da atividade no Norte e Nordeste, mas também apontam para a fragilidade do processo. Isso porque o peso dessas regiões no Produto Interno Bruto (PIB) ainda é pequeno e, como há dependência do dinheiro fornecido pelo governo, a retomada está sujeita a mudanças no benefício.

Em seu mais recente Boletim Regional, o BC observou que, na média das três primeiras semanas de julho, o nível de consumo da região Norte era 37% superior ao momento pré-pandemia (média semanal de 4 de fevereiro a 16 de março). No Nordeste e Centro-Oeste, o crescimento atingiu 16%, enquanto Sul e Sudeste estavam apenas 1% e 2% acima, nesta ordem. O levantamento usou dados de venda com cartão de débito da Câmara Interbancária de Pagamentos (CIP) para medir a “temperatura” do consumo das famílias por municípios, regiões e faixas de renda.

O relatório mostra gráficos em que municípios brasileiros mais pobres (no primeiro e segundo quartil de renda) apresentavam, em 20 de julho, um patamar de recuperação de vendas a débito mais forte do que o observado entre as cidades mais ricas (terceiro e quarto quartil). O BC nota que cidades na base da pirâmide estão proporcionalmente mais presentes no Norte e Nordeste e que, nessas regiões, a diferença entre a força de recuperação do consumo em cidades mais pobres e mais ricas era ainda maior.

Para o BC, é possível que municípios mais pobres “tenham tido menores reduções de consumo no início do agravamento da pandemia da covid-19 no país, por terem em suas cestas parcela maior de bens e serviços essenciais ou por terem sido atingidos mais tardiamente pela epidemia”. Além disso, o BC afirma que municípios dos quartis inferiores de renda foram mais favorecidos pelo auxílio emergencial, “contribuindo para retomada mais expressiva do consumo”.

Economistas ponderam que parte dos beneficiários do auxílio não é bancarizada e pode não ter sido captada pelo BC. “Mas como foi uma massa de recursos grande, mexeu com o consumo. Acho que [o diagnóstico] está na direção está correta”, afirma a economista Tania Bacelar, professora emérita da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e sócia da consultoria Ceplan.

O Fed inova – Editorial | Folha de S. Paulo

Banco central americano muda política e indica juro baixo, o que ajuda o Brasil

Em meio à crise ocasionada pela pandemia, os bancos centrais do mundo têm sido obrigados a sair da rotina. Fora os programas de injeção de dinheiro nos mercados, ativados em dimensão inédita, a maior novidade até aqui é a decisão do americano Fed de alterar sua conduta na política monetária.

À diferença do que ocorre hoje, a instituição buscará compensar períodos de inflação abaixo da meta, de 2% ao ano, com uma tolerância para altas maiores de preços depois. O objetivo consiste em obter uma inflação média em torno da meta no longo prazo.

A mudança importa porque, até então, acreditava-se que o Fed elevaria os juros assim que a inflação voltasse a superar a meta, sem levar em conta os resultados anteriores.

Com a economia deprimida pelas consequências da Covid-19, o risco predominante hoje é o de deflação. Justamente para compensá-lo, a autoridade monetária indica que pode ser mais leniente —não muito— com os preços.

O novo regime fica reforçado por outra alteração importante, relativa ao mercado de trabalho.

Enfim, estímulo para a cabotagem – Editorial | O Estado de S. Paulo

O Brasil tem mais de 8,5 mil quilômetros de costa, mas o transporte por navio entre os portos do País responde por apenas 11% da matriz de transporte

Mudar uma situação historicamente consolidada, ainda que injustificável pelas condições naturais e pelas necessidades do País, pode parecer um objetivo enganoso ou, no mínimo, ambicioso demais para ser alcançado no curto prazo. No caso da navegação de cabotagem, porém, a mudança é possível. Por meio da ampliação da oferta de transporte marítimo entre portos brasileiros, da redução dos custos logísticos, do aumento da competitividade entre as empresas que operam ou virão a operar no setor, da atração de novos investidores e do incentivo ao desenvolvimento da indústria naval nacional, o governo pretende elevar substancialmente a participação da cabotagem na matriz de transporte de mercadorias no País, hoje avassaladoramente dominada pelo transporte rodoviário.

Estes são, entre muitos, os objetivos do projeto de lei enviado há pouco pelo Executivo ao Congresso para criar o Programa de Estímulo ao Transporte de Cabotagem. O programa tem o sugestivo nome de BR do Mar, clara referência a “estradas” (BR é a designação das rodovias federais) a serem operadas por navios, em substituição aos caminhões.

A Câmara abriu a porteira para o aumento do gasto – Editorial | Valor Econômico

Caberá agora ao Senado não referendar as decisões, mantendo as proibições previstas na LC 173

Com o apoio de todos os líderes políticos, o Senado e a Câmara aprovaram uma ajuda de R$ 60,15 bilhões da União aos Estados e municípios, como forma de compensar a queda de receita que eles teriam com a recessão econômica provocada pela pandemia da covid-19. Além disso, os governos estaduais e as prefeituras foram beneficiados com a suspensão dos pagamentos de suas dívidas com a União e puderam também reestruturar as suas operações de crédito interno e externo junto ao sistema financeiro e a instituições multilaterais de crédito.

O pacote de ajuda custou caro aos cofres públicos, mas foi necessário em um momento de grave crise sanitária no país e no mundo. Ao aprovar a lei complementar 173, que autorizou o auxílio financeiro, o Parlamento procurou evitar que os recursos repassados pelo Tesouro fossem desviados para outras finalidades, que não o combate à covid-19.

Procurou também olhar para o futuro, para o pós-pandemia, uma vez que é preciso ajustar as contas públicas depois de gastos tão vultuosos. De janeiro a julho deste ano, o déficit primário do governo central (Tesouro, Previdência e Banco Central ficou em R$ 505,187 bilhões.

Governo errático enfrenta novos testes no Congresso – Editorial | O Globo

Bolsonaro arrisca amargar derrotas em três votações sobre vetos impostos a leis aprovadas

O governo enfrentará nesta semana situações críticas no Congresso, que testarão sua capacidade de alavancar a retomada econômica no pós-pandemia. Ainda sem plano consistente (depois do adiamento do pacote previsto para semana passada), apoiado numa base parlamentar instável, o presidente Jair Bolsonaro arrisca amargar novas derrotas em embates relevantes.

Três deles estão marcados para quarta-feira. É quando o Congresso decidirá se mantém os vetos presidenciais à prorrogação por mais 30 anos dos serviços de saneamento prestados por estatais, à extensão da desoneração da folha de pagamentos de 17 setores até dezembro de 2021 e à ampliação do auxílio emergencial a diversas categorias profissionais.

Para o governo, será necessária uma competência política que até agora não teve para evitar repetir a derrota, no Senado, do veto à autorização para reajustes do funcionalismo. A confusão, criada pelo próprio presidente, só foi revertida graças ao bom senso da Câmara.

O episódio mostra que o desempenho errático do governo resulta do foco exclusivo de Bolsonaro em temas ligados à reeleição em 2022. No início da pandemia, ele vetou um corte (30%) nos salários do funcionalismo, setor com forte poder de pressão política. Sugeriu ao Parlamento o congelamento temporário de aumentos. Ao mesmo tempo, aprovou redução temporária (de 25% a 70%) nos salários do setor privado, assegurando ao funcionalismo uma vantagem descabida.

Antes do congelamento, porém, reajustou salários de policiais civis e orientou seus líderes no Legislativo a indicar categorias que deveriam ter direito a aumento. Com o “sinal verde” do Planalto, sob pressão da elite da burocracia, o Senado autorizou os reajustes. O Ministério da Economia discordou e apelou a Bolsonaro, que, convencido, mudou de ideia e os vetou. O Senado reagiu à descoordenação política e derrubou o veto. Restou ao presidente pedir socorro à Câmara para mudar a decisão do Senado.

Música | Velha Guarda da Portela e Teresa Cristina | Sofrimento de quem ama

Poesia | Vinicius de Moraes - A cidade antiga

Houve tempo em que a cidade tinha pelo na axila
E em que os parques usavam cinto de castidade
As gaivotas do Pharoux não contavam em absoluto
Com a posterior invenção dos kamikazes
De resto, a metrópole era inexpugnável
Com Joãozinho da Lapa e Ataliba de Lara.

Houve tempo em que se dizia: LU-GO-LI-NA
U, loura; O, morena; I, ruiva; A, mulata!
Vogais! tônico para o cabelo da poesia
Já escrevi, certa vez, vossa triste balada
Entre os minuetos sutis do comércio imediato
As portadoras de êxtase e de permanganato!

Houve um tempo em que um morro era apenas um morro
E não um camelô de colete brilhante
Piscando intermitente o grito de socorro
Da livre concorrência: um pequeno gigante
Que nunca se curvava, ou somente nos dias
Em que o Melo Maluco praticava acrobacias.

Houve tempo em que se exclamava: Asfalto!
Em que se comentava: Verso livre! com receio...
Em que, para se mostrar, alguém dizia alto:
"Então às seis, sob a marquise do Passeio..."
Em que se ia ver a bem-amada sepulcral
Decompor o espectro de um sorvete na Paschoal

Houve tempo em que o amor era melancolia
E a tuberculose se chamava consumpção
De geométrico na cidade só existia
A palamenta dos ioles, de manhã...
Mas em compensação, que abundância de tudo!
Água, sonhos, marfim, nádegas, pão, veludo!

Houve tempo em que apareceu diante do espelho
A flapper cheia de it, a esfuziante miss
A boca em coração, a saia acima do joelho
Sempre a tremelicar os ombros e os quadris
Nos shimmies: a mulher moderna... Ó Nancy! Ó Nita!
Que vos transformastes em dízima infinita...

Houve tempo... e em verdade eu vos digo: havia tempo
Tempo para a peteca e tempo para o soneto
Tempo para trabalhar e para dar tempo ao tempo
Tempo para envelhecer sem ficar obsoleto...
Eis por que, para que volte o tempo, e o sonho, e a rima
Eu fiz, de humor irônico, esta poesia acima.