sábado, 15 de agosto de 2020

Opinião do dia – Hannah Arendt* (A propaganda totalitária)

Somente a ralé e a elite podem ser atraídas pelo ímpeto do totalitarismo, as massas têm que ser conquistadas por meio da propaganda. Sob um governo constitucional e havendo liberdade de opinião os movimentos totalitários que lutam pelo poder podem usar o terror somente até certo ponto, como qualquer outo partido, necessitam granjear aderentes e parecer plausíveis aos olhos de um público que ainda não está rigorosamente isolado de todas as outras fontes de informação.

*Hannah Arendt (1906-1975), “Origens do totalitarismo”, p. 474, Companhia de Bolso, São Paulo, 2020,

Merval Pereira - Do bolso ao cérebro

- O Globo

Ao mesmo tempo em que é surpreendente para quem o rejeita, e esses são menos do que já foram, passando de 44% para 34%, a melhora de Bolsonaro na pesquisa Datafolha é explicável. Vale lembrar que essa recuperação de popularidade é em relação à própria performance, mas ele continua sendo mal avaliado em relação aos outros presidentes no mesmo período de governo, só superado por Collor, o que não quer dizer nada se levarmos em conta o confisco da poupança.

O presidente Bolsonaro confiscou nossa auto-estima como povo, transformando o país num pária internacional, mas está recuperando eleitorado em várias frentes, até nas classes mais educadas e mais ricas, porque parou de fazer confusões diárias, reduzindo o grau de incerteza em que acordávamos todos os dias.

Esse apoio tem se mostrado resiliente tanto quanto o ministro da Economia Paulo Guedes, que foi a razão de boa parte do eleitorado, especialmente no Sul e Sudeste, apostar nesse azarão que se mostrou o único viável para derrotar o PT e, ao mesmo tempo, retomar uma política econômica liberal que havia sido perdida desde a saída do PSDB do poder em 2002.

Mas esse apoio provavelmente será revertido caso o ministro Paulo Guedes saia do governo, ou se ficar sem forças para barrar as manobras para furar o teto de gastos, e outras ações que abalam a credibilidade financeira do país.

O impressionante é que esse eleitorado, a suposta elite nacional, não tenha reagido às mais de 100 mil mortes pela Covid-19, preferindo a tese bolsonarista de que a economia tinha que ser reaberta mesmo sem segurança. Mais inexplicável do que a aceitação da volta ao trabalho dos precarizados e desempregados, de menor renda, que dependeram do auxílio emergencial e do funcionamento da economia para sobreviver. A conversa de Bolsonaro de que estava mais preocupado com a vida dos cidadãos, e por isso queria abrir tudo, bateu forte nesse eleitorado.

Ascânio Seleme - Bolsonaro tem razão

- O Globo

Ele foi muito claro ao dizer esta semana que “a ideia de furar o teto existe, o pessoal debate, qual o problema?”. Problema nenhum

O presidente está certo. Não dá para impedir e não há nada de mau que as pessoas debatam questões. Ele foi muito claro ao dizer esta semana que “a ideia de furar o teto existe, o pessoal debate, qual o problema?”. Problema nenhum. É verdade também que a ideia de que a família Bolsonaro é corrupta também existe. O pessoal debate. Afinal, a casa usou dinheiro vivo e mal explicado para se dar bem. Ao que tudo indica, o dinheiro empregado na compra de imóveis e para pagar contas da família é público. Ou alguém acha que o dinheiro desviado em rachadinhas pertencia aos funcionários que tiveram parte dos salários surrupiada? Claro que não, eram quase todos fantasmas contratados apenas para viabilizar os desvio. Trata-se de dinheiro do contribuinte. Então o pessoal debate, qual o problema?

Foi um festival de gastos com dinheiro vivo que beneficiou Jair, seus filhos, sua mulher, suas ex-mulheres e seus netos. A turma toda tirou lasquinhas do Erário em benefício próprio. Michelle recebeu depósitos de Fabrício Queiroz. As “ex” Rogéria e Ana Cristina também se locupletaram. Ana comprou cinco imóveis com dinheiro vivo. Rogéria, mais modesta, comprou um apartamento em cash. Dois dos três zeros praticaram rachadinha, assim como o pai. Um deles, o zero mais velho, pagou mensalidades escolares dos netos do presidente com dinheiro arrecadado por Queiroz. Ele mesmo comprou uma loja de chocolates para lavar dinheiro. As pessoas estão discutindo isso por aqui. Qual o problema?

Ainda em 2018, soube-se que o então deputado Bolsonaro recebia auxílio moradia da Câmara mesmo tendo imóvel em Brasília. Questionado por um jornalista sobre a irregularidade, respondeu que usava o dinheiro “para comer gente”. O pessoal acha que Bolsonaro usou dinheiro público ilegalmente e de sobra mostrou como é muito mal-educado. Em junho do ano passado, o presidente foi obrigado judicialmente a pedir desculpas públicas à deputada Maria do Rosário, a quem ofendera em 2014 dizendo que não a estupraria por ela ser “muito feia”. E daí surge um outro debate, este sobre a grossura do presidente. Nenhum problema.

Míriam Leitão - Bolsa Família e Bolsonaro

- O Globo

“O voto do idiota é comprado pelo Bolsa Família”, disse Jair Bolsonaro, certa vez. Ele já definiu esse programa como a forma de “tirar dinheiro de quem produz para dar para quem se acomoda”, e pediu que fosse extinto. Em 2017, em Barretos, afirmou que “para ser candidato a presidente tem que falar que vai ampliar o Bolsa Família”. No mundo inteiro, o Bolsa Família sempre foi elogiado por ter foco, baixo custo, e porque através dele foi criada uma rede de proteção social aos mais vulneráveis no Brasil. Esse presidente, que tem tal desprezo por essa política social, fará agora o Renda Brasil. Seu objetivo é um só: o de se reeleger.

Todas as ações anteriores de Bolsonaro negam qualquer compreensão da importância de políticas de transferência de renda. Em março, foram cortados 158 mil beneficiários do Bolsa Família, 61% eram no Nordeste. Os governadores, então, foram ao Supremo, que na semana passada confirmou a decisão do ministro Marco Aurélio de proibir novos cortes enquanto durar a pandemia. Em junho, o governo tentou tirar dinheiro do Bolsa Família para gastos com publicidade do Planalto. Na quinta-feira passada, o ministro Paulo Guedes, em entrevista a um instituto espanhol, revelou que haverá um acréscimo de seis ou sete milhões de beneficiários. No dia da reunião sobre o teto, Guedes gastou um bom tempo falando no Alvorada que o Renda Brasil será criado. Era uma forma de dizer para o presidente que cortaria gastos, mas daria para ele o Bolsa Família com outro nome.

Julianna Sofia – Autoengano

- Folha de S. Paulo

Teto de gastos não será óbice a seus planos de reeleição

Não acreditem em Jair Bolsonaro. Nas 72 horas que sucederam a revoada do ninho liberal de Paulo Guedes (Economia), o presidente fez, por duas vezes, juras de amor ao teto de gastos —regra que limita o aumento das despesas públicas. Entre uma e outra declarações, deu uma fraquejada: "A ideia de furar o teto existe, o pessoal debate, qual o problema?".

Empunhar a bandeira do liberalismo, do Estado mínimo, das privatizações e da austeridade fiscal sempre foi ato mimetizante de Bolsonaro frente a Guedes para seduzir os donos do PIB. Nunca convenceu, quanto mais agora, que começa a colher os frutos da popularidade depois de R$ 500 bilhões despejados em ações contra a nefasta pandemia. Não há de ser o teto o óbice a seus planos de reeleição, por certo.

Não acreditem em Paulo Guedes. O ministro anuncia a debandada de auxiliares e a investida de colegas fura-teto como forma de pressionar o Palácio do Planalto a renovar os votos pela responsabilidade fiscal e evitar a "zona sombria" do impeachment. Ora, o mesmo Paulo Guedes tentou, em vão, recente operação Mandrake para destinar recursos do Fundeb para o Renda Brasil (novo Bolsa Família) e, assim, burlar o teto.

Hélio Schwartsman - A vacina

- Folha de S. Paulo

Esperar o fármaco parece ser o melhor roteiro, mas será que sua chegada representará o fim de nossos problemas?

Nossa esperança de controle da pandemia de Covid-19 agora recai sobre a vacina. O novo mantra é que devemos aguentar por mais alguns meses sob a versão degenerada de normalidade que conseguimos criar até que o imunizante esteja disponível e todos possamos regressar à normalidade normal.

Esse parece ser mesmo o melhor roteiro. Mas será que a chegada da vacina representará o fim de nossos problemas? Infelizmente, não é tão simples. E nem estou falando da dificuldade logística de produzir bilhões de doses de um imunizante, distribuí-las e aplicá-las em populações que talvez resistam à ideia.

Muito do efeito que a vacinação terá sobre a pandemia depende das características do produto. O fator mais sensível é a eficácia. Não será nenhuma surpresa se uma vacina desenvolvida às pressas não se revelar muito boa. Suponhamos que ela tenha uma eficácia de 40%.

Demétrio Magnoli* - Lukachenko, tirano e vassalo

- Folha de S. Paulo

Presidente bielorrusso tem os traços de um fantoche ideal

No rastro de uma eleição farsesca, enquanto manifestantes sofriam brutal repressão, o presidente da Belarus, Aleksandr Lukachenko, recebia duas mensagens de congratulações.

Uma, do chinês Xi Jinping, desejando-lhe “muitas felicidades”, e a outra, mais específica, do russo Vladimir Putin, dizendo que o resultado “atende aos interesses fundamentais dos povos fraternos da Rússia e da Belarus” e assegura “relações de mútuo benefício em todas as áreas”. Ditadores ajudam uns aos outros —mas há algo mais neste caso.

Xi e Putin temem, acima de tudo, protestos nas ruas. As balas de borracha e a munição real empregadas pelas forças de segurança de Lukachenko, as 6.000 prisões, os espancamentos de detidos —tudo isso serve como alerta disciplinário para chineses e russos. O que aflige Putin, em particular, é o espectro de uma “Maidan bielorrussa”, isto é, a reprodução da revolução ucraniana de 2014 no Estado-vassalo vizinho.

Putin orienta-se pelo manual clássico da geopolítica russa, que enxerga o corredor de planícies entre a Alemanha e a Rússia europeia como estrada de trânsito de exércitos invasores. Há uma história longa, dramática, pontuada por Napoleão e Hitler, que sustenta o raciocínio.

Depois da implosão da URSS, a Otan avançou suas forças até a fronteira oriental polonesa. Moscou não classifica Belarus como nação soberana, mas como ativo territorial de profundidade estratégica russa.

Oscar Vilhena Vieira* - Perverso pacto racial

- Folha de S. Paulo

Sem derrotar o racismo, jamais nos humanizaremos como nação

O racismo é uma invenção branca voltada a naturalizar a exclusão, a subordinação e a exploração da população negra, assim como a legitimar a violência contra pretos e pardos, sem a qual a dominação branca não subsistiria.

O racismo está presente em todas as esferas da vida brasileira. Ele reforça e aprofunda a persistente desigualdade política, econômica e social. O racismo basicamente exclui os negros da esfera política e conspira para sua subordinação e exploração no âmbito econômico, assim como estabelece hierarquias e discriminação na vida privada, nas relações pessoais e mesmo afetivas. Nada escapa a essa ideologia difusa, intricada, mas sempre cruel do racismo.

As últimas semanas foram pródigas em expor a violência e a discriminação impostas contidamente a pessoas pelo simples fato de serem negras ou professarem uma religião de origem africana. Como salienta Flávia Oliveira, “o racismo não dá trégua”.

A resistência heroica de Dandara e Zumbi de Palmares, passando por Tereza de Benguela, Luís Gama, André Rebouças, José do Patrocínio, Laudelina de Campos Mello, Carolina de Jesus e Abdias do Nascimento, chegando a Marielle Franco, são a demonstração de que o povo negro jamais abdicou de denunciar as injustiças e lutar pela igualdade.

Essas lutas do povo negro levaram ao fim da escravidão e promoveram inúmeros avanços, alguns deles expressos na Constituição de 1988 e em políticas afirmativas e antidiscriminatórias colocadas em prática nas últimas décadas.

Ricardo Noblat - Metade dos brasileiros decidiu passar o pano em Bolsonaro

- Blog do Noblat / Veja

Se todos são culpados, ninguém é

A julgar pelos resultados da nova pesquisa do Datafolha, a maioria dos brasileiros decidiu absolver Jair Bolsonaro dos seus pecados. Quase metade dos entrevistados nos últimos dias 11 e 12 disse acreditar que o presidente não tem culpa alguma pelo fato de o coronavírus ter matado mais de 100 mil pessoas no país.

Dos 52% que responderam que ele tem, sim, apenas 11% o veem como principal culpado, e 41% como um dos culpados, mas não o principal. Naturalmente, o maior percentual dos que passam o pano em Bolsonaro está os que consideram seu governo ótimo ou bom e que votaram nele no segundo turno da eleição de 2018.

A turma do andar de cima, que ganha mais de 10 salários mínimos por mês, aponta Bolsonaro como o principal ou um dos culpados pelas mortes. A do andar de baixo, que ganha até dois salários mínimos e que se beneficiou com o auxílio emergencial para combater a doença, acha justamente o contrário.

E não dá importância ao fato de que ele minimizou a pandemia chamando-a de gripezinha, boicotou as medidas de isolamento social decretadas por governadores e prefeitos, defendeu a volta ao trabalho para salvar a economia, e recomendou o uso de uma droga que se revelou ineficaz para deter o vírus.

Mais de 3 milhões de brasileiros já foram infectados pelo Covid-19, segundo os registros oficiais, mas o número provavelmente é muito maior por causa da subnotificação. E daí? Exatos 49% dos entrevistados concordam com a afirmação genérica de que o Brasil não fez o suficiente para livrar-se do flagelo.

João Gabriel de Lima - Precisamos de prefeitos padrão Colômbia

- O Estado de S.Paulo

Com sorte, ouviremos muito sobre urbanismo social nas campanhas municipais

Em sua conta no Instagram, a prefeita de Bogotá, Claudia López, percorre bairros assolados pela pandemia – nunca sem máscara. Nas horas de folga, flana pela cidade em sua bicicleta – nunca sem capacete. Numa live na semana passada, a “alcaldesa” lamentou a tragédia do coronavírus, mas disse que a situação poderia levar a uma modernização na mobilidade urbana. Para compensar a restrição de passageiros nos ônibus do TransMilenio – o BRT que interliga Bogotá –, ela criou 84 novos quilômetros de ciclovias. Claudia López pretende aumentar as faixas para bicicletas em 50% até o fim do mandato.

A opção pelas duas rodas não é capricho de prefeita que anda de bike. Trata-se de uma tradição da cidade. Em 1974, por demanda de moradores, Bogotá foi pioneira em fechar ruas para ciclistas. Hoje, 7% dos deslocamentos da cidade são em bicicletas, maior índice da América Latina. Andar de carro em Bogotá é um tormento. Em média, seus motoristas perdem 191 horas por ano em congestionamentos. “Temos que atacar esse problema e também evitar que o planeta acabe por causa das emissões de carbono”, disse Claudia López na live. “A bicicleta pode ser uma solução para as duas coisas.”

São Paulo dá café, Minas dá leite, Vila Isabel dá samba – e a Colômbia é celeiro de prefeitos instagramáveis e premiados internacionalmente. Em Bogotá, Claudia López segue a trilha de Antanas Mockus e Enrique Peñalosa. Em seus mandatos, eles transformaram a cidade em referência no urbanismo, apesar do trânsito. Por causa deles – e de prefeitos que, com a ajuda da sociedade civil, estancaram a criminalidade na Medellín de Pablo Escobar –, a Colômbia se tornou a Meca do urbanismo social, a vertente mais vibrante do debate atual sobre cidades. Com sorte, ouviremos muito a expressão nas campanhas municipais.

Adriana Fernandes - É o dinheiro das eleições!

- O Estado de S.Paulo

O comando do Ministério da Economia não ofereceu resistências à MP e não viu problemas no uso de créditos extras

É a pressa do calendário político que move o acordo do presidente Jair Bolsonaro com lideranças partidárias do bloco do Centrão para enviar ao Congresso uma Medida Provisória (MP) que abre um crédito extraordinário de cerca de R$ 5 bilhões para custear investimentos em infraestrutura e ações indicadas por parlamentares.

Esse tipo de crédito é uma das poucas exceções possíveis para que despesas fiquem livres de qualquer limitação imposta pelo teto de gastos e pode ser feito por meio de MP. É com esses créditos que o governo tem liberado recursos para o enfrentamento da covid-19 no chamado orçamento de guerra.

Em ano eleitoral, os parlamentares querem mesmo é ver recursos na mão e bem rápido. Simples assim. A pandemia do coronavírus é só o pano de fundo. Não há uma política coordenada, bem desenhada e planejada de investimentos públicos para estimular a retomada econômica, como defendem muito economistas de dentro e fora do governo.

Como o Palácio do Planalto argumenta que a quantia de R$ 5 bilhões não é tanto dinheiro assim e que há espaço fiscal, Bolsonaro bem que podia tentar um remanejamento de recursos do Orçamento via crédito suplementar.

O problema técnico e político do crédito suplementar é que ele tem que ficar dentro do teto e só pode ser aberto se cancelar outra dotação orçamentária. Pelo valor proposto, o mais provável é que a liberação dos recursos exigisse, ao final, projeto de lei e não a edição de um decreto. Levaria, portanto, mais tempo, o que os políticos não têm.

Sergio Fausto* - Trump e Bolsonaro, semelhanças inquietantes

- O Estado de S.Paulo

Ao olhar os Estados Unidos, vemos também o Brasil. Há diferenças, claro, mas...

No início de maio um grupo de manifestantes ostensiva e fortemente armados irrompeu na Assembleia Legislativa de Michigan para protestar contra a quarentena decretada pela governadora democrata para deter o crescimento da pandemia. Donald Trump não demorou a disparar um tuíte em apoio aos manifestantes. O fato de o grupo de brutamontes (todos homens, todos brancos) estar portando rifles não pareceu digno de nota ao presidente americano. Jair Bolsonaro teria vibrado, a julgar pelo que disse na famigerada reunião ministerial de 22 de abril, em que defendeu armar o povo para enfrentar prefeitos e governadores.

Em julho, a retórica incendiária do presidente americano inflamou-se ainda mais. Prefeitos democratas de cidades onde eram realizadas manifestações, em geral pacíficas, do movimento Black Lives Matter foram acusados de nada fazerem para evitar a “anarquia social”. Da retórica Trump passou à ação, enviando agentes policiais da União para reprimir os protestos, em decisão que pode configurar abuso do poder presidencial. Os agentes federais, camuflados como militares em guerra, têm agido com violência injustificável, enquanto Trump chama os manifestantes de “marginais”. Bolsonaro os teria chamado de “terroristas e maconheiros”. Ao menos foi o que disse a respeito de quem saiu às ruas no começo de junho para protestar contra o seu governo.

Atrás em todas as pesquisas de opinião, sem controle sobre a pandemia, Trump está na busca desesperada por uma narrativa que o mantenha no páreo para as eleições de novembro. Quer ser o candidato da lei e da ordem.

Marco Aurélio Nogueira* - Os democratas norte-americanos e seus demônios

-Revista Será? (PE)

Como toda boa organização política, o Partido Democrata norte-americano é um compósito de correntes. Tem sua direita, seu centro e sua esquerda, que se batem entre si especialmente durante as convenções partidárias, quando as eleições presidenciais chegam à fase das definições e as campanhas ganham cara, força e ritmo.

As alas à esquerda costumam ser mais combativas, como é de esperar. Vocalizam grupos enraizados no mundo cultural e acadêmico. São expressivas nos movimentos por direitos e reconhecimento. Fazem política de um modo particular, no qual a ideologia e o simbolismo têm papel de destaque. Renegam o pragmatismo e gostam de promover o desgaste das candidaturas partidárias, sobretudo as presidenciais. Alegam que a pressão interna é decisiva para que o Partido Democrata não esmoreça e combata o sistema.

Em 2016, fuzilaram Hillary Clinton e contribuíram, indiretamente, para afastar eleitores progressistas ou predispostos a apoiar a candidata do partido. Os demônios partidários terminaram por tirar parte dos votos de Hillary.

Estão ensaiando fazer o mesmo hoje, mediante a interposição de vetos (discretos ou ostensivos) a Joe Biden e à escolha da senadora Kamala Harris como sua companheira de chapa. As ressalvas se apoiam em críticas à “elite democrática”, que só olharia para os próprios interesses, não ouviria as vozes mais jovens nem daria a devida ênfase às questões identitárias e às reformas sociais. Em certos setores, dá-se maior importância ao passado de Kamala Harris – que foi procuradora do estado da Califórnia – que a seu significado político na disputa eleitoral de 2020. Chega-se mesmo a dizer que a senadora é uma “policial” travestida de democrata e indiferente aos eleitores negros mais jovens.

Marcus Pestana* - As mudanças recentes na conjuntura política

Como estávamos em 2019? A radicalização ideológica atingiu grau máximo. Manifestações pela volta do AI-5 e pelo fechamento do Congresso Nacional e do STF reafirmaram a divisão do país, na reprodução modificada do nefasto nós contra eles, que já vigia na era petista. O Presidente se pronunciava diariamente em temas polêmicos estimulando o bolsão mais radical do bolsonarismo. A recuperação econômica após a grande recessão do Governo Dilma era tímida e lenta. O desemprego permanecia em níveis elevados.

A base parlamentar do governo era frágil para sustentar as inadiáveis reformas. O desgaste na imagem do país foi enorme nos campos ambiental, educacional, dos direitos humanos e diplomático. De bom houve a reforma da previdência, graças à lucidez das lideranças congressuais. Mas municípios e estados ficaram de fora. Resultado: inflação baixa, PIB crescendo insuficientes 1,1%, desemprego alto, queda na aprovação do governo federal e tensão institucional inédita.

Veio a pandemia. Já são mais de 105 mil vidas brasileiras perdidas. O foco da sociedade e dos governos se voltou inteiramente para a saúde. O SUS e a saúde suplementar foram submetidos a um teste radical. Com o isolamento social, período para acúmulo de informações sobre o vírus e a preparação da retaguarda hospitalar, responderam satisfatoriamente. Infelizmente, o governo federal renunciou a seu papel coordenador. Ao contrário, patrocinou o confronto com governadores e prefeitos. As desigualdades profundas foram escancaradas. Os invisíveis tornaram-se visíveis. O Congresso Nacional assumiu o protagonismo aprovando o estado de calamidade pública, o auxílio emergencial, o “orçamento de guerra”, o apoio de crédito às empresas e o programa de manutenção dos empregos.

Wade Davis*- O Fim da Era Americana: O desmoronamento da América

- Revista Rolling Stones, edição 06/08/2020

Nunca em nossas vidas experimentamos um fenômeno tão global. Pela primeira vez na história do mundo, toda a humanidade, informada pelo alcance sem precedentes da tecnologia digital, se uniu, focada na mesma ameaça existencial, consumida pelos mesmos medos e incertezas, antecipando ansiosamente os mesmos, por enquanto promessas não realizadas da ciência médica.

Em uma única estação, a civilização foi derrubada por um parasita microscópico 10.000 vezes menor que um grão de sal. COVID-19 ataca nossos corpos físicos, mas também os alicerces culturais de nossas vidas, a caixa de ferramentas da comunidade e conectividade que é para o humano o que garras e dentes representam para o tigre.

Nossas intervenções, até o momento, têm se concentrado principalmente em mitigar a taxa de disseminação, achatando a curva de morbidade. Não há tratamento disponível e nenhuma certeza de uma vacina no horizonte próximo. A vacina mais rápida já desenvolvida foi para caxumba. Demorou quatro anos. COVID-19 matou 100 mil americanos, em quatro meses. Há algumas evidências de que a infecção natural pode não implicar imunidade, deixando alguns questionando a eficácia de uma vacina, mesmo supondo que uma possa ser encontrada. E deve ser seguro. Se a população global for imunizada, complicações letais em apenas uma pessoa em mil implicariam na morte de milhões.

Pandemias e pragas costumam mudar o curso da história, e nem sempre de uma maneira imediatamente evidente para os sobreviventes. No século 14, a Peste Negra matou quase metade da população da Europa. A escassez de mão de obra levou ao aumento dos salários. As expectativas crescentes culminaram na Revolta dos Camponeses de 1381, um ponto de inflexão que marcou o início do fim da ordem feudal que dominou a Europa medieval por mil anos.

A pandemia COVID será lembrada como um desses momentos da história, um evento seminal cujo significado só se revelará na esteira da crise. Isso marcará esta era tanto quanto o assassinato do arquiduque Ferdinand em 1914, a quebra do mercado de ações em 1929 e a ascensão de Adolf Hitler em 1933 se tornaram referências fundamentais do século passado, todos os arautos de resultados maiores e mais consequentes.

Torpor moral – Editorial | O Estado de S. Paulo

Grande parte da opinião pública considera as múltiplas barbaridades cometidas por Bolsonaro não só aceitáveis, como irrelevantes

A aprovação popular do presidente Jair Bolsonaro melhorou consideravelmente, segundo pesquisa recente do Datafolha. Passou de 32% em junho para 37% agora a parcela de brasileiros que consideram Bolsonaro “ótimo” ou “bom” mesmo com mais de 100 mil compatriotas mortos numa pandemia que poderia ter sido mitigada se o presidente não tivesse desdenhado da doença nem das vítimas; mesmo com a economia em ruínas e com perspectivas sombrias graças à falta de rumo do governo; mesmo com a destruição do Ministério da Educação, com efeitos avassaladores para o futuro do País; mesmo com a devastação da Amazônia a olhos vistos, estimulada pela leniência oficial; mesmo com a transformação do Brasil em pária internacional graças a uma política externa ideologicamente sustentável; mesmo com o sistemático descumprimento de todas as promessas de campanha, inclusive aquela que garantia que Bolsonaro não recorreria ao toma lá dá cá no Congresso; e mesmo com o aparecimento inexplicável de cheques suspeitos na conta da primeira-dama, algo que, em outros tempos e com outros personagens, causaria furor nacional.

Que a popularidade do presidente tenha aumentado entre os mais vulneráveis da população, justamente aqueles que dependem da ajuda do governo federal para atravessar as terríveis provações causadas pela pandemia, é compreensível, mas não deixa de ser amargo: trata-se da comprovação de que uma parcela significativa dos brasileiros se dá por satisfeita e fica feliz com o governo quando tem o que comer.

O espectro – Editorial | Folha de S. Paulo

Caso Queiroz deve ser esclarecido para definir grau de envolvimento de Bolsonaro

Um espectro ronda o bolsonarismo. Não se trata, como suporiam seguidores do presidente, do comunismo da abertura do manifesto de Karl Marx e Friedrich Engels, mas de uma pessoa: Fabrício Queiroz.

Amigo e auxiliar de Bolsonaro desde 1984 e por último empregado no gabinete de deputado estadual de seu primogênito, o hoje senador Flávio (Republicanos-RJ), Queiroz está no centro das investigações e suposições acerca de práticas ancestrais da família.

Ele foi mandado de volta à prisão, assim como sua antes foragida mulher, Márcia. Livre, ele adulterava provas comprometedoras para a apuração, segundo despacho do Superior Tribunal de Justiça. O casal estava em prisão domiciliar.

Nos últimos dias, apurações do Ministério Público do Rio adensaram a suspeita de que Queiroz, Flávio e o presidente formavam um núcleo de atuação coeso.

A filha do ex-assessor, Nathalia, teria abastecido o esquema das “rachadinhas” na Assembleia Legislativa do Rio com 77% do que ganhou no gabinete do então deputado federal Jair Bolsonaro de janeiro de 2017 a setembro de 2018.

Popularidade de Bolsonaro cria risco fiscal – Editorial | O Globo

Descartar o teto de gastos para favorecer o projeto político do presidente seria um disparate

Nenhuma pesquisa equivale à realidade, mesmo assim os últimos números do Datafolha bastam para comprovar a inflexão na queda de popularidade sofrida pelo presidente Jair Bolsonaro desde o início da pandemia. Apesar da responsabilidade inequívoca dele na tragédia das 106 mil mortes, nunca tantos brasileiros aprovaram seu governo. Aqueles que o consideram ótimo ou bom somaram 37% — eram 32% no final de junho. Os que o julgam ruim ou péssimo foram 34% — eram 44%. Desde a posse, é a primeira vez que mais gente aprova do que reprova a gestão Bolsonaro.

São dois os motivos para isso. Primeiro, o auxílio emergencial de R$ 600, distribuído a 65,3 milhões de brasileiros em virtude da pandemia. Entre os que solicitaram o benefício, a aprovação de Bolsonaro é 6 pontos maior. Três quintos da alta na popularidade vêm, diz o Datafolha, da população com renda familiar de até três salários mínimos. A reprovação a Bolsonaro caiu 13 pontos nessa faixa desde junho, e também 13 pontos entre os que têm instrução fundamental. No Nordeste, região a que Bolsonaro tem se dedicado com afinco, a reprovação caiu 17 pontos, enquanto a aprovação subiu 6. O auxílio serviu para que ele atraísse o eleitorado tradicionalmente associado ao lulismo.

Música | Gloria Estefan - Samba

Poesia | Vinicius de Moraes - Copacabana

Esta é Copacabana, ampla laguna
Curva e horizonte, arco de amor vibrando
Suas flechas de luz contra o infinito.
Aqui meus olhos desnudaram estrelas
Aqui meus braços discursaram à lua
Desabrochavam feras dos meus passos
Nas florestas de dor que percorriam.
Copacabana, praia de memórias!
Quantos êxtases, quantas madrugadas
Em teu colo marítimo!

- Esta é a areia

Que eu tanto enlameei com minhas lágrimas
- Aquele é o bar maldito. Podes ver
Naquele escuro ali? É um obelisco
De treva - cone erguido pela noite
Para marcar por toda a eternidade
O lugar onde o poeta foi perjuro.
Ali tombei, ali beijei-te ansiado
Como se a vida fosse terminar
Naquele louco embate. Ali cantei
À lua branca, cheio de bebida
Ali menti, ali me ciliciei
Para gozo da aurora pervertida.

Sobre o banco de pedra que ali tens
Nasceu uma canção. Ali fui mártir
Fui réprobo, fui bárbaro, fui santo
Aqui encontrarás minhas pegadas
E pedaços de mim por cada canto.
Numa gota de sangue numa pedra
Ali estou eu. Num grito de socorro
Entreouvido na noite, ali estou eu.
No eco longínquo e áspero do morro
Ali estou eu. Vês tu essa estrutura
De apartamento como uma colmeia
Gigantesca? em muitos penetrei
Tendo a guiar-me apenas o perfume
De um sexo de mulher a palpitar
Como uma flor carnívora na treva.
Copacabana! ah, cidadela forte
Desta minha paixão! a velha lua
Ficava de seu nicho me assistindo
Beber, e eu muita vez a vi luzindo
No meu copo de uísque, branca e pura
A destilar tristeza e poesia.
Copacabana! réstia de edifícios
Cujos nomes dão nome ao sentimento!
Foi no Leme que vi nascer o vento
Certa manhã, na praia. Uma mulher
Toda de negro no horizonte extremo
Entre muitos fantasmas me esperava:
A moça dos antúrios, deslembrada
A senhora dos círios, cuja alcova
O piscar do farol iluminava
Como a marcar o pulso da paixão
Morrendo intermitentemente. E ainda
Existe em algum lugar um gesto alto,
Um brilhar de punhal, um riso acústico
Que não morreu. Ou certa porta aberta
Para a infelicidade: inesquecível
Frincha de luz a separar-me apenas
Do irremediável. Ou o abismo aberto
Embaixo, elástico, e o meu ser disperso
No espaço em torno, e o vento me chamando
Me convidando a voar... (Ah, muitas mortes
Morri entre essas máquinas erguidas
Contra o Tempo!) Ou também o desespero
De andar como um metrônomo para cá
E para lá, marcando o passo do impossível
À espera do segredo, do milagre
Da poesia.

Tu, Copacabana,

Mais que nenhuma outra foste a arena
Onde o poeta lutou contra o invisível
E onde encontrou enfim sua poesia
Talvez pequena, mas suficiente
Para justificar uma existência
Que sem ela seria incompreensível.