O presidente Lula dizer que não vê crise no PT, se não for um achincalhe, pode parecer esperteza política, mas trata-se apenas da expressão de seu egoísmo ímpar. O projeto político do presidente há muito tempo deixou de ter — se é que já teve algum dia — um horizonte mais amplo do que a simples manutenção do poder. A senadora Marina Silva, ao dizer que abandonava 30 anos de militância petista em busca de uma utopia que o partido já não sustenta, estava dizendo, em outras palavras, o que o atual governador de São Paulo, e provável candidato tucano à Presidência em 2010, José Serra, constatou no início do governo: os petistas, na sua definição, eram bolcheviques sem utopias, cujo objetivo era o poder pelo poder
Foi o presidente do PT, Ricardo Berzoini, cara e jeito de burocrata stalinista, quem decretou o fim de uma tímida revolução de veludo na bancada petista do Senado, cuja maioria pretendia abrir processo contra o presidente do Senado, José Sarney, para manter pelo menos as aparências.
Mas o que menos importa a Lula são as aparências, escudado em sua popularidade excepcional, que parece blindada contra tudo. (Até quando?) Para levar adiante o projeto político pessoal de fazer seu sucessor — até o momento uma sucessora, na verdade — ele não mede esforços nem palavras. Desmoraliza os políticos de maneira geral, e os do PT com especial crueldade, e distorce a história política, a do país e a própria.
Como no momento o que importa é garantir o apoio do PMDB à candidatura de Dilma Rousseff, — leia-se minutos de propaganda eleitoral no rádio e TV —, ele mistura alhos com bugalhos e refaz a própria história do PT, comparando Sarney e Collor a Getulio e Jânio Quadros, todos vítimas, na peculiar visão lulista, de movimentos impensados da opinião pública, exacerbada pela mídia e por seus adversários.
Como se não tivesse sido um dos líderes do movimento que derrubou Collor do poder, aliado a Sarney, cuja filha Roseana chegou a ser definida como “a musa do impeachment”.
Crise após crise, Lula vai refazendo seus conceitos, abrindo mão de símbolos petistas para se aliar a símbolos da política que prometia combater ao chegar ao poder. O senador Flávio Arns, que está de partida do PT envergonhado do caminho que o partido vem tomando, é um remanescente dos grupos ligados às Comunidades Eclesiais de Base (CEBS), um dos pilares da fundação do PT.
Quando pensou em fundar um partido social-democrata, Fernando Henrique e outros políticos dissidentes do PMDB, à falta de uma base operária que é característica da social-democracia, procuraram Frei Beto para propor a organização partidária a partir das bases desses movimentos católicos.
Esses movimentos uniram-se afinal aos sindicalistas de São Bernardo para fundar o Partido dos Trabalhadores.
A revolta do senador Flávio Arns, sobrinho de Zilda Arns e de D. Paulo Evaristo, arcebispo de São Paulo, uma tradicional família ligada à Igreja Católica e aos movimentos sociais de ajuda aos necessitados, — ele se dedica especialmente aos deficientes físicos — deve ter ecoado mais fundo em certos setores petistas do que até mesmo a desistência de Marina.
A senadora sai, afinal, com um projeto eleitoral que pode levá-la à Presidência da República e à realização de sua utopia verde.
Os próprios petistas já tratam de desqualificar seu gesto, atribuindo-o a uma suposta manobra do PSDB, mais especificamente do governador José Serra, a quem se atribui uma influência política muito maior do que a que ele realmente tem.
Já se fala em Marina para vice numa eventual chapa com Serra, numa coligação antes mesmo do primeiro turno, o que considero completamente sem sentido.
Se há alguma vantagem para os tucanos na presença de Marina na corrida sucessória é justamente a de quebrar o caráter plebiscitário da disputa, que o presidente Lula gostaria que acontecesse.
Trazer a senadora Marina Silva para dentro da chapa dos tucanos, além de reduzir seu gesto a uma manobra eleitoral, levaria novamente a disputa para a dupla PT/PSDB.
E Marina não parece desses políticos que abrem mão de suas utopias por meras jogadas políticas.
Já Flávio Arns deixa o partido em protesto contra a falta de ética de suas ações políticas, o que tem peso nesses setores ligados à Igreja Católica que não acompanharam os companheiros que se desligaram anteriormente ou do governo, como Frei Beto e Oded Grajew, ou para formar o PSOL.
Boa parte desses, como o deputado federal Chico Alencar, também ligada aos movimentos católicos da esquerda.
A tentativa de Lula de desqualificar seu gesto, chamando-o de “senador de primeiro mandato” e dizendo que ele sempre foi “encrencado” com o PT, só mostra o vezo autoritário de Lula, que não aceita discutir divergências no partido que comanda com mão de ferro.
O senador Aloizio Mercadante, que acabou compreendendo que já não era o líder de fato da bancada e que ao Palácio do Planalto agradaria sua saída efetiva do cargo, diz que vai continuar lutando dentro do partido para mudar os seus rumos, mas não parece ter o apoio nem o ânimo necessários a uma tarefa dessa envergadura.
Mais preocupado com sua reeleição para o Senado, que corre um sério risco de ser sabotada, primeiro dentro do próprio PT, e, se vingar, também pelos eleitores, Mercadante tende a ser engolido nesse turbilhão que engolfou o PT a pouco mais de um ano das eleições gerais.
Lula trata seus companheiros petistas com a prepotência dos autocratas: só quem segue fielmente seu comando, pode contar com as benesses que ele distribui com seu poder e sua popularidade.