Almino: "O golpe fez parte da história do século XX, capítulo do entrechoque entre Estados Unidos e União Soviética. Sem considerar a Guerra Fria não se entende o golpe no Brasil"
Os comunistas não tinham como chegar ao poder. Por eleições, nem falar; por luta armada, nem falar; muito menos em aliança com Jango
Paulo Totti
SÃO PAULO - Em 10 de abril de 1964, o Brasil soube que Almino Monteiro Álvares Affonso era o inimigo público número 14 da República. Esta foi sua posição na lista de 102 brasileiros que tiveram direitos políticos suspensos por integrar, ou apoiar, segundo registros da época, o governo "comuno-petebo-sindicalista" deposto pelas Forças Armadas entre os dias 31 de março e 2 de abril. João Goulart foi o primeiro. Seguiam-no Jânio Quadros, Luiz Carlos Prestes, Miguel Arraes, Leonel Brizola. O sexto era Rubens Paiva. Celso Furtado, o décimo. Em 9 de abril, o golpismo vitorioso se considerou "autêntica revolução" e se investiu em poder constituinte, conforme o Ato Institucional assinado nesse dia pela junta militar.
O Ato ficou sem número porque os autores não pensaram na hipótese de uma sequência. Mas, em outubro de 1965, veio o AI-2. Depois, o AI-3, o feroz AI-5, até o AI-17, em 1969, além de 104 Atos Complementares, com anexas cassações de mais políticos eleitos, ministros do STF, militares dissidentes e de potenciais candidatos à Presidência, como o ex-presidente Juscelino Kubitschek e até o ex-governador Carlos Lacerda, líder civil, nos primórdios, do que também se chamou "redentora".
Almino Affonso testemunhou em Brasília a agonia do regime constitucional. Em 44 horas, ruiu um governo que se considerava forte, confiado em apoio popular despido de organização para a resistência e em dispositivo militar que não agiu nem reagiu.
Aos 85 anos, Almino diz que o golpe foi mais que simples quartelada. "Fez parte da história do século XX, capítulo do entrechoque entre Estados Unidos e União Soviética. Sem considerar a Guerra Fria não se entende o golpe no Brasil." O ex-deputado amazonense, na época líder do PTB, partido de Jango, rejeita a versão de que o país foi salvo do comunismo iminente. "Os comunistas não tinham como chegar ao poder. Por eleições, nem falar; por luta armada, nem falar; muito menos em aliança com Jango. A que título um proprietário de terras faria aliança que levasse ao comunismo?"
Sobre o fato de Jango abandonar o poder sem luta, é incisivo: "Não se pode chamar de covarde a quem, tendo um canivete, não reage ao ataque de alguém armado com metralhadora".
- Houve traição, incompetência? O general Argemiro Assis Brasil, chefe da Casa Militar, dizia que armara invencível dispositivo militar para repelir tentativas golpistas.
- Não tenho condições de dizer se houve omissão traiçoeira. Mas houve, no mínimo, incompetência.
As reflexões de Almino estão no livro "1964: Na Visão do Ministro do Trabalho de João Goulart", a ser lançado em noite de autógrafos na Livraria Cultura, em São Paulo, no dia 31. Passados 50 anos, uma conversa com Almino é sempre uma revisita - com redescobertas - à história recente do país.
Bigodes e cabelos levemente grisalhos, glicemia sob controle, ainda vigoroso no vozeirão, no sorriso e na memória, indicou o Ristorante Santo Colomba para este "À Mesa com o Valor". É casa de comida italiana na região dos Jardins, decoração transplantada de antigo bar do Jockey Club do Rio, com a peculiaridade de não aceitar cartões de crédito ou débito. Almino e o proprietário-chefe-de-cozinha, José Alencar de Souza, mineiro de Montes Claros, são amigos de longa data. Encontram-se no corredor e ali mesmo, de pé, decidem que se servirá no jantar arroz com frutos do mar para três. A fotógrafa Ana Paula Paiva e o repórter assistem. Alencar sugere vinho branco. Almino discorda: "No Chile, virei 'tintero', só tomo vinho tinto". Chegam a feliz acordo. O arroz, perfeito no cozimento, e a textura suave do polvo, dos camarões, da lula, conviveriam em harmonia com o Carmenère.
Traçar o perfil de Almino requer recursos de "flashback", recuos e avanços. Líder estudantil, candidato a vereador em São Paulo, deputado federal pelo Amazonas, ministro do Trabalho no governo Goulart, cassado, exilado, secretário de Negócios Metropolitanos no governo de Franco Montoro em São Paulo, vice no de Orestes Quércia, candidato a governador, novamente deputado federal e candidato ao Senado. Vitórias e derrotas nas passagens por siglas como PSB, PST, PTB, MDB, PMDB, PSDB e PDT. Às quais se agregaria PT, se frutificasse o flerte com Luiz Inácio Lula da Silva, em 1979/80 - "diálogos com Lula, razão talvez para outro livro". Aposentado pelos três mandatos de deputado, vive em São Paulo. Sem partido e "inquieto com a falta de representatividade e respeitabilidade de todos os partidos".
"Fale do que viveu, viu e ouviu naqueles dias", pede o repórter.
31 de março. O líder do PTB chega à Câmara pela manhã e surpreende-se com tantos deputados nos corredores. "Não sabe? O general Olímpio Mourão Filho, comandante da guarnição de Juiz de Fora, desde as seis horas está em marcha para derrubar o Jango." Almino liga para o líder do PTB no Senado, Artur Virgílio, pai do hoje prefeito de Manaus. O senador também nada sabe e convida Almino a ir até seu apartamento. De lá, Virgílio telefona para o Palácio das Laranjeiras, no Rio. Almino ouve na extensão. Jango diz que é tudo boato e faz uma pausa. Ouve-se alguém entrar no gabinete. "General", diz Jango, "o que há de verdade sobre sublevação do Mourão?" Uma voz responde: "Nada, presidente, é um movimento de rotina, comum". O interlocutor era o general Assis Brasil. "Nada mais, general?". "Nada mais, presidente, é só isso". Jango ao senador: "Ouviste, Artur? É mais uma falsidade dessa oposição".
À tarde, a Câmara inteira está nos corredores. "Entro numa daquelas rodas e digo: 'De onde vocês tiram tanta fantasia?' E contei o que ouvi. O sobrinho do Juscelino, deputado Carlos Murilo, me tira da roda e diz: 'Se o que você disse é jogada do presidente para criar um clima de distensão, não sei se tem utilidade. Mas, se diz isso porque acredita, está perdido. Belo Horizonte está em pé de guerra. O governador Magalhães Pinto assumiu o comando civil do que chamam de revolução, o general Carlos Luiz Guedes, comandante da IV Infantaria Divisionária, sediada em BH, é o comandante militar. Como é que o presidente não sabe disso?"
O presidente não sabia. A conversa com Virgílio foi ao meio-dia e o presidente só soube oficialmente da sublevação às seis da tarde, quando o ministro da Justiça, Abelardo Jurema, interrompeu um despacho e entregou-lhe um bilhete. A essa altura, Mourão estava às portas do Rio. Ainda agora, Almino se exaspera: "Do meio-dia às seis da tarde! Como é que o Assis Brasil, questionado por Jango ao meio-dia, não tomou providências, não se informou? Ligasse a um compadre. 'Me conta aí, está havendo algo em Minas?'"
À noite, Jango recebe políticos, Juscelino entre eles, que aconselham recuos: "Rompa com os sindicatos", "demita ministro tal", "feche a UNE [presidida por José Serra]". Jango se negava. Na manhã do dia 1º, voa para Brasília, depois de saber que o general Amaury Kruel, comandante do II Exército, até então amigo, além de compadre, aderira à sedição. O general Armando Âncora, substituto do ministro da Guerra, Jair Dantas Ribeiro, operado de câncer, alega não poder garantir a segurança do presidente no Rio.
Às duas da tarde, Jango chama a uma reunião na Granja do Torto o senador Artur Virgílio e os deputados Tancredo Neves, Doutel de Andrade, Temperani Pereira, Luiz Fernando Bocayuva Cunha e Almino. "Vi o presidente com fisionomia abatida, barba por fazer, terno amarfanhado. Telefona o general Ladário Pereira Teles, comandante do III Exército, e recomenda a ida imediata para Porto Alegre, onde imaginava poder resistir. Jango pede nossa opinião. Tancredo e sucessivamente os demais são a favor. Jango concordou, mas deixou claro que não queria dividir o país e repetiu o que já dissera: 'Não suporto a hipótese de derramar sangue do povo em nome do meu mandato'".
Conseguiram o avião mais moderno do país, o Convair 990 da Varig, conhecido como Coronado, 920 quilômetros por hora em voo cruzeiro. Com ele, Jango iria depressa para Porto Alegre. Era começo da noite, aeroporto cheio de aliados civis.
"Detalhe inquietante, o general Nicolau Fico, comandante militar de Brasília, chega de cara amarrada, mal cumprimenta o presidente e retira-se." Jango vai para o avião, aos poucos as pessoas deixam o aeroporto. "Ficamos, Tancredo, Bocayuva, grande pessoa, meu irmão, e eu. E o avião enorme ali, todo iluminado, não saía do lugar. Já eram dez horas, e nada. Soldados da Aeronáutica fecham o acesso ao pátio do aeroporto. Fiquei com dor no estômago. 'Tancredo, minha sensação é que vão prender o presidente aqui, na cara da gente'. Disse o Tancredo: 'Vamos lá falar com o presidente, tomar alguma providência'".
"Os soldados puseram baioneta na nossa cara. Aí, o Tancredo: 'Abaixem as armas, somos representantes do povo'. Um coronel nos deixa passar. Jango, com Assis Brasil atrás dele, já descia a escada do avião. Abraça-nos e diz: 'Pois é, houve uma pane. É o que dizem'. Levaram Jango para um Avro da FAB, turbo-hélice, um aviãozinho. E naquilo foi Jango para Porto Alegre".
À saída do aeroporto, Tancredo disse: "Há dez anos, participei da última reunião presidida pelo doutor Getúlio. Agora me pergunto se a história se repete e foi a última vez que abracei Jango como presidente".
"Ô, Tancredo, por que tanto pessimismo?", disse Almino.
"Vocês são jovens. Acreditam que o Rio Grande tem condições de resistir sozinho."
À meia-noite, vem o aviso de que o presidente do Senado, Auro Moura Andrade, convocava o Congresso para sessão extraordinária à uma da manhã. "Sentei na primeira fila, ao lado de Tancredo. Auro abre a sessão e lê uma carta do Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil, em que este informava ter o presidente viajado para o Rio Grande do Sul. Encontrava-se, portanto, em território nacional. Ato contínuo, Auro faz o discurso que todos conhecem, diz que o governo está acéfalo e pronuncia as frases célebres: 'Declaro vago o cargo de presidente da República... O presidente da Câmara dos Deputados, Rainieri Mazilli, assume a Presidência da República'".
"Tancredo se levanta e grita: "Canalha! Canalha!" E o deputado Rogê Ferreira, do PSB de São Paulo, porte atlético, empurra os seguranças, vai até Auro e cospe nele duas vezes. Desde então, chamo isso de cusparada cívica. Aconteceu entre uma e meia e duas da madrugada de 2 de abril. Esta é a data do golpe".
Jango chega a Porto Alegre às 3h15. Reúne-se com Ladário e constatam que também as guarnições do III Exército, no interior do Estado, em Santa Catarina e no Paraná, estavam com o golpe. O governador Ildo Meneghetti, golpista, fugira para Passo Fundo, mas controlava a Brigada Militar. Ladário ainda insiste: "Vamos lutar". Jango é o mais sensato, conclui que, ante a total desarticulação, ou inexistência, do "dispositivo", a luta seria suicida. Às 11h45 do dia 2, parte para o Uruguai.
- Onde entra a Guerra Fria nisso?
- A política externa não agradava aos americanos. O Brasil reatou relações com a União Soviética, foi contra a expulsão de Cuba da OEA. Na crise dos mísseis, Kennedy mandou uma carta que era verdadeira convocação para o Brasil acompanhar os Estados Unidos num ataque a Cuba. Lembro a data: 22 de outubro de 1962. Jango reuniu, no Palácio, Francisco Clementino de San Tiago Dantas, chanceler; Evandro Lins e Silva, procurador-geral da República; Antônio Balbino, ex-consultor geral da República; general Albino Silva, então chefe da Casa Militar, e este jovem. Jango mostra a carta e já traz sua opinião, com anotações à mão, uns garranchos. A opinião dele era o respeito ao princípio de não intervenção. San Tiago escreveu o texto da recusa. Em Genebra, numa conferência sobre desarmamento, o Brasil anuncia que é não alinhado, não se subordina a nenhum bloco militar. Tudo isso contrariava a estratégia dos Estados Unidos, que tinham a América Latina como território seu. Daí o apoio aos golpes em todo o continente. No caso do Brasil, está provado, tropas americanas desembarcariam em Pernambuco se houvesse resistência. Jango já sabia disso, avisado pelo ex-chanceler Afonso Arinos. Não precisaram intervir, pois o financiamento a entidades como Ibad e Ipes, a campanha massiva anti-Jango na imprensa, acabaram por convencer os militares de que o governo ia comunizar o país.
- Um ano depois, o Brasil invade a República Dominicana para derrubar o presidente Francisco Camaño, tido como castrista. Mas não foi só para alinhar o Brasil aos Estados Unidos que aconteceu o golpe.
- Claro que não. A crise social e econômica foi fator propiciatório. A inflação era galopante e havia greves. Em São Paulo houve uma greve de 700 mil trabalhadores, sem intervenção do Ministério do Trabalho. Imagine o que a Fiesp achou disso. As Ligas Camponesas assustavam os latifundiários com o radicalismo da reforma agrária "na lei ou na marra".
Fonte: Valor Econômico