quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Merval Pereira - Já foi dada a largada

- O Globo

O resultado da eleição municipal, nem bem terminou o primeiro turno, já tem consequência na retórica partidária. O PP, que elegeu mais prefeitos dentro do Centrão, quer levar Bolsonaro a filiar-se a ele, garantindo o protagonismo do processo eleitoral até 2022. O PSD, outro partido do grupo que teve bons resultados municipais, ao contrário, já avisou que pode ter candidato próprio na eleição presidencial.

São dois pontos de vistas distintos dentro de um mesmo grupo político, no momento no governo. Esses movimentos estão preocupando a ala ideológica do bolsonarismo, que teme perder o controle da situação para o Centrão, o que efetivamente já está acontecendo.

A relação entre PP, PSD, MDB e DEM é antiga, elegeu Rodrigo Maia presidente da Câmara. A diferença entre os dois grupos é muito menor do que entre o Centrão e Bolsonaro. Bolsonaro é outra turma, é da extrema direita. O centrão se adapta a qualquer governo. Trabalhou com Lula, Dilma, FH. Não é um partido ideológico, é pragmático e quer estar no poder. À medida em que a coisa for caminhando, acho que tem mais chance de o centrão se alinhar ao DEM e ao MDB do que seguir com Bolsonaro até a eleição.

William Waack - A onda acabou

- O Estado de S. Paulo

Jair Bolsonaro é, agora, a perfeita expressão do ‘sistema’

A causa do fracasso eleitoral de Jair Bolsonaro nas eleições municipais é simples de ser resumida. Ele interpretou de maneira equivocada a onda disruptiva que o levou ao Palácio do Planalto em 2018. Achou que tinha sido o criador desse fenômeno político quando, na verdade, apenas surfava a onda.

O fato é que essa onda, depois de arrebentar o alvo primordial (as forças políticas ao redor do PT), se espraiou, perdeu sentido e direção, dividiu-se entre seus vários componentes antagônicos. Esvaziou-se, com Bolsonaro achando que apenas falando, apenas no gogó, manteria o ímpeto de uma onda dessas – um fenômeno político raro.

Na verdade, a principal lição oferecida a Bolsonaro pelas eleições do último domingo é a do primado da organização, capilaridade e peso das agremiações partidárias no horizonte político mais extenso. Pode-se adjetivar como se quiser o conjunto de partidos que elegeu o maior número de prefeitos e vereadores ou colocá-los onde se preferir no espectro político. O denominador comum entre eles é a existência de estruturas profissionais voltadas para a política.

Míriam Leitão - Um país assim complicado

- O Globo

Tudo é sempre um pouco mais complicado quando se trata de política brasileira. Os partidos nem sempre são o que parecem, o centrão é de direita, o DEM veio do PFL, que veio do PDS, que nasceu na Arena, partido da ditadura, mas isso não quer dizer que seus líderes concordem com a defesa que Bolsonaro faz da mesma ditadura. O PSD é de Gilberto Kassab, político que se adapta a qualquer governo, mas o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, a maior vitória do partido, é crítico do presidente, principalmente da política de combate à pandemia.

A política brasileira é toda matizada, confirmando a lendária afirmação de que o Brasil não é para principiantes. O novelo das tendências políticas é tal que para entender é preciso puxar fio por fio.

O DEM tem maiores ambições, segundo aviso do seu presidente, ACM Neto, dado na entrevista publicada ontem pelo “Valor”. Quer ter um candidato ou estar na chapa da próxima disputa presidencial. Ele se fortaleceu neste primeiro turno. Aumentou o número de prefeituras e foi o que mais fez prefeito de capital logo na primeira rodada, entre elas, Salvador, onde o eleito Bruno Reis teve o maior percentual de votos e sucede a duas administrações de ACM Neto. Por que esse capital eleitoral seria posto a serviço de um presidente sem lealdades e com posições extremistas? Não seria neto de quem é se fizesse essa opção.

Ascânio Seleme - O efeito Tatto

- O Globo

Animação da esquerda alcança apenas lateralmente os petistas

Há momentos na história dos partidos políticos em que eles corrigem sua rota ou correm o risco de perder densidade e estatura, virar poeira e sumir. Quase aconteceu com o DEM, que por pouco não desapareceu entre 2006 e 2012. Deve ocorrer muito brevemente com o PSL. E pode se dar também com o PT, se os sinais deixados nas urnas pelo eleitor não forem bem entendidos. O sinal mais claro foi o de São Paulo. Aquela terça parte dos paulistanos que, por três vezes, ajudou a eleger prefeitos da sigla mostrou no domingo que vota na esquerda, não necessariamente no PT.

Imaginar que São Paulo embarcaria na canoa do enrolado Jilmar Tatto apenas porque ele foi apontado pelo partido e ungido por Lula foi um equívoco do tamanho da soberba do PT. E, em política, arrogância é inimiga do sucesso. Votaram em Tatto os militantes orgânicos, os engessados e os desavisados. Revoaram para o PSOL de Guilherme Boulos todos os demais que, somados aos primeiros, totalizam os cerca de 30% que pareciam cativos do Partido dos Trabalhadores e que, se soube agora, não são.

É verdade que a esquerda sai das eleições municipais mais animada do que saiu da eleição presidencial de 2018. Embora tenha ido ao segundo turno com Fernando Haddad, o PT liderou a maior derrota política da esquerda desde 2002. 

Maria Cristina Fernandes - Por que o horizonte de Bolsonaro turvou

- Valor Econômico

Partidos vitoriosos nas urnas estarão mais propensos a uma pauta que limita o voo do presidente mas os consolida na condição de eixo para 2022

As eleições municipais devolveram o bolsonarismo ao tamanho que o fenômeno tinha antes da facada. A definição, dada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), foi a melhor da temporada. Pelo cargo que ocupa, o presidente da República é maior do que o fenômeno que o elegeu, mas seu fraco desempenho como cabo eleitoral tem consequências para além da carreira frustrada de Val do Açaí na Câmara de Vereadores de Angra dos Reis.

Se as disputas locais têm um significado para o cenário nacional é o de projetar a expectativa de poder para a segunda metade do mandato de quem hoje o detém. O PT, do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi considerado derrotado em 2004, primeira disputa municipal depois de sua chegada ao poder. Perdeu a cidadela paulistana e duplicou o número de prefeituras (esperava-se que quintuplicasse).

Isso não impediu que o PT permanecesse por mais 12 anos no poder. Foi o “boom das commodities” que permitiu ao partido prorrogar sua validade, a despeito dos sucessivos sacolejos em sua base política. Foi a partir daí que o governo pôde abandonar o arrocho de Antonio Palocci e fazer políticas públicas e investimentos que lhe permitiram se manter como eixo.

Desta vez, o cenário é oposto. O abismo econômico com o qual o país se depara leva à imposição de uma pauta fiscalista para a segunda metade do mandato bolsonarista. Some-se a isso a insegurança provocada pelo enfraquecimento de sua retaguarda militar e pela derrota de Donald Trump, além do avanço das investigações sobre as rachadinhas bolsonaristas.

Luiz Carlos Azedo - A nova onda

- Correio Braziliense

O presidente Jair Bolsonaro continua com sua postura negacionista da covid-19, a ponto de, ontem, mandar apagar mensagem do Ministério da Saúde recomendando isolamento social.

A pandemia da covid-19, no Brasil, virou um endemia e assim será, até que a população seja vacinada em massa. A segunda onda, que está sendo avassaladora nos Estados Unidos e na Europa, aqui está começando, sem que a primeira tenha ido embora, ou seja, se inicia de um patamar muito alto, como aconteceu nos EUA. O presidente Jair Bolsonaro continua com sua postura negacionista, a ponto de, ontem, mandar apagar mensagem do Ministério da Saúde recomendando isolamento social. Deveria prestar um pouco de atenção ao que acontece na Suécia, que tratou o novo coronavírus como uma gripezinha, mas, agora, mudou de paradigma e resolveu aceitar as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS).

São Paulo, por ser o estado mais populoso e também o mais conectado com os demais e o exterior, registra um aumento de 18% no número de casos de internações nas redes hospitalares pública e privada neste mês. Como na primeira onda, as classes A e B estão sendo as mais afetadas; a explosão deve ocorrer quando chegar à população de mais baixa renda, com menos capacidade de se manter a salvo do contato com o vírus. O grande dilema é como lidar com as medidas de proteção individual e, ao mesmo tempo, evitar o colapso econômico e social.

Ricardo Noblat - Arraes é o novo!

- Blog do Noblat | Veja

Na guerra dos primos, Marília, candidata do PT, sai na frente com apoio da direita

O novo virou velho e o velho o novo na guerra pela prefeitura do Recife travada por João Campos (PSB) e Marília Arraes (PT) – ele, filho do ex-governador Eduardo Campos que morreu em um acidente aéreo em agosto de 2014; ela, filha de um dos 10 filhos de Miguel Arraes que governou Pernambuco três vezes. Portanto, João, bisneto de Arraes, e Marília, neta.

Se a idade pesasse na definição de quem seria o novo, João venceria Marília. Ele tem 26 anos, ela 36. Mas na política, o novo e o velho se alternam a depender do que cada candidato representa. Coube a João representar um conjunto de forças que ocupa há 14 anos o Palácio do Campo das Princesas, sede do governo de Pernambuco, desde que ali chegou seu pai, neto de Arraes.

João foi o candidato mais votado no primeiro turno com 29,13% do total de votos válidos. Marília, o segundo com 27,90%. Pesquisa do Ibope aplicada entre a última segunda-feira e ontem conferiu a Marília 53% das intenções de voto e a João, 47%. Para Marília migrou parte dos votos de Mendonça Filho (DEM) e da Delegada Patrícia (PODEMOS), terceiro e quarto colocados.

Vinicius Torres Freire - '2ª onda' e onda eterna de relaxamento

- Folha de S. Paulo

Pela estatística, é difícil afirmar que há repique, mas é fácil saber o que fazer para evitá-lo

Depois de semanas de despreocupação e, em muitos casos, de negligência com as medidas de segurança sanitária, subitamente o país volta a se ocupar da epidemia. A onda é falar de “segunda onda”, repique de infecções e mortes que estaria ocorrendo no Brasil.

Segundo alguns, seria algo parecido com os Estados Unidos, onde jamais houve controle do espalhamento da infecção, mas apenas uma redução do ritmo do número de mortes, que, no entanto, voltou a acelerar já por duas vezes.

Já se pode dizer que há “segunda onda” no Brasil? O que isso significa? Os dados são suficientes e persistentes para dizer que há um aumento do crescimento do número de internações, casos e mortes?

Francamente, a estatística não diz muito. Entre epidemiologistas com os quais este jornalista costuma conversar, uma meia dúzia, quase todos dizem que não é possível afirmar grande coisa, mas “evidências anedóticas” (histórias, relatos parciais) “preocupam”, tais como alertas de médicos e de administradores de grandes hospitais.

Maria Hermínia Tavares* - A desastrosa marcha à ré

- Folha de S. Paulo

Os mais ricos ficaram com quase todo o crescimento da renda de 2017 para cá

Nos últimos dez anos, perdemos a luta contra a pobreza e a desigualdade, objetivo incontornável de qualquer país que se quer decente. Essa é a conclusão do primoroso trabalho "Distribuição de renda nos anos 2010: uma década perdida para desigualdade e pobreza", escrito por três ases --os pesquisadores Rogério Barbosa, Pedro Ferreira de Souza e Sergei Soares-- e recém-publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), do Ministério da Economia, na série Textos de Discussão.

Ali se lê que os ganhos conseguidos entre 2012 e 2014 --e que davam prosseguimento a uma longa trajetória virtuosa de redução do número de pobres e das disparidades de renda-- cessaram com a crise econômica de 2015-2016 e foram literalmente revertidos nos dois anos seguintes.

O desarranjo da economia não atingiu a todos da mesma forma nem ao mesmo tempo. A derrocada começou no governo Dilma, provocada por uma leitura míope dos obstáculos da hora, conduzindo a soluções ineficazes para superá-los.

Bruno Boghossian – Um mau negócio para Doria

- Folha de S. Paulo

Tucano foi escondido, teve alta da reprovação em São Paulo e viu partido encolher

Assim que a apuração mostrou o fiasco dos candidatos do Planalto nas eleições municipais, João Doria espezinhou o rival: “Vitória da democracia. Derrota de Bolsonaro”. O tucano pode ter ficado satisfeito com o tombo do desafeto, mas o ciclo de 2020 não foi exatamente um bom negócio para seus planos.

O resultado na capital paulista e os números das disputas no interior do estado só contam uma parte da história. Bruno Covas (PSDB) foi ao segundo turno depois de esconder o antecessor durante quase toda a campanha. Em vez de ser explorado para turbinar a candidatura, o apoio do governador surgia muitas vezes como um constrangimento.

A disputa também aprofundou arranhões em sua imagem. Dois anos depois que Doria deixou a Prefeitura sob desaprovação de muitos paulistanos, sua avaliação negativa disparou. Ao longo da campanha, o índice de eleitores que consideram o governo ruim ou péssimo subiu de 39% para 52% –percentual semelhante à rejeição a Bolsonaro na capital.

Fernando Schüler* - Sinal amarelo

- Folha de S. Paulo

Centro político pode começar a se mover por conta própria

O ministro Luiz Eduardo Ramos disse que os aliados do governo venceram as eleições. Mencionou o crescimento de prefeituras do DEM, PP e PSD, bem como o encolhimento do PT e concluiu: a turma que segue as “pautas e ideias” de Bolsonaro ganhou o jogo.

Há vários problemas aí. O primeiro é saber exatamente quais são as pautas e ideias do governo. Por vezes o suporte do governo, e em particular do presidente, à sua própria agenda de reformas se parece com o apoio de Bolsonaro ao prefeito Crivella: “Se não quiser não vota, tranquilo”.

É verdade que os partidos tradicionais foram vencedores. A Folha identificou uma tendência significativa de deslocamento à direita dos novos prefeitos. Há muitos significados nisso. Um deles diz simplesmente que esta foi uma eleição de baixa propensão a risco. É a tese levantada pelo professor Carlos Pereira: diante da pandemia e do espectro da morte, o eleitor tende a recuar da lógica do confronto e se afastar das “saídas polares”.

Há uma explicação mais pragmática: DEM, PP e PSD trabalharam forte e foram os partidos que mais cresceram com o troca-troca partidário entre as eleições. Só o DEM passou de 272 para 456 prefeitos, já antes das eleições, basicamente puxados por governadores eleitos pelo partido, em 2018. O resultado obtido agora é em boa medida uma consequência disso.

Celso Ming - Guilherme Boulos e a nova esquerda

- O Estado de S. Paulo

Candidato do PSOL à prefeitura de São Paulo parece ter-se dado conta da nova direção dos ventos, mas por enquanto é voz isolada

Já é um bom avanço entender que as esquerdas tradicionais perderam terreno nessas eleições e que seu espaço começa a ser ocupado por uma esquerda mais moderna e mais moderada, que tem como um dos seus líderes Guilherme Boulos, candidato a prefeito de São Paulo. Mas é preciso ir além. É preciso entender por que essa mudança está ocorrendo.

A esquerda que está sendo desidratada no Brasil é a que cresceu no sindicalismo tradicional, o que se baseava na defesa dos interesses do trabalhador da indústria de transformação. Batalhava por mais conquistas trabalhistas e pelo aumento dos salários dos que já desfrutavam de um contrato formal de trabalho, que ainda dava direito a outros benefícios, como plano de saúde, fundo de pensão e colônia de férias.

Essa esquerda e esse sindicalismo ajudaram a fortalecer a chamada elite do proletariado. Foram responsáveis também para que, em determinado período, ganhasse corpo certo acordo tácito pelo qual os trabalhadores da indústria de veículos obtivessem os melhores salários do mercado e a indústria pudesse repassar aumentos de custos para o preço dos seus produtos, sem ter sequer de divulgar balanços auditados. 

Esse velho sindicalismo não se importa muito com o desempregado nem com a situação precária dos já aposentados e dos que logo chegariam a essa condição. Em grande número de casos, os dirigentes desses sindicatos se perpetuavam no poder e tiravam proveito próprio do bolão do imposto sindical arrecadado com contribuições compulsórias dos associados, mamata que felizmente acabou.

Zeina Latif* - Responsabilidade nas promessas

- O Estado de S. Paulo

Embora com tom mais moderado, Guilherme Boulos repete o nefasto e equivocado discurso populista

Os debates eleitorais têm muito a melhorar. Candidatos da oposição muitas vezes constroem a imagem de que é fácil resolver os problemas e que, se nada foi feito antes, foi por descaso ou desonestidade. A simplificação excessiva, como na campanha de Bolsonaro em 2018, atrapalha a decisão consciente e o amadurecimento do eleitor.

O discurso fácil e eloquente dá voto, pois segmentos da sociedade continuam em busca de “salvadores da pátria”. Porém, cedo ou tarde, chega a fatura, como na decepção de eleitores com o presidente. 

É necessário ir além da superficialidade e afastar promessas descabidas, pois enfrentar os desafios do desenvolvimento requer maturidade política.

Os candidatos à reeleição, por sua vez, falham ao não explicitar problemas e diagnósticos, talvez por temerem críticas. Ao final, há uma cumplicidade perversa entre contendores no debate eleitoral, ao evitarem temas polêmicos. 

A campanha para a eleição da Prefeitura de São Paulo não foge à regra.

Mal se discute, por exemplo, o grave desequilíbrio da previdência municipal. Em 2019, o rombo foi de R$5,4 bilhões, o que equivaleu a 16% da arrecadação tributária. O déficit atuarial estava em quase R$163 bilhões.

Carlos Alberto Sardenberg - Não existe bolsonarismo

- O Globo

Não se viu nenhum grande portador de votos defendendo fortemente a Lava-Jato

Foi como se o eleitorado chegasse para Bolsonaro, apontando a arma: “Perdeu playboy, perdeu”.

A Bolsonaro, só restou pedir: “Tá bom, mas não esculacha”.

Ele, os filhos e os fiéis estão dizendo que nem se envolveram tanto nas campanhas (o que é falso) e que o bolsonarismo permanece.

Só que, e aqui já vai um esculacho, não existe bolsonarismo. A vitória do presidente em 2018 foi um acidente histórico, uma mistura única de circunstâncias.

A população estava perplexa com as descobertas da Lava-Jato, que não apenas apanhava episódios de corrupção, mas revelava um sistema de assalto ao Estado (aos contribuintes) para financiar partidos e pessoas. Era a velha política, alvo fácil.

O governo Dilma jogara o país na maior recessão, estourando os gastos públicos e conseguindo a proeza de ter juros e inflação nas alturas, ao mesmo tempo.

Com Lula apanhado, a esquerda era outro alvo fácil. A esperteza de Bolsonaro — ou de algum assessor de bom senso —foi trazer o liberalismo de Guedes (chega de Estado gordo e ineficiente) e o Moro da Lava-Jato.

Como as diversas variedades do centro estavam perdidas — o adversário está à direita ou à esquerda — e mais a facada, que tirou o candidato dos debates que poderiam derrubá-lo, deu Bolsonaro.

Passados dois anos, os eleitores derrotaram Bolsonaro — porque perceberam o quanto era fake, para dizer o mínimo —e fizeram o quê?

Bernardo Mello Franco - O salto alto do Dudu

- O Globo

Na noite de terça, Eduardo Paes faltou a um debate na TV para ir ao aniversário da Tia Surica. A matriarca da Portela é uma figura querida e merece as homenagens pelos 80 anos. Mas a atitude do ex-prefeito indica que ele subiu alegremente no salto alto.

Paes tem motivos para estar confiante. De acordo com o Ibope, ele tem 30 pontos de vantagem sobre Marcelo Crivella. Se a eleição terminasse agora, o ex-prefeito venceria por 53% a 23%. Em votos válidos, a pesquisa sugere um massacre: 69% a 31%.

A distância não se deve apenas ao carisma de Paes. Reprovado por sete entre dez cariocas, o bispo virou presa fácil para qualquer oponente. Até o nanico Cyro Garcia, eterno candidato do PSTU, seria favorito para vencê-lo no confronto direto.

O Rio vive uma eleição atípica, com pouca campanha de rua e quase nenhum debate sobre a cidade. A pandemia abateu a população e aumentou o desinteresse pela política. A abstenção chegou aos 32% e tende a bater novo recorde no dia 29.

Cora Rónai - As emoções das urnas

- O Globo

Vontade de bater a porta na cara dessa cidade sem vergonha que não aprende, e ir embora para algum lugar onde as pessoas raciocinem

Ainda me emociono quando vou votar. Isso se define como “o triunfo da esperança sobre a experiência”. Não me lembro mais quando foi a última vez em que consegui eleger um vereador, ou comemorar o resultado das urnas. Mesmo as (poucas) alegrias que elas me trazem são alegrias capengas, ofuscadas pelas criaturas dos pântanos que vicejam entre os votos vencidos.

Na semana passada escrevi sobre a eleição nos Estados Unidos. A vitória de Biden e de Kamala Harris foi festejada no mundo inteiro, mas antes de ficarmos muito felizinhos convém não esquecer que mais de 70 milhões de americanos votaram em Trump; e...

—Tá, tá! — disse a minha Mãe, quando fui jantar com ela. — Amanhã a gente pensa nisso. Por enquanto, vamos aproveitar e nos regozijar com o resultado.

Mamãe tem bastante experiência de governos medonhos, e foi com regozijo que sacou a palavra regozijo da algibeira. Claro: um verbo dessa grandeza não pode ficar guardado em qualquer bolso ou envelope, precisa mesmo de uma algibeira.

De modo que nos regozijamos então, e mais um pouco até domingo, quando a quantidade de votos no Crivella provou, por A + B, que o Rio não tem moral nenhuma para criticar ninguém. Os evangélicos e as esquerdas cariocas nos garantiram, como de costume, um segundo turno eletrizante.

Luis Fernando Verissimo - O ataque dos maricas

- O Globo | O Estado de S. Paulo

Não fica claro, no discurso, se trata-se apenas de quem tem medo de morrer

O FBI, a CIA e outros órgãos da inteligência americana têm tido dificuldade em entender os relatórios que recebem dos seus agentes no Brasil. Discursos e manifestações do presidente brasileiro são monitorados regularmente, mas, de uns tempos para cá, isso tornou-se uma tarefa problemática. Para começar, ninguém parece saber quem realmente é o presidente do Brasil e faz as declarações que intrigam os agentes americanos. Há quem diga que o presidente é Hamilton Mourão, outros dizem que é Paulo Guedes, outros têm certeza de que é José Simão, e ainda outros sustentam (a opção menos provável) que é Jair Bolsonaro ou um dos seus filhos. O jeito é monitorar todos ao mesmo tempo. O objetivo é detectar e prevenir qualquer ameaça à segurança dos Estados Unidos.

Uma recente fala presidencial de improviso aumentou a confusão. Os termos do pronunciamento ainda estão sendo estudados. Eles podem indicar que o Brasil prepara-se para invadir os Estados Unidos e:

Eugênio Bucci* - De Trumpiniquim a maricocéfalo

- O Estado de S. Paulo

Maricas é quem só usa palavras dóceis, como as de Bolsonaro para Trump: ‘Love’

Pertencente à grande nação tupi, o povo tupiniquim foi o primeiro desta terra a descobrir os portugueses. Quando caravelas lusitanas aportaram no litoral do continente que agora habitamos, os navegantes deram de cara com os tupiniquins. Não se sabe bem que histórias contaram os índios, de geração em geração, sobre o dia em que descobriram Pedro Álvares Cabral, mas o nome deles virou um sinônimo “brasileiro”. Com razão.

No mais das vezes há um viés jocoso nessa acepção da palavra. Normalmente, quando dizem que isso ou aquilo é uma versão “tupiniquim” de uma mercadoria ou de uma ideia vinda de fora, querem dizer que ela é pior que a original estrangeira. Portanto, na fala do brasileiro que desvaloriza o próprio brasileiro quando usa a palavra “tupiniquim” como um termo pejorativo existe um preconceito contra si mesmo, um impulso autodepreciativo.

É bem verdade que outras vezes a memória da nossa ancestralidade indígena não tem preconceito algum, mas o contrário. Quando sabe devorar a identidade do outro que, chegado de “Oropa” ou França, cai na Bahia com más intenções, o brasileiro não se desvaloriza em nada, mas cria valor novo para si. O Manifesto Antropófago, proclamado por Oswald de Andrade em 1928, o “ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha”, defendeu com ênfase esse tipo de mastigação simbólica. As chanchadas no cinema brasileiro, que tantas paródias fizeram para caçoar dos galãs empostados de Hollywood, também tinham que ver com isso, embora sem o apetite revolucionário de Oswald. Se você consegue rir do opressor, meio caminho gástrico andado. “A alegria é a prova dos noves.” Assim, se o uso autopreconceituoso do termo “tupiniquim” internaliza no brasileiro a opressão vinda de fora para dentro, a antropofagia política e cultural vira a opressão do avesso e, de dentro para fora, gargalha.

O que a mídia pensa: Opiniões / Editoriais

Descuido mortal – Opinião | O Estado de S. Paulo

Nada poderia ser mais inconsequente do que tomar medidas de flexibilização da quarentena como sinal inequívoco de que tudo voltou ao normal.

A julgar pelo comportamento de muitos brasileiros, a pandemia de covid-19 parece ser uma catástrofe que ficou para trás. Nada poderia ser mais inconsequente neste momento do que tomar as medidas de flexibilização da quarentena que têm sido adotadas pelo poder público como um sinal inequívoco de que o pior já passou e que tudo voltou ao normal. Afinal, a pandemia, cumpre reafirmar, não acabou. Ao contrário, ganha força.

Há algumas semanas, muita gente relaxou nos cuidados para conter a disseminação do novo coronavírus. Observaram-se grandes congestionamentos nos grandes feriados, praias lotadas, aglomerações em bares, festas e reuniões entre familiares e amigos, ou seja, comportamentos totalmente alheios à dura realidade: o vírus mortal ainda está em circulação no País.

Como o patógeno é implacável e não liga para o estado de espírito das pessoas, muitas exauridas nesses quase nove meses de quarentena, o número de infectados e mortos tornou a subir após semanas de queda e estabilidade. De acordo com o Imperial College de Londres, referência internacional no estudo da pandemia, a taxa de transmissão (Rt) do novo coronavírus no Brasil voltou a ficar acima de 1 pela primeira vez desde setembro. No dia 17 passado, a instituição britânica revelou que a Rt no País estava em 1,10, vale dizer, cada grupo de 100 infectados pelo Sars-Cov-2 transmitia o vírus para outras 110 pessoas. Apenas uma semana antes, a Rt estava em 0,68, então a menor taxa registrada desde abril. Uma taxa de transmissão acima de 1 indica que a doença está se expandindo. Abaixo, indica que está perdendo intensidade.

Música | Patricia Marx & Seu Jorge - Espelhos d'Água


Poesia | Goethe (1749-1832) - Crítico

Chegou uma cara visita
Que a mim não era um parasita.
Empanturrou-se de comida,
Refestelou-se com a bebida,
Da sobremesa ao fim deu cabo.
Vizinho a mando do Diabo,
Ao terminar a minha ceia,
Raciocinou de boca cheia:
“Na sopa faltava cominho,
O assado cru, azedo o vinho.”
– Que coma a maldita migalha!
É um crítico. Morte ao canalha!